A noite estava fria, o ar carregado de umidade e cheiro de asfalto molhado da chuva recente. Tranquei a porta do apartamento com um giro seco da chave, o coração batendo forte enquanto pisava na rua vazia. Tudo estava quieto demais, como se a cidade soubesse do peso que eu carregava. Minha noiva, Clara, havia saído há uma hora, a voz calma ao telefone, dizendo que ia pra para a faculdade, preparar a apresentação de um simpósio:
- É só um trabalho daquele professor chato, Lucas. Pode demorar um pouco. - Ela disse ao telefone, com aquele tom que tentava me tranquilizar.
Mas eu estava preocupado. Não era só saudade. Era um pressentimento que me comia vivo já há algumas semanas. Aliás, já fazia um tempo, semanas, talvez meses, que eu vinha notando algumas coisas: ela ficava mais tempo ao telefone, nossas conversas não se aprofundavam como antes, roupas que ela usava para sair, mas nunca comigo. E então, há vinte minutos, recebi uma mensagem de Ana, uma colega de faculdade dela, mas havia se tornado minha amiga também:
ANA - “Lucas, abre o olho. Vi aquele seu amigo, o Rafael, andando pela facul hoje.”
LUCAS - “Ué! Mas a Clara não está aí com vocês, fazendo um trabalho?”
ANA - “Está. Mas a gente já está terminando.”
LUCAS - “Mas não entendi. Por que tá me contando isso? Tá rolando algo entre eles, é isso?”
ANA - “Não vou me meter mais. Sou amiga de vocês dois, mas vi coisas que não curti. Fica esperto.”
Rafael. O nome me surpreendeu de cheio. Era um conhecido meu da faculdade, um cara que eu considerava um amigo e foi através de mim que ele conheceu Clara, num show de rock. Nunca pensei que ele teria coragem de se aproximar dela com outras intenções, muito menos de que ela cederia. Mas não posso negar que o cara tinha presença: alto, corpo malhado de academia, cabelo bagunçado, barba desleixada e um sorriso que as meninas adoravam. Clara dizia que era “só um amigo meu”, mas a voz dela tremia quando falava dele. A mensagem de Ana só me deu maior certeza de que eu precisava agir.
Peguei as chaves da moto, joguei um casaco escuro e saí, o pulso acelerado, a cabeça cheia de perguntas que eu não queria responder. Antes que eu saísse, Clara mandou uma mensagem. Imaginei que fosse para busca-la e até sorri da minha crise besta de ciúme, mas o que veio depois me deixou ainda mais incomodado:
CLARA - “Amor, o trabalho tá demorando. Pode ir jantando que não sei quando vamos acabar.”
LUCAS - “Sério, amor!? Tem certeza que não tem uma previsão de quando vão acabar?”
CLARA - “Nenhuma. Talvez até eu durma na casa de uma das meninas, porque a coisa aqui ainda vai longe. Mas, fica tranquilo, se terminar mais cedo, eu te aviso.”
Agora eu tinha certeza de que algo estava errado. Para piorar as coisas, ela enviou uma foto dela, junto das meninas numa sala, mas o que despontou foi o seu vestuário: legging preta colada nas coxas, top justo marcando os seios, uma blusa leve por cima, bem maquiada para um simples trabalho... O cabelo castanho-escuro caía até a cintura, e a tatuagem no braço esquerdo, ramos e flores que fiz no último verão, aparecia sob a manga. Respondi:
LUCAS - “Tá bonita, amor. Mas essa roupa não tá meio ousada pra um trabalho de faculdade? Hoje tá frio pra caramba!”
CLARA - “Acha!? Eu não acho. Só quis ficar mais à vontade. Só isso. Seu eu conseguir terminar mais cedo, eu te aviso. Beijo.”
O beijo, algo tão normal, agora soava forçado, como se ela quisesse evitar minhas suspeitas. O trabalho deveria ter começado às sete, mas já passava das nove. Resolvi ir até lá e observar discretamente. Não demorei quinze minutos e já estava estacionando a moto a uns quarteirões da faculdade, numa rua escura. Como se eu estivesse fazendo algo errado, caminhei com o capuz da blusa cobrindo o rosto. Meu coração batia forte, cada passo martelando no peito. A noite zombava de mim, às vezes me escondendo na escuridão, às vezes me revelando em luzes falhas de postes velhos.
Cheguei até o prédio de seu curso e como já havia feito amizade com o bedel, pois namorava a Clara, ele me deixou entrar. Fui até a biblioteca, mas nem sinal dela ou de seu grupo. Segui até sua sala de aula, mas não havia ninguém naquela hora. Segui até o Diretório Acadêmico, mas outra vez deu em nada. Decidi ir até a lanchonete e aí sim a vi, mas não com suas colegas, apenas Rafael estava lá, sentado à mesa com ela. Eles conversavam animadamente, mas em momento algum ele a tocou ou ela a ele.
Então os vi se levantarem e saírem. Escondi-me como pude e eles não me notaram. Eles seguiram até saírem da faculdade, andando lado a lado, conversando, mas sem intimidade alguma. Fiquei confuso, pois eles não pareciam nada mais do que simples amigos. Eles seguiram por uma rua escura até chegarem perto de um sedan preto.
Fui atrás, pisando leve. Meu corpo agia sozinho, movido por curiosidade. Clara parou perto do carro. Rafael foi do outro lado, mãos nos bolsos, postura solta. Clara sorriu, aquele sorriso que eu achava que era meu, misturando doçura e provocação. Ela abriu a porta do carro e entrou. Rafael também.
Me escondi atrás de um arbusto, o galho arranhando meu braço. O carro estava na escuridão, os vidros embaçando com o calor deles. Meu coração parecia explodir. Vi Rafael se inclinar em direção à Clara, colocando suas mãos em seu rosto, e ela o encarou com aquele sorriso que era meu. Eles se beijaram, primeiro devagar, lábios se tocando, se roçando. Depois, o beijo se intensificou, havia pressa, como se não aguentassem esperar. Meu peito queimava.
Clara tirou a blusa com um movimento rápido, o top veio em seguida. De onde eu estava, eu conseguia ver seus seios expostos, firmes e delineados. Olhei ao meu redor, temeroso de que alguém mais pudesse ver, mas não havia ninguém, o lugar era ermo. Rafael a tocou com fome, as mãos grandes percorrendo as curvas dela como se já conhecessem o caminho. Ela arqueou o corpo, os lábios entreabertos, os olhos semicerrados.
O carro era pequeno demais para eles, mas as mãos de Rafael não paravam e pela movimentação, deviam estar explorando o corpo dela sem cessar. Clara inclinou a cabeça, o cabelo caindo, revelando a tatuagem que eu amava. Agora, Rafael traçava as flores com os dedos, como se fossem dele.
Eu não conseguia desviar o olhar. Sentia uma dor nova, diferente, como se estivesse sendo golpeado, soco atrás de soco. O ciúme me sufocava, mas havia algo pior: uma estranha excitação, doentia, que me prendia ali, sem forças pra reagir. Eu era um estranho na minha própria vida, vendo Clara virar outra pessoa.
Em casa, ela era doce, calma, com um riso que aquecia. Ali, no carro, era diferente, não era a minha Clara. Os olhos dela brilhavam com poder e desejo, como se soubesse o que queria e como tomar. Ela guiava as mãos de Rafael, ditando o ritmo, enquanto ele se entregava, perdido nela. Só se ouvia os suspiros abafados e o som dos corpos se tocando. Ouvi uma conversa deles, enfim:
- Você gosta de arriscar, né? - Rafael disse, voz grossa, puxando-a mais pra ele.
- E quem não gosta? - Clara respondeu, com um sorriso afiado.
Eles riram, uma risada que cortava fundo, como se compartilhassem uma intimidade que deveria ser só minha, aliás, minha e dela. Ela estava tão solta, tão diferente da mulher que eu conhecia, que era ao mesmo tempo hipnótico e doloroso. Eu queria odiar, mas meu corpo me traía, o calor subindo, as mãos tremendo no celular:
- Você é foda, sabia? - Rafael disse, quase colado nela.
- Foda!? Quero! Vamos? - Ela retrucou, olhos faiscando.
- Tô no caminho certo?
- Tá chegando... Mas tem que ralar mais, senão eu não volto mais. - Disse ela, deslizando os dedos pelo braço dele, marcando os músculos.
- Essa sua atitude me derruba.
- Tá com medinho, tá?
- Nunca! Tô é com um tesão do caralho!
- Então, vem. Mata ele em mim...
Eles se beijaram um pouco mais e ela subiu no colo dele. Mudei minha posição, ficando à frente do carro, mas ainda assim escondido e notei que ela já não usava mais a calça, talvez nem a calcinha. Ela passou a se movimentar freneticamente sobre ele, certamente estavam transando pela forma como ela se mexia. Além disso, eu via as mãos, os beijos, ouvia os sussurros, ou seja, se havia alguma dúvida se ela seria capaz de ir além, ela foi.
Não foi uma transa épica, nem muito demorada, nem poderia ser pelo local onde eles estavam. Tão logo terminaram, ela se sentou no bando ao lado e pelos movimentos, se vestiu. Depois, saíram com o carro. Tive que correr até a minha moto e por muito pouco eu não os perdi. Na verdade, eu os perdi de vista, mas dado o horário, o trânsito estava bem calmo e vazio, então consegui localizá-los. Eles seguiram até um barzinho que fechava bem tarde. Dei-lhes um tempo e entrei no barzinho, localizando-os ao fundo. Consegui um lugar bem próximo, mas atrás de uma parede, e o que ouvi, me tirou o chão:
- Eu não sou o primeiro, não é? - Perguntou o Rafael.
- Primeiro, o quê? - Brincou Clara, naturalmente sabendo do que ele falava.
- O primeiro, ué! O primeiro com quem você fica...
Clara riu, um som carregado de ousadia e sarcasmo:
- Rafa, aqui entre nós, eu já fiz coisas que ele nem sonha. - Disse, com um estranho tom na voz.
- Conta uma.
- Conto nada.
- Ah, vai! Só uma... - Ele disse e a beijou, continuando: - Uma bem safada para me excitar e a gente terminar num motel depois.
Ela riu alto e falou:
- Uma vez... Teve uma vez que eu disse que ia pro campus e fui, mas não para estudar. Eu fui fazer um... uma recuperação na sala de um professor.
Rafael engasgou:
- Cê deu para o professor!? - Ele perguntou assim que se recompôs.
- Professores. EramSafadinha... E ele não sacou?
- Que nada. Eu tinha ido para a faculdade, esqueceu. Nunca que ele iria desconfiar da sua recatada e inocente noivinha. - Ela riu novamente.
- Maldade do caralho, Clara!
- Ué!? Falou o talarico que acabou de comer a noiva do amigo. Exemplo de retidão...
Ele deu uma risada também e continuou:
- Touche! E teve alguma outra?
Ela riu novamente e não se acanhou:
- Uma noite, eu disse que ia sair com as minhas amigas, apenas para comer um lanche. Mas eu já tinha um esqueminha armado com um ex que eu namorei por um tempo. Voltei com a xoxota inchada nessa noite. Tive que fugir do Lucas por quase uma semana.
- Eita! Quem é esse monstro?
- O nome não interessa. Era só alguém que sabia me pegar gostoso. - Ela deu uma risada e continuou: - Mas era grande mesmo, cheio de gás e safado pra caralho.
- Mas teve mais, né? Não acredito só nesses dois aí...
- Claro que teve! Como eles mesmo eu repeti algumas vezes. Ainda assim saí com uns outros meninos por aí...
- Você é um perigo, Clara. Mas me fala, ele nunca percebeu essas suas escapadas? Como você despista ele?
- Fácil. Uma mentirinha aqui, um textinho bonito sobre fidelidade e amor eterno ali, e ele acha que tá tudo certo.
- E eu! O que sou nesse seu esquema?
- Ué! Você é uma parte boa, afinal, você é amigo nosso, de confiança, e posso até transar sem camisinha, porque convenhamos: transar de camisinha é o uó, né? Só que eu não me prendo a ninguém. Gosto de ser livre.
- Ninguém mesmo? Nem ao Lucas?
Ela se calou por um tempo, até longo demais, mas também respondeu:
- Pois é... O Lucas é um negócio diferente. Eu amo aquele cara e ele transa bem, viu? Não pense que eu procurou outros porque não tenho em casa. Ele é bem bom na cama. Só que... não sei... Eu até tentei ficar só com ele, mas senti falta da minha liberdade.
- Essa sua liberdade ainda vai te matar.
- Só se for de gozar e é melhor você curtir enquanto pode, porque eu não mudo. Se não mudei pelo Lucas, não vou mudar por ninguém.
Cada frase era um tapa na minha cara. Ouvi-la confessar, com tanta frieza, que me enganava sem esforço, que vivia outra vida, fez tudo desabar. A excitação virou um vazio gelado, as mãos tremendo de raiva. Clara, a mulher com quem eu imaginava me casar, estava ali, mostrando uma face que eu nunca imaginei que tivesse. E o Rafael, aquele que pensei ser meu amigo, com seu sorriso arrogante, parecia vibrar com cada palavra.
Eu recostei a minha cabeça na parede, nervoso, sem saber o que fazer. Eles ainda conversaram mais algumas coisas sobre essa “vida loca” da minha noiva. Ouvi sons de beijos estalados e depois a voz dela:
- Melhor eu ir, senão meu noivo desconfia.
- Mas a gente não ia no motel?
- Cê não dá mais conta de mim essa noite, Rafa...
- Eu tenho uns amigos que topariam uma brincadeira se você estiver a fim?
Clara riu e ficou em silêncio por um instante, mas logo emendou:
- São de confiança?
- Total! É só a eu ligar que a festa tem tudo para virar a noite. Cê deve conhecer eles... o Celão e o Tadala.
- Tadala?
- É. Conhece?
- Não. Só fiquei curiosa pelo apelido...
- É que ele sempre tem um tadalafila no bolso para essa ocasiões. E aí? Topa?
- Topo! Liga já. Vai.
As confissões de Clara ecoavam na minha mente, cada uma mais dolorosa que a anterior. A raiva, a dor, a humilhação, tudo se misturava em um coquetel amargo que queimava minhas veias. Saí de trás da parede e parei ao lado da mesa deles. Clara estava de costas para mim. Ele estava perdido nos olhos dela, mas num instante qualquer, ele me viu. Viu e congelou. Seus olhos se arregalaram, o corpo tenso como se tivesse petrificado. Clara percebeu a mudança e virou a cabeça, confusa, até que seus olhos encontraram os meus:
- Lucas!? - A voz dela tremia, uma mistura de choque e pânico: - O que? Mas... como você...
Levantei a mão, pedindo silêncio. Nesse instante, meu olhar caiu sobre a aliança de compromisso no meu dedo, o metal brilhando sob a luz fraca do bar. Com um movimento lento, quase cerimonial, retirei-a e a segurei por um instante, sentindo seu peso, não apenas o físico, mas o emocional também. Era o símbolo de uma promessa que agora eu descobrira não passar de uma mentira. Joguei-a dentro do copo da bebida dela, o som do metal abafado pelo líquido:
- Vamos resolver isso sem estresse, Clara. - Falei, minha voz firme, apesar da tempestade dentro de mim: - Não precisamos falar sobre o que eu vi na rua da faculdade, nem sobre o que eu ouvi aqui.
Os olhos dela se encheram de lágrimas, o rosto pálido, como se um abismo se abrisse sob seus pés. Havia dor ali, uma dor genuína, mas não era suficiente para apagar a minha. Rafael ficou em silêncio, o rosto tenso, como se soubesse que qualquer palavra sua só pioraria as coisas. Virei-me e comecei a caminhar de volta para a saída do bar. Mesmo com a música ambiente, ouvi o som dos soluços de Clara ficando mais altos a cada passo. Era um choro desesperado, quebrado, mas eu não olhei para trás. Ela merecia sentir pelo menos uma fração da dor que ela havia me causado.
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