A corrupção - Prólogo

Da série A corrupção
Um conto erótico de J.M.Calvino
Categoria: Heterossexual
Contém 2466 palavras
Data: 07/10/2025 20:05:05

Advertência:

As histórias a seguir foram baseadas em fatos reais.

Nomes e lugares foram alterados apenas para proteger os vivos.

As narrativas foram reconstruídas a partir de relatos autênticos, extraídos por meio de mineração de dados em registros públicos, diários, depoimentos e investigações esquecidas.

Alguns personagens acreditaram poder negociar com o inferno — e, por um tempo, pareceram vencer.

Mas o preço cobrado por forças demoníacas nunca é o que se promete, e ninguém sai ileso de um pacto com o abismo.

Este livro não busca glorificar o mal, mas advertir: quem chama pelas trevas, cedo ou tarde, será atendido.

Se sentir algo estranho ao virar estas páginas — reze.

PRÓLOGO

O bunker, nos fundos do terreno da antiga igreja, tinha paredes de concreto grosso, com uma única lâmpada pendendo do teto – amarela, raquítica, como se tivesse medo de clarear o que se passava ali. A mulher estava presa à mesa, os pulsos amarrados com tiras de couro, as pernas amarradas tão juntas que a carne começava a arroxear. Vestia uma camisola branca que, pela sujeira, podia ter pertencido a um asilo ou a um sanatório. O cabelo, castanho, estava tão embaraçado que parecia uma coroa de espinhos, caindo na frente do rosto como cortina de pesadelo.

O pastor — Vieira, nome de guerra e de batismo — transpirava pelas axilas e pela testa, mas não hesitava. O rosto era só músculos e olhos fundos, parecendo que cada prece gasta o envelhecia três meses. Ele apertou a Bíblia Almeida Revisada contra o peito, tomou ar, e começou o ritual com voz de trovão:

— Eliza! Filha de Judite, neta de Otávio, mulher de valor, já foi exemplo para nossas meninas. Lembra de mim, Eliza? Você é boa. Deus te ama, e nós viemos te buscar!

No fundo do bunker, três diáconos suavam como bois, cada um segurando uma vela e murmurando salmos de trás das máscaras pretas improvisadas. As chamas tremulavam e faziam o suor escorrer nos olhos, ardendo, como se até o ar rejeitasse estar ali.

Eliza permaneceu imóvel por cinco segundos, só o peito subindo e descendo. Então, da garganta dela saiu um ruído impossível de classificar — primeiro um gemido baixo, depois uma risada infantil, daquelas que quebram a espinha do ouvinte porque não deveria vir dali.

— A Eliza não mora mais aqui — disse a voz, melodiosa demais, como se uma criança de cinco anos estivesse aprendendo a mentir. — Agora é casa de festa. Vocês querem entrar?

O pastor fechou os olhos por um instante, sufocando o pânico que ameaçava transbordar. Quando voltou a falar, foi mais alto:

— Sai dessa mulher, espírito imundo! Te ordeno pelo sangue do Cordeiro, te ordeno pelo nome de Jesus!

A mulher se arqueou, o corpo todo tenso como uma linha de violino prestes a arrebentar. Os olhos reviraram, mostrando o branco com pequenas fissuras de sangue. A boca se abriu além do natural, e dali saiu uma salada de vozes: o coro de homens embriagados, gritos de meninas, o uivo surdo de um cão de rua, o mugido de uma vaca, e por cima de tudo, sempre, aquela risada infantil, saltando entre as outras como um pássaro louco.

Os diáconos recuaram meio passo, mas o pastor nem piscou.

— Quem é você? — perguntou, a Bíblia erguida como escudo. — Diz o teu nome!

O corpo de Eliza ficou flácido, então rígido, depois começou a se debater tanto que a mesa ameaçou partir no meio. As amarras rangeram, quase cedendo. A cabeça dela girou como se não tivesse ligamento no pescoço, e os olhos fixaram o pastor. Quando falou, era uma voz de mulher madura, entrecortada por sons de algo mastigando vidro.

