A música "Aleluia", do Oratório O Messias, de Handel, ecoou pela sala quando Valentim finalmente viu seu nome na lista de aprovados. Ele piscou várias vezes, conferindo três vezes para ter certeza — afinal, no ano anterior, havia repetido e precisou se desdobrar para provar, a si mesmo, que era merecedor de coisas boas.
Um alívio imenso tomou conta de seu peito, e ele mal teve tempo de assimilar antes de sentir os braços de Noah o envolvendo num abraço apertado. O namorado, risonho, foi o responsável por colocar a música, criando um momento de descontração que arrancou gargalhadas dos colegas.
Todos haviam passado com honra. Mas João Paulo, sempre aplicado, conquistara um feito ainda mais raro: gabaritou todas as matérias, inclusive Educação Física, e recebeu um certificado especial por isso.
— Pessoal, todos passamos! — salientou Valentim, ainda abraçado com Noah, o sorriso largo estampado no rosto.
— E agora? — perguntou Karla, emocionada, enxugando uma lágrima discreta. — É isso?
— E agora vocês vão ter o prazer de sair daqui, enquanto nós dois... — Narciso deu um semiabraço em João Paulo, teatral — ...vamos ficar aqui, jogados ao relento.
— Para de ser dramático. — Breno riu, balançando a cabeça. — Você é um ator famoso. E você — apontou para João Paulo — é o cara mais inteligente que eu conheço. O vai ser fichinha para vocês.
— Contanto que eu não tenha um Gabriel na minha vida... — brincou João Paulo, segurando os braços de Narciso e aproveitando o carinho.
— Deus me livre. — Noah ergueu as mãos, divertido. — Não desejo isso nem para o próprio Gabriel. Sabe, o Valentim tem razão: eu preciso deixar o Gabriel ir embora. Ele é apenas um ser repugnante que não traz mais nenhum risco para mim. Já tentou me difamar, prejudicar, mas agora... agora ele é apenas inalcançável.
— Fora que o pai dele está sendo investigado por caixa dois. — João Paulo mostrou a tela do celular, onde havia uma matéria sobre o escândalo.
— Ou seja, esse mundo não gira, ele capota. — comentou Noah, arrancando risos.
Karla ergueu as mãos como quem impunha uma lei.
— Chega! Último dia de aula e vocês estão falando no nome proibido. O nome dele não entra mais no nosso vocabulário, entendido? Quero comemorar, não lembrar desse encosto.
A risada coletiva ecoou, leve, quebrando de vez qualquer sombra do passado. Para eternizar o momento, Narciso tirou o celular do bolso.
— Vamos registrar essa vitória! — sugeriu, já se posicionando para a foto.
João Paulo hesitou, olhando em volta.
— Sei não... seus fãs podem surtar.
— Deixa eles. — Narciso sorriu, convencido. — O feed é meu, e nele tem fotos, vídeos e tudo mais dessas cinco pessoas que eu mais gosto.
Eles se agruparam, braços entrelaçados, rostos iluminados pelo sol que atravessava a janela. A selfie capturou não apenas sorrisos, mas toda a cumplicidade que construíram ao longo dos anos no Instituto Discere. Não seria o último encontro entre eles, mas aquela se tornaria a última foto tirada dentro do local de ensino.
— Bem, meninas e meninos, eu preciso ir embora. — Noah ajeitou a mochila, puxando Valentim pela mão. — Quero curtir os últimos dias ao lado desse homem gostoso.
— Opa, senti firmeza. — Valentim riu, seguindo o namorado feito um cachorrinho obediente.
— Ei! — Narciso chamou, antes que eles saíssem. — Não esqueçam daquela parada lá.
— Que parada? — quis saber João Paulo, curioso.
— Um dia eu te conto. — Narciso desviou, rindo. — Agora vamos almoçar? Estou faminto. — Ele passou o braço pelos ombros do amigo e acenou. — Tchau, pessoal!
— E nós? — perguntou Breno, ainda olhando para Karla.
Ela sorriu, entrelaçando os dedos nos dele.
— O que acha de ter uma mulher bancária ao seu lado?
Cada casal tomou um caminho diferente pelos corredores do instituto. Seis pessoas que, por meio de risos, lágrimas e apoio mútuo, haviam provado que melhores amigos são exatamente isso: quem permanece ao nosso lado nos momentos bons, ruins... e, principalmente, nos inesquecíveis.
***
O auditório do Discere estava enfeitado com faixas azuis e douradas que balançavam suavemente a cada sopro do ar-condicionado. No palco, o letreiro luminoso anunciava em letras grandes: "Formandos do Terceiro Ano – Turma Fênix". Era o encerramento de um ciclo, um daqueles momentos em que o tempo parece desacelerar apenas para permitir que todos se dessem conta do quanto haviam crescido.
Valentim ajeitou a gravata pela terceira vez, tentando disfarçar o nervosismo. O reflexo no crachá dourado mostrava o mesmo garoto de antes — o sorriso confiante, o cabelo bem penteado — mas ele sabia que não era mais o mesmo. Por dentro, havia o peso e a leveza de quem aprendeu o valor da empatia, da coragem e do amor. Quando ouviu seu nome ecoar pelo microfone, o coração acelerou. Os aplausos soaram mais fortes do que esperava, e entre eles estava o olhar orgulhoso de Noah.
Noah, por sua vez, segurava o diploma com as mãos trêmulas. O menino que chegou como um forasteiro, com medo de não se encaixar, agora era celebrado por todos. Sua determinação e doçura haviam transformado não apenas a forma como a turma se via, mas também o próprio Valentim. O sorriso que trocou com ele, discreto e cheio de significado, era um lembrete de tudo o que viveram — e de que aquele fim era apenas o início de algo maior.
Karla foi chamada logo depois, vibrante como sempre. O jeito firme com que caminhou até o palco arrancou aplausos espontâneos. Era a combinação perfeita entre força e afeto, aquela que defendia os amigos com unhas e dentes, mas que sabia abraçar quando o mundo desabava.
E Breno — o coração criativo da turma — subiu ao palco com um brilho diferente no olhar. Sonhava alto, falava com o corpo inteiro e via beleza nas pequenas coisas. Enquanto recebia o diploma, imaginava mil futuros possíveis: artes plásticas, desenho gráfico, as histórias que ainda contaria.
Na plateia, João Paulo e Narciso observavam com o peito inflado de orgulho. Sabiam o quanto os amigos haviam lutado — contra o medo, o preconceito e até contra si mesmos. A cada aplauso, uma lembrança: as noites em claro, as conversas difíceis, os momentos de esperança.
Quando a cerimônia terminou e os quatro se abraçaram no meio do palco, o público se levantou em aplausos. Por um instante, parecia que o mundo inteiro cabia naquele abraço.
João Paulo segurou a mão de Narciso e sussurrou:
— Eles conseguiram.
Narciso sorriu, os olhos marejados.
— E nós também.
Porque, no fim das contas, todos ali haviam vencido — o medo, as dúvidas e o tempo. E, entre flashes e sorrisos sinceros, ao Discere se despedia de mais uma turma que deixava marcas profundas nos corredores que, por tanto tempo, chamaram de lar.
***
As férias de dezembro passaram como um sopro. Valentim pegou seus documentos no Discere e, com o coração apertado, se despediu de Noah. O abraço no estacionamento foi longo, silencioso, carregado de promessas — eles tentariam, mesmo a quilômetros de distância.
Em Dublin, Victor e Frida o receberam com o entusiasmo costumeiro. Passaram dias caminhando por ruas estreitas, parando em cafés aconchegantes para discutir opções de moradia, enquanto Valentim tentava se imaginar naquela nova rotina. Pediu por um espaço pequeno: queria algo prático, funcional, onde pudesse focar nos estudos e manter as sessões de terapia online, agora com um psicólogo queer recomendado pelo Grupo Arcoíris.
Depois de muito avaliar, encontraram um apartamento perfeito. Valentim sorriu ao atravessar a porta, com a luz clara da tarde invadindo o interior.
A sala era compacta, mas acolhedora. Um sofá bege repousava encostado na parede, em frente a uma estante planejada que abrigava nichos e prateleiras, tudo em tons suaves. Um tapete cinza claro delimitava o espaço, e duas mesinhas de centro, redondas e de madeira, davam um toque despojado. As escadas brancas, que levavam ao mezanino, completavam o ambiente com um ar moderno.
Ao lado, a cozinha exibia um charme retrô. O refrigerador azul-claro contrastava com os armários brancos e azulados. O balcão de mármore oferecia um espaço generoso para preparar refeições, e a claraboia iluminava cada detalhe, refletindo na superfície de inox do fogão.
No quarto, um silêncio suave parecia convidar ao descanso. A cama de moldura simples, coberta por lençóis brancos impecáveis, estava posicionada entre duas janelas com persianas de madeira pintadas de branco. Um armário discreto, embutido, completava o ambiente, perfeito para quem buscava tranquilidade após um dia intenso.
O banheiro, por sua vez, era um pequeno refúgio de azulejos brancos. O box transparente deixava o espaço mais amplo, enquanto o piso estampado, em tons discretos, trazia personalidade. O vaso sanitário e a pia flutuante eram simples, mas elegantes, e uma prateleira de vidro acima oferecia espaço para organizar produtos pessoais.
Enquanto Victor e Frida discutiam sobre a funcionalidade do armário da cozinha, Valentim pegou o celular e ligou para Noah. A imagem do namorado apareceu na tela, e ele começou um tour improvisado, mostrando cada cantinho: a sala, onde já se imaginava lendo; o quarto, onde pretendia escrever cartas; e até o banheiro, que arrancou risos de Noah.
— É pequeno, mas é meu — disse Valentim, orgulhoso.
Do outro lado da chamada, Noah sorriu, com aquele jeito tranquilo que sempre acalmava o coração de Valentim. A distância, por um instante, parecia menos assustadora.
— E a surpresa do João Paulo? — perguntou Valentim, afundando-se no sofá claro do novo apartamento.
— Estou indo para São Paulo daqui a pouco. Meu pai vem me buscar. — Noah ajeitou a câmera, revelando um brilho nervoso nos olhos. — Estou com medo dessa conversa. Ele não está nada feliz com o ano sabático. — Sorriu, tentando disfarçar o receio. — Eu também tenho algo pra te mostrar.
Ele virou a câmera para a frente, revelando um cavalo branco correndo pelo campo, a crina balançando ao vento.
— É o Leite Condensado? — Valentim riu, inclinando o celular para ver melhor.
— Sim. Ele está muito grande, né?
— Está lindo. Não vejo a hora de domar esse cavalo e...
— Não! — Frida e Victor disseram em coro, arrancando gargalhadas de Noah do outro lado da tela.
— Democracia é uma droga — resmungou Valentim, fingindo estar contrariado, mas logo sorrindo.
***
Enquanto Valentim explorava a cidade de Dublin, em São Paulo, Karla e Breno corriam contra o tempo. Eles estavam montando o que chamavam de "último trabalho como Padrinhos Mágicos", tendo Noah e Joana como cúmplices. A missão: preparar um jantar surpresa para João Paulo, que acabara de conseguir um estágio na empresa de Victor.
João Paulo tinha se destacado na entrevista: prestativo, paciente, sempre disposto a auxiliar os clienetes. No trabalho temporário, vestia uma jaqueta com a frase "Posso ajudar?" estampada nas costas, lidando com clientes em uma loja de eletrodomésticos. Enquanto ele terminava o expediente, o grupo cuidava de cada detalhe da recepção na casa do rapaz.
Narciso, no entanto, não conseguia esconder o nervosismo. Andava de um lado para o outro, o coração acelerado. Ele já havia encarado gravação com lendas da atuação brasileira, sob olhares atentos de milhares de profissionais, mas nada se comparava ao que sentia agora. Abrir o coração para alguém que amava era um desafio maior do que qualquer estreia televisiva.
— Tá... Ele vai entrar e a música vai estar tocando. Ele vai fazer milhares de perguntas, mas vou tentar manter a calma — disse, respirando fundo enquanto ajeitava flores na mesa.
— Querido, calma, você é um ator — disse Karla, tentando arrancar um sorriso dele.
— Mas isso não é um papel, né, amor? — completou Breno, organizando com cuidado algumas artes que havia feito com fotos de Narciso e João Paulo.
De repente, a porta se abriu e Narciso congelou, tomado por um breve "gaypanic". Mas era apenas Noah, equilibrando sacolas de um restaurante japonês. Narciso soltou o ar que nem percebeu que prendia.
— É só você — disse, aliviado, levando a mão ao peito.
— Oi pra você também, Narciso. Desculpa se eu peguei quase duas horas de estrada só para te ajudar. — ironizou Noah, pousando as compras sobre a mesa. — Falei com a dona Joana, e eles vão sair da empresa em quinze minutos.
— Quinze minutos?! — Narciso começou a andar de um lado para o outro, reorganizando coisas que já estavam perfeitamente no lugar.
— Narciso, meu amigo, ainda bem que estamos aqui, porque, olha, você seria um desastre sozinho — brincou Karla, segurando-o pelos ombros. — Vai dar tudo certo. Ele te ama, e você o ama. E, sinceramente, eu adoro essa tua versão atual. Antes, eu era só uma fã que te via de longe. Agora, olha pra gente. — Apontou para Noah e Breno, que arrumavam os pratos sobre a mesa com cuidado. — Estamos contigo, não importa o que aconteça.
— Obrigado, Karla. Obrigado, pessoal... desculpa pela surtada — disse Narciso, esboçando um sorriso nervoso.
— Tá de boa. Você ajudou o Valentim naquela surpresa linda! — Noah fez uma pausa dramática. — Sério, o melhor ficada da vida.
— Sem informações, por favor — pediu Karla, levando a mão ao rosto, exagerando na expressão.
— Tá reclamando do quê? Já viu o boy ao natural — provocou Noah, deixando Karla completamente vermelha.
— Eu tô aqui — cantarolou Breno, jogando um guardanapo na direção de Noah, arrancando risadas de todos. — Para tua sorte, eu me garanto.
— Eu não duvido. — Noah cruzou os braços e lançou um olhar malicioso para Karla. — Afinal, na viagem de férias, eu quase não dormi em Santos. Você grita muito alto, Karla.
— Engraçadinho! — Karla revirou os olhos e, antes que ele pudesse completar, pegou um sushi do prato e enfiou direto na boca de Noah.
Os quatro caíram na risada, enquanto terminavam de organizar cada detalhe da cozinha de Joana, transformada em um cenário romântico para o encontro de Narciso e João Paulo. A mesa, posicionada no canto, parecia saída de um filme: um pano branco impecável cobria a superfície, sobre a qual descansavam pratos delicados com corações no centro. Taças alinhadas refletiam o brilho suave das velas espalhadas pelo ambiente.
Sobre a parede, um varal de corações dourados e fotos polaroid criava uma atmosfera intimista. Pequenas lâmpadas amareladas contornavam as lembranças presas por mini pregadores, e, acima de tudo, bandeirolas vermelhas formavam a palavra LOVE. Dois vasos de vidro, tingidos em tom vinho, sustentavam flores simples, mas cheias de significado, enquanto um bolo caseiro aguardava no centro, sobre um pedestal branco.
Breno ajustou um dos cartões decorativos ao lado do bolo, enquanto Karla conferia o alinhamento dos pratos. Noah se distraía comendo mais sushi do que deveria, e Narciso tentava, em vão, manter as mãos firmes — estava nervoso demais para focar em qualquer detalhe.
Enquanto isso, Joana e João Paulo já se aproximavam da casa. O rapaz, ao notar um brilho incomum atravessando as cortinas, franziu o cenho.
— Mãe, você está vendo isso? Parece fogo lá dentro! — exclamou, acelerando o passo.
— João Paulo! Espera! — Joana tentou contê-lo, mas ele disparou na frente.
Assim que alcançou o quintal, João Paulo avistou a mangueira enrolada perto da porta. Sem hesitar, a ligou e começou a apontar jatos de água para todos os lados, convencido de que apagava um incêndio.
O primeiro jato atingiu Narciso em cheio, encharcando seu cabelo cuidadosamente arrumado e sua camisa, agora colada ao corpo. O rapaz piscou várias vezes, chocado, enquanto Breno e Karla congelavam com expressões de puro espanto. Noah, por sua vez, protegeu o jantar com o próprio corpo.
— João Paulo! — gritou Joana, desligando a torneira. — Não é fogo, é...
— Um jantar romântico... — completou Breno, chocado.
Narciso permaneceu imóvel por um instante, sentindo a água escorrer pelo rosto, antes de soltar um suspiro resignado.
— Ok... — murmurou, tentando recuperar a compostura. — Essa definitivamente não estava no roteiro.
Noah pegou um guardanapo da mesa e ofereceu para Narciso. Em seguida, ligou para Valentim, que assistia tudo por vídeochamada.
— Pelo menos agora o clima tá... refrescante — disse, piscando para ele.
— O que significa isso? — perguntou João Paulo, ainda confuso, segurando a mangueira desligada.
Narciso respirou fundo, o corpo ainda úmido, as mãos trêmulas.
— Eu gosto de você! — exclamou, fechando os olhos e apertando os dedos, como se tentasse segurar a coragem que ameaçava escapar. — Eu gostei de você desde o primeiro dia de aula. Você é um garoto bonito, inteligente e amável. Sempre detestei a forma como você se cobrava, por isso tentei fazer da nossa amizade a coisa mais leve do universo.
Ele fez uma pausa, o peito subindo e descendo rapidamente.
— Ver a coragem do Noah e do Valentim, da Karla e do Breno, me deu forças para te pedir em namoro. Inclusive, eu já conversei com a dona Joana, e ela abençoou a nossa relação. Eu sei que não vai ser perfeito, por causa da minha carreira, mas enquanto as pessoas que estão aqui apoiarem e conhecerem o nosso amor, mais nada importa.
Narciso parou, arrepiado pelo frio que agora o alcançava. Espirrou, arrancando um sorriso preocupado de João Paulo.
— Vem. Vamos trocar essa roupa antes que você pegue um resfriado — disse João Paulo, guiando-o até o quarto.
Na cozinha, Joana, Breno, Karla e Noah permaneciam imóveis, emocionados. Valentim, do outro lado da chamada de vídeo, enxugava discretamente as lágrimas: ele tinha visto cada etapa daquele sentimento florescer, inclusive o primeiro beijo dos dois nos corredores do local.
No quarto, João Paulo fechou a porta, pegou uma toalha e começou a secar o cabelo de Narciso. O rapaz, agora só de cueca, permanecia em silêncio, o coração batendo forte. Será que aquela hesitação significava um não?
— Eu te amo desde que tinha dez anos — disse João Paulo, a voz embargada, enquanto passava a toalha com delicadeza pelos ombros do outro. — Desde quando te vi pela primeira vez em Lágrimas do Destino. O seu rosto redondinho, seus óculos de grau e aquele sorriso banguela... Eu nem sabia o que era amor direito, mas você me ajudou a fugir de uma realidade triste: um pai violento, uma mãe submissa que demorou para tomar as rédeas da própria vida. Você estava lá, constante a cada episódio, me fazendo acreditar num mundo melhor. Você torna a vida das pessoas mais bonita, Narciso Figueiredo. Mas é por isso que tenho medo... se a gente namorar, talvez seja um problema.
Narciso ergueu o olhar, os olhos brilhando.
— Mas eu te amo, João Paulo. Não me importo com o que as pessoas pensam. Para de se jogar pra baixo, cara. Você é o garoto mais lindo e inteligente que eu conheci. Por favor, me dá essa chance. A gente vai fazer funcionar.
— Você tem certeza disso? — perguntou João Paulo, com lágrimas escorrendo, tocando o rosto de Narciso com ternura.
— Nunca estive tão certo de nada na minha vida. — Narciso se ajoelhou no carpete, ainda só de cueca, e segurou as mãos de João Paulo. — Aceita namorar comigo?
— Aceito — respondeu João Paulo, a voz trêmula, antes de puxá-lo para um abraço apertado.
De repente, a porta se abriu com um estrondo, e Joana, Breno, Karla e Noah caíram amontoados no chão, tentando se recompor. O celular de Noah rolou até o meio do quarto, e a voz de Valentim ecoou pelo viva-voz:
— Tá com a academia em dia, hein, Narciso — comentou, rindo, antes de piscar para a câmera.
Narciso, instintivamente, cobriu o peitoral e as partes íntimas com as mãos, mesmo não estando completamente arrancando gargalhadas de todos.
João Paulo, ainda sorrindo, pegou algumas peças de roupa no guarda-roupa e as entregou ao namorado, que as vestiu às pressas, tentando não encarar os intrusos.
Pouco depois, os amigos, percebendo que o casal precisava de privacidade, convidaram Joana para jantar fora. A mulher, feliz e orgulhosa, se arrumou rapidamente e saiu com os jovens para um restaurante próximo, deixando João Paulo e Narciso sozinhos.
Eles voltaram à cozinha decorada, onde o jantar os esperava: sushi, velas acesas e um ambiente cheio de carinho. Sentaram-se frente a frente, trocando olhares cúmplices. Entre risos e confidências, João Paulo percebeu que, apesar de todos os imprevistos, aquela noite era exatamente o que precisava — o começo de uma nova história, com Narciso Figueiredo ao seu lado.
***
Apesar de estarem longe e focados em seus compromissos pessoais, o grupo mantinha a rotina de chamadas de vídeo. Karla e Breno quase sempre apareciam juntos, dividindo a câmera em um cenário improvisado no apartamento de Fortaleza. Narciso e João Paulo, mesmo ocupados por causa dos seus respectivos trabalhos, davam um jeito de se encontrar. Noah e Valentim, por outro lado, apareciam sozinhos nas telas, mas havia um brilho nos olhos dos dois sempre que se viam.
As festas de fim de ano passaram, e Noah já contava os dias para visitar Valentim em janeiro, quando comemorariam o aniversário dele em Dublin. O próprio Noah faria aniversário apenas em março e, assim que completasse dezoito anos, pretendia iniciar um curso de Ciências Políticas para testar se era, de fato, o caminho que desejava seguir.
Karla e Breno estavam felizes com a mudança para Fortaleza, onde dividiam um pequeno apartamento enquanto estudavam. Narciso, por sua vez, mergulhava em um novo desafio: gravar uma série para a InterFlix, um dos maiores streamings do país. João Paulo aproveitava cada oportunidade que surgia dentro da empresa de Victor, traçando metas para crescer profissionalmente.
Valentim, agora estudante do Dublin College, se encantou com a estrutura do lugar desde o primeiro dia. No entanto, se adequar ao inglês e lidar com o TDAH não foram tarefas fáceis. Com a ajuda de uma tutora dedicada e do psicólogo, ele começou a encontrar um ritmo, mas havia algo que permanecia difícil: fazer amigos.
Ele se esforçava para se integrar aos grupos, mas sempre parecia faltar alguma coisa. Havia noites em que chorava sozinho no apartamento, sentindo o peso da solidão, para depois se culpar — afinal, aquela oportunidade era o sonho de tantas pessoas. Nas videochamadas, fosse com os amigos, os pais ou Noah, Valentim aparecia sorridente, cheio de novidades. Mas, quando a tela se apagava, o silêncio do apartamento voltava a envolvê-lo.
O curso, por sua vez, era um verdadeiro jogo de gato e rato. Os alunos precisavam criar projetos, desenvolver marcas e vendê-las. Por causa do sotaque, Valentim era frequentemente colocado nos bastidores, e ele percebia que os colegas faziam isso de propósito.
Naquela tarde fria, o trabalho do grupo era vender donuts em um movimentado ponto de Dublin. Valentim usava um moletom amarelo estampado com donuts coloridos — uma peça divertida que contrastava com o céu nublado e as ruas geladas. As mangas estavam levemente dobradas, revelando parte dos pulsos. Ele segurava uma bandeja recheada de rosquinhas, o rosto iluminado por um esforço genuíno para manter o bom humor.
— É só um ano e meio, Valentim... Em breve, o Noah vai estar aqui e tudo vai ficar bem — murmurou para si mesmo, ajeitando o peso da bandeja.
— Ei, Brasil! — gritou Théo, um rapaz francês que parecia ter prazer em diminuir Valentim sempre que podia. — Essas gatinhas querem donuts. Esse é o nosso "empregado", direto do Brasil! — disse, arrancando risadas das garotas.
Valentim respirou fundo, pegou um guardanapo e serviu as moças com um sorriso educado. Uma delas, rindo, deixou discretamente um papel com o próprio contato. Valentim fingiu colocá-lo no bolso, mas deixou cair de propósito no chão. As jovens pegaram seus donuts e foram embora, ainda rindo.
— Da próxima vez, nada de falar espanhol — ralhou Théo, pegando a bandeja que Valentim lhe entregava.
O brasileiro, já cansado, encarou o colega.
— Quer saber? Vai tomar no cú — respondeu, em alto e bom português, deixando Théo confuso. — Agora vende aí, que eu vou tirar meu horário de almoço.
Valentim se afastou, respirando fundo, enquanto o vento gelado bagunçava os fios do seu cabelo. Mesmo cansado das provocações, ele sentia que estava aprendendo a colocar limites — e isso o fazia caminhar com um pouco mais de firmeza pelas ruas de Dublin.
Valentim estava puto. Queria gritar. Queria socar alguém — Théo, de preferência —, mas se afastou antes que fizesse alguma besteira. A respiração saía pesada, formando pequenas nuvens no ar frio. Caminhou até a praça de Dublin, aquela mesma que sempre lhe trazia uma sensação de paz. As flores, apesar do inverno, resistiam em canteiros bem cuidados; tons de amarelo, roxo e branco enfeitavam o caminho.
Pessoas passeavam calmamente, algumas com cafés fumegantes nas mãos, outras acompanhadas de cachorros que saltitavam entre folhas secas. O sol, ainda que tímido, iluminava as pedras claras da calçada, refletindo um brilho suave nos vitrais das lojas ao redor. Era um dia gelado, mas bonito.
O celular vibrou em seu bolso. Ao ver o nome na tela, um suspiro escapou.
— Oi, idoso? — a voz de Noah veio leve, divertida, do outro lado da linha.
"Idoso" era o apelido que Noah inventara quando entrou no Instituto Discere, por Valentim ser um ano mais velho. Ele tentou disfarçar o nó que apertava sua garganta, mas Noah percebeu.
— Você está chorando? — perguntou o namorado.
— Não — respondeu, limpando o rosto rapidamente. — Só estou um pouco resfriado.
— Hum... então vou precisar cuidar de você.
Antes que pudesse responder, alguém esbarrou nele. O celular quase caiu, mas Valentim o segurou no reflexo. Virou pronto para reclamar — e congelou.
Era Noah.
Noah, seu namorado, estava parado bem ali, no meio da praça. Valentim sentiu os lábios tremerem, sem saber se era pelo estresse ou pela emoção. Com cautela, esticou a mão e tocou o rosto do outro, confirmando que não era um sonho. As lágrimas, contidas até então, transbordaram. Ele o abraçou forte, como se pudesse impedir qualquer possibilidade de desaparecimento.
— É você mesmo?
— Sim. — Noah sorriu, emocionado, mas tentando manter o controle.
— Pensei que você vinha só no final do mês... — Valentim continuava agarrado a ele.
— Eu não te contei? Acho que esqueci esse pequeno detalhe... — cantarolou Noah, divertido.
— Contou o quê?
— Eu vou estudar em Dublin. — A confissão saiu acompanhada de uma lágrima teimosa.
— Você está brincando comigo?
— Nunca brinco quando o assunto é amor, meu querido. — Noah acariciou o rosto do namorado e o beijou.
Valentim ignorou as pessoas ao redor. Nada importava além da certeza de que Noah estava ali, real, no coração da Irlanda. Mas o beijo foi interrompido por uma voz conhecida.
— Sogrão! — Valentim correu e abraçou Raphael, em seguida Gabrielle, que riam ao ver o filho feliz. Ele puxou Noah para dentro daquele abraço apertado.
— Valen... — tentou falar Raphael, sufocado.
— Querido, tá muito apertado — avisou Gabrielle, rindo.
— Deixa, mãe. Ele tá merecendo esse amor todo — respondeu Noah, orgulhoso.
Mais tarde, seguiram para um café aconchegante, onde Raphael explicou que se cansara de ver o filho triste em casa. Sugeriu que Noah aproveitasse o ano sabático para estudar fora, e o rapaz escolheu Dublin. Gabrielle pediu que Valentim cuidasse dele, ao que ele prontamente ofereceu seu apartamento, localizado próximo ao metrô.
As semanas seguintes foram uma descoberta. Valentim apresentou Dublin a Noah e sua família: restaurantes, livrarias, cafés escondidos entre becos. Raphael, empolgado, aceitou palestrar para os colegas de Valentim sobre empreendedorismo no Brasil.
No dia do evento, Théo não resistiu à provocação:
— Ei, Brasil, você conhece um senador? Grandes coisas...
— Será mesmo? Théo Gagnon, certo? — respondeu Raphael, em francês impecável. — Estudei com seu pai, Armand Gagnon. Uma pena o negócio dele não estar indo bem. Foi por isso que ele o enviou para cá, entendi.
— Olá, senhor... — Théo empalideceu.
— Inclusive, um dos cases que vou apresentar hoje é sobre Victor Almeida Cardoso. Sabe quem é?
— Não, senhor.
— É o pai do Valentim. — Raphael pousou a mão no ombro do rapaz, que ficou boquiaberto.
— Fecha essa boca, idiso, pode entrar mosca — brincou Noah, rindo do namorado que estava perplexo.
A palestra foi um sucesso. Raphael falou sobre política e empreendedorismo no Brasil, elogiou Gabrielle pela gestão das terras da família e mostrou fotos de Victor e Valentim, surpreendendo os colegas que costumavam subestimar o brasileiro.
Na última noite antes do retorno dos pais de Noah, todos jantaram juntos em clima de celebração. Gabrielle, emocionada, pediu:
— Cuida do nosso Noah. Ele é meu tesouro mais precioso.
— Ele é o meu também. Conhecer o Noah foi como mergulhar dentro de mim mesmo — respondeu Valentim, arrancando um olhar constrangido de Noah. — Eu só falei verdades.
Raphael segurou a mão do filho.
— Estude, dê o seu melhor. Um dia, mesmo sem querer, você será um grande político. Tem pautas que só você pode defender.
Na manhã seguinte, Noah despertou com uma mensagem dos pais avisando que já estavam no aeroporto. Observou Valentim dormir, tranquilo. Pensou em tudo o que ouvira de Gabriel, o ex, que dizia que ele nunca seria feliz porque homens como eles não mereciam felicidade. Noah sorriu: sua vingança era silenciosa e perfeita — seu final feliz estava ali, respirando ao seu lado.
Se levantou, abriu a persiana e viu Dublin seguir seu curso: ônibus passando, gente a caminho do trabalho, o frio ainda presente, mas com um céu límpido.
— Você fica lindo com as minhas roupas, eu já falei isso? — Valentim, sonolento, apoiou o queixo na mão e admirou Noah que usava uma blusa sua.
— Bom dia, dorminhoco.
— Vem cá... o dorminhoco precisa de mais quatorze mil beijos — disse, manhoso.
— Te dou um milhão. — Noah correu para a cama, mergulhando nos braços dele.
Carícias, beijos e promessas preencheram o quarto pequeno no bairro tranquilo de Dublin. Aquela história, que começara nos corredores de uma escola, agora ganhava novos voos.
— Ei, a gente vai ficar bem, certo? — Valentim perguntou, enquanto acariciava o namorado.
— Eu não tenho dúvidas, meu amor — respondeu Noah, selando a promessa com um beijo.