Vera mordeu o lábio, como uma adolescente com um segredo guardado demais.
— Hoje de manhã... depois de tudo resolvido... eu escrevi um conto.
— Sério? — ele disse, animado. — No site?
Ela assentiu, com um brilho diferente nos olhos.
— Com o apelido de Musa. Nada escandaloso. Só... uma história delicada. Um começo.
Carlos a olhou por alguns segundos, como se a estivesse vendo de verdade pela primeira vez em muito tempo.
— Bem-vinda, Musa — disse, puxando-a para mais um abraço, desta vez mais longo
Ainda sentados no sofá, com a luz suave da sala e o cheiro do jantar que não tinham começado a preparar, Vera se recostou de leve no braço do marido e perguntou, com um sorriso contido:
— Você não vai ler o meu conto?
Carlos olhou pra ela com aquele ar brincalhão de quem já estava curioso fazia tempo, mas esperava o convite formal.
— Claro que vou!
Ela assentiu, meio sem graça, como quem está se expondo pela primeira vez.
Carlos pegou o celular, abriu o navegador e entrou no site de contos. Digitou o nome com calma, navegando pela página até encontrar o texto.
{[FESTA A TRÊS
NO PRÉDIO DE REGINA, A MOVIMENTAÇÃO ERA SEMPRE DISCRETA. ELA ESTAVA ACOSTUMADA AOS MESMOS ROSTOS DE SEMPRE NO ELEVADOR, MAS NAQUELA TARDE A ROTINA QUEBROU. AO ENTRAR, ENCONTROU UMA JOVEM BONITA, DE SORRISO ATREVIDO, EQUILIBRANDO UMA CAIXA GRANDE NOS BRAÇOS. AO LADO DELA, OUTRA MULHER — QUE SÓ PELO OLHAR CÚMPLICE DENUNCIAVA SER SUA NAMORADA.
— OI, VOCÊ É DAQUI? — PERGUNTOU A NOVA VIZINHA, AJEITANDO A CAIXA. O TOM DA VOZ NÃO ESCONDIA UMA CERTA MALÍCIA.
REGINA RESPONDEU EDUCADA, MAS NOTOU QUE O OLHAR DA RECÉM-CHEGADA PERCORRIA SEU CORPO DE CIMA A BAIXO, SEM DISFARÇAR. SENTIU O CORAÇÃO ACELERAR, DIVIDIDA ENTRE A SURPRESA E O CONSTRANGIMENTO — AINDA MAIS PORQUE A NAMORADA DA MOÇA ESTAVA BEM ALI, ASSISTINDO TUDO EM SILÊNCIO, MAS COM UM LEVE SORRISO NO CANTO DOS LÁBIOS.
— DESCULPA A OUSADIA, MAS... EU E MINHA NAMORADA TEMOS UM RELACIONAMENTO ABERTO — DISSE A VIZINHA, COMO SE ADIVINHASSE O PENSAMENTO DE REGINA. COM UM PEQUENO RISO, ACRESCENTOU EM TOM DE PROVOCAÇÃO: — E, SÓ PRA VOCÊ SABER, AQUI DENTRO DA CAIXA TEM ALGUNS BRINQUEDOS QUE A GENTE ADORA USAR...
REGINA SENTIU O RUBOR SUBIR-LHE AO ROSTO, E ANTES QUE PUDESSE RESPONDER, VEIO O CONVITE INESPERADO:
— ESTAMOS ORGANIZANDO UMA FESTINHA ÍNTIMA HOJE À NOITE... GOSTARÍAMOS MUITO QUE VOCÊ VIESSE.
A PORTA DO ELEVADOR SE ABRIU, MAS A MENTE DE REGINA FICOU PRESA NAQUELE INSTANTE., NÃO CONSEGUIU TIRAR DA CABEÇA O OLHAR OUSADO DA VIZINHA E A CUMPLICIDADE DA NAMORADA.
QUANDO FINALMENTE BATEU À PORTA DO APARTAMENTO DELAS, CRESCIA A SENSAÇÃO DE QUE AQUELA NOITE MUDARIA ALGUMA COISA DENTRO DELA.
A PORTA SE ABRIU ANTES MESMO DE REGINA TERMINAR O GESTO DE LEVANTAR A MÃO PARA TOCAR A CAMPAINHA PELA SEGUNDA VEZ. A VIZINHA A RECEBEU COM UM SORRISO MALICIOSO, OS CABELOS SOLTOS CAINDO PELOS OMBROS, ENQUANTO A NAMORADA PERMANECIA MAIS ATRÁS, OBSERVANDO EM SILÊNCIO.
— SABIA QUE VOCÊ VIRIA — DISSE A NOVA VIZINHA, DANDO UM PASSO PARA O LADO E ABRINDO ESPAÇO PARA VERA ENTRAR.
— A FESTA É SÓ PARA NÓS TRÊS?
A VIZINHA SE APROXIMOU, QUASE SUSSURRANDO AO SEU OUVIDO:
— HOJE, VOCÊ É O CENTRO DA FESTA.
— SABE, DESDE O ELEVADOR EU PERCEBI ALGO EM VOCÊ — DISSE A VIZINHA, INCLINANDO-SE MAIS PERTO. — UMA CURIOSIDADE ESCONDIDA... COMO SE TIVESSE MEDO DE ADMITIR.
O SOM LIGADO, AS DUAS COMEÇARAM A DANÇAR E A TIRAR AS ROUPAS ...]}
Carlos continuou lendo em silêncio, com o cenho levemente franzido, os olhos correndo pelas linhas com atenção.
A história continuava com as três fazendo sexo selvagem, utilizando diversos acessórios. E com Regina se realizando sexualmente.
À medida que avançava, um sorriso torto começou a se formar no canto da boca. Quando terminou, virou-se para ela com uma expressão entre divertida e impressionada.
— Você se inspirou naquela vizinha gostosona, né?
Vera deu um risinho, sem negar.
— Sim. Janaina foi a faísca. Mas só isso. Nada de verdade aconteceu. Igual os seus contos... inspirados, mas não vividos.
Carlos riu alto, jogando a cabeça para trás.
— Touché!
— E você... não tem nada novo por lá? — perguntou ela, meio provocativa.
Carlos travou o olhar no dela por um instante. Um brilho diferente surgiu em seus olhos.
— Tenho sim. E adivinha o nome do conto?
Vera levantou uma sobrancelha, desconfiada.
— Não me diga que...
— A Musa.
Ela ficou sem palavras por um segundo. A boca entreaberta, o coração batendo um pouco mais rápido.
— É sobre mim?
— Inteiramente. — Ele disse com simplicidade. — Uma mulher que, depois de viver anos dentro de molduras, começa a sair delas. Descobre desejo, voz, coragem. E beleza também — mas não a que os outros veem. A que ela começa a enxergar nela mesma.
Vera desviou os olhos por um instante, tocada. Sentiu o peito apertar — não de dor, mas de algo novo, algo forte. Era bonito ser vista. Era ainda mais bonito ser sentida.
— Eu quero ler — sussurrou.
Carlos estendeu o celular, abrindo o texto. Ela o pegou com cuidado, como se segurasse algo sagrado. Mas antes de começar a ler, olhou para ele.
— Você ainda acredita em nós dois?
Carlos não hesitou.
— Agora mais do que nunca. Só que agora... nós somos outros.
Ela sorriu. E pela primeira vez em muito tempo, não se sentiu prisioneira de um casamento. Sentiu-se parceira de um recomeço.
[{“A Musa
por Casanova
Ela tirou os brincos primeiro.
Como quem retira um disfarce.
Depois os sapatos, o sutiã, a pressa. Não tinha ninguém assistindo. Não havia espetáculo. Só ela, o quarto escuro e a própria pele.
Sentou-se na beira da cama e fechou os olhos. Não pensou no jantar, nos e-mails, na pilha de roupas por dobrar. Pensou nas pontas dos dedos. Nos lábios. Nos espaços entre o corpo e a coragem.
Tocou-se primeiro nos ombros. Depois no colo. Descobriu que o próprio toque podia ser gentil — não como o de quem exige, mas como o de quem oferece.
A mulher do espelho não era mais a mesma.
Havia nela um gesto novo, uma fome discreta, mas impossível de ignorar. Não era só desejo. Era permissão.
Pela primeira vez em anos, ela não queria agradar ninguém. Queria se ouvir gemer. Queria tremer por si.
E quando veio o prazer, ele não era alto, nem desesperado. Era como uma onda que chega devagar e inunda tudo em silêncio.
Ela deitou de lado, sorrindo. Não porque era perfeita — mas porque era real.
Ali, nua e suada, descobriu uma verdade que nenhuma pregação jamais tinham lhe contado:
— Que se conhecer era um ato sagrado.
E que amar a si mesma… podia ser a primeira oração.]}”
Vera segurou o celular com as mãos trêmulas, os olhos fixos nas palavras que pareciam pulsar na tela. A cada frase, sentia um formigamento subir da pele para o coração, como se aquele texto a estivesse despertando de um longo sono.
E naquela tarde, com o sol baixando lá fora, Vera começou a escrever — não mais para fugir, mas para se encontrar.
30 DIAS DEPOIS
A loja estava em pleno movimento. O "plim-plim" da campainha na porta não parava, e Vera mal dava conta de atender atrás do balcão. Mesmo assim, mantinha o sorriso no rosto — cansada, mas feliz.
Foi então que entraram Janaina e Sônia, as vizinhas animadas do prédio, sempre trazendo novidades — e, dessa vez, uma convidada.
— Vera, essa aqui é a Adriana — anunciou Janaina, empolgada. — Trouxemos mais uma pra conhecer sua loja.
— Ah, que maravilha! — respondeu Vera, animada. — Vocês duas são minhas melhores divulgadoras, viu?
Adriana não perdeu tempo: explorou os corredores, pegou alguns produtos, perguntou de outros, testou cheiros, texturas... e no final saiu com uma sacola cheia.
Na hora de ir embora, fez graça:
— Sabe, Vera, dono de sex shop tem uma vantagem que ninguém mais tem... pode mandar os clientes se foderem — e eles ainda saem felizes.
Ela soltou uma risada gostosa. Vera riu também, ainda tentando entender a piada. Janaina explicou, divertida:
— Não liga, não... a Adriana adora esse tipo de piadinha.
As três caíram na gargalhada. Até Vera entrou na onda.
Vera tinha acertado em cheio ao trocar a loja de produtos evangélicos por um sex shop. Além de muito mais rentável, era infinitamente mais divertido.
Antes de sair, Janaina se virou para Vera com um sorriso provocador:
— Adorei o seu conto, Musa. Quem sabe, um dia, a gente não transforma em realidade... como aconteceu com a Regina.
Vera arregalou os olhos, visivelmente surpresa.
— Mas... você conhece o site? Como... como soube? E eu... eu te disse que sou casada...
Janaina deu uma risadinha leve e respondeu, piscando de forma maliciosa:
— Vai ver a gente dá um jeitinho... Quem sabe até seu marido topa entrar na brincadeira.
Vera não respondeu. Apenas observou Janaina sair, enquanto um pensamento cruzava sua mente, silencioso e inesperado:
"Quem sabe um dia..."
Vera ainda estava na loja quando, num raro momento de calma, sentou-se para escrever um novo conto. Estava imersa nas palavras quando uma voz familiar interrompeu sua concentração:
— Bom dia, irmã Vera... ou será que ainda posso te chamar de irmã?
Ela parou de digitar e levantou os olhos, surpresa. Era Rute — a esposa do pastor.
— Faz tempo que você não aparece na igreja — continuou Rute, com um sorriso enigmático.
Vera suspirou, já prevendo o sermão.
— Olha, Rute... se você veio aqui pra tentar me convencer a voltar...
— Que nada! — interrompeu Rute, abanando a mão. — Vim fazer umas comprinhas.
Vera arregalou os olhos, incrédula.
— Você... sabe que tipo de loja é essa, né? É um sex shop.
— Sei muito bem — respondeu Rute, pegando uma cinta peniana da prateleira com naturalidade. — Quanto custa essa aqui?
— Essa sai por 120. Mas aquela ali, mais realista, tá na promoção: 100 reais.
— Ótimo. Vou levar as duas. Domingo tem culto, mas sábado é meu dia de glória. O Reginaldo adora quando a gente inverte os papéis.
Rute passou pelo caixa com a mesma calma com que passaria pelo corredor da igreja no domingo. E, antes de sair, virou-se com um sorriso ambíguo:
— Se você acha que meu marido grita nas pregações, devia ver quando eu enfio um desses no rabo dele!
Vera não conteve a gargalhada.
"Definitivamente, aqui é bem mais divertido", pensou.
Voltou a escrever o seu conto “Sim, sou Ela” e postou no site:
Sim, sou ela
por Musa
Já fui filha fiel da igreja,
de orações repetidas e dogmas fechados,
onde o corpo era campo proibido,
e o desejo, pecado silencioso.
Mas me despedi desses muros,
das palavras que aprisionavam minha alma,
e agora caminho nua — não só de pele,
mas de preconceitos, medos e culpas.
Mais perto de Deus que nunca,
não naquelas paredes frias,
mas dentro de mim,
no calor que me habita,
na liberdade de me aceitar inteira.
Eu sou mulher feita de carne e espírito,
de verdades que ardem e me iluminam,
de uma fé que não exige sacrifícios,
mas celebra o prazer de existir.
Meus pés tocam o chão com vontade,
meu corpo se move em hinos silenciosos,
e meus olhos verdes refletem a luz
de quem se descobriu amada —
por si mesma,
e por um Deus que me criou livre.
Não escondo mais o fogo.
Não recuo do desejo.
Sou Musa —
aquela que dança com sua própria sombra,
que canta seu próprio canto,
que ama sem medo.
E se o mundo quer julgar,
eu já renasci tantas vezes que aprendi:
a verdadeira fé é essa —
de ser, simplesmente, quem se é
Às vezes eu passo pela casa devagar, só para ver se ele me olha.
Não faço barulho. Nem cena.
Deslizo.
Meus pés tocam o chão com a delicadeza de uma dúvida.
Às vezes, cruzo as pernas no sofá sem querer,
e percebo que ele para de ler.
Ou finge que continua.
Uso o meu perfume favorito, aquele que não diz "sou sua" —
mas diz "sou".
Já fui discreta demais.
Comportada demais.
Presente demais para os outros, e ausente de mim.
Mas hoje... hoje eu me observo no espelho com fome.
Fome de toque, de palavra, de olhar demorado.
Fome do que eu sei causar.
Sou mulher de pele quente.
De quadril que dança mesmo parada.
De lábios que guardam promessas,
mesmo quando dizem só “boa noite”.
Não escrevo para ser lida com pressa.
Escrevo como me visto quando estou sozinha:
pensando em como seria se alguém estivesse olhando.
Não me explico.
Não me justifico.
Não me diminuo para caber na ideia de ninguém.
Eu sou Musa.
Não porque me deram esse nome.
Mas porque aceitei que sou.
Não preciso da juventude.
Ela precisa de mim.
Porque há algo em mim que o tempo não toca —
e é isso que o desejo reconhece.
Não sou sombra de mulher.
Sou chama.
Sou calor que sabe esperar.
Sou corpo que sabe se dar.
E se ele ainda me deseja, é porque meu silêncio o provoca mais que mil palavras.
E se ele me escreve, é porque, por trás da página,
sabe que quem dita a história agora…
sou eu.”
FIM
Nota do autor: Esta série sobre Vera nasceu como uma homenagem a todos que fazem deste espaço um lugar de encontros pela palavra:
A cada autor que se expõe;
A cada leitor que prestigia, que apoia e se deixa levar pelos contos;
À generosidade de cada comentário que transforma solidão em companhia.