— O nome não importa, animal. O nome é só um invólucro. Nós entramos por onde há rachadura, e aqui, tudo é rachadura.

O pastor se aproximou mais, quase tocando a testa da possessa com a capa dura da Bíblia.

— Eu te expulso! Em nome do Deus vivo, eu te quebro!

O demônio gargalhou, desta vez com vozes de porco, o som tão alto que a lâmpada tremeu no soquete.

— Vocês são engraçados. Gastam a vida inteira pregando disciplina, mas basta uma noite, uma dose, um toque, e vocês se entregam de joelhos. Adoro ver a queda. É linda, é perfeita. O melhor pecado é o que começa por zelo.

O pastor rangeu os dentes. Sentia a tentação de esganar a mulher, de tapar a boca dela para parar de ouvir, mas resistiu. Apertou a Bíblia com tanta força que o polegar ficou branco.

— Responde! Diz teu nome! Diz quem te enviou!

A mulher arfou, depois ficou imóvel, como se preparasse para algum golpe decisivo. E então, num sussurro de criança que parecia vir do centro do peito, respondeu:

— Eu tenho muitos nomes. Eu sou o que reluz na escuridão. Sou aquela que brilha em meio à luz. Fui gerado por Lilith e gerei mil filhos nela. Me chamam de mãe, de puta, de abismo, de anjo. Mas você pode me chamar de Candariel, se quiser. Eu gosto de nomes bonitos.

Os diáconos começaram a chorar, um deles se ajoelhou no cimento, tremendo de febre e medo.

O pastor sentiu os olhos arderem, mas não ia recuar agora. Abaixou o rosto até quase encostar no da mulher, e gritou:

— Então, Candariel, em nome de Jesus, você está quebrada! Eu te amaldiçoo! EU TE EXPULSO!

O bunker ficou quieto de novo, só o som da respiração dos presentes e das amarras ainda vibrando pelo esforço do demônio.

Então, um a um, os vidros das pequenas janelas explodiram, estilhaçando para dentro. Um cheiro de enxofre tomou o ar, e por um instante, todos viram: uma fumaça negra se movia debaixo da pele da mulher, como serpentes em festa, e das feridas invisíveis dela gotejava um líquido escuro, entre o sangue e o alcatrão.

A possessa virou a cabeça para o teto e, com a voz de menina, cantarolou uma musiquinha de roda — daquelas que crianças aprendem antes de aprenderem o medo.

— Um, dois, Candariel no arroz. Três, quatro, Candariel no prato. Cinco, seis, Candariel outra vez...

O pastor caiu de joelhos, olhos vidrados, a Bíblia aberta nas páginas finais. Ali, uma folha solta tremulava com o vento gelado que, de repente, invadiu o bunker.

O último a resistir foi o pastor. Ele ficou, encarando a mulher, até que a própria lâmpada, vencida, apagou.

Silêncio. Só o som dos próprios corações, batendo alto, e o eco da musiquinha rodando pelo escuro.

***

A lâmpada da cela morreu, mas a noite do bunker estava só começando.

Por um tempo, ninguém ousou respirar. O pastor Vieira sentia o peso da treva sobre as costas, como se o próprio ar tivesse virado água negra, densa, capaz de afogar em vez de aliviar. Os diáconos se encolheram nas sombras, um deles ainda soluçando baixinho, puxando as próprias orelhas como se pudesse tampar o pesadelo.

Na mesa, Eliza estava largada, com o rosto tombado para o lado. A pele parecia mais branca do que nunca, tão translúcida que as veias despontavam azuis sob a luz residual. Mas o pior era o sorriso: um risco fino de triunfo, como se o corpo soubesse de algo que a alma não tivesse coragem de encarar.

Vieira não esperou o tempo da dúvida. Avançou até a mesa, a Bíblia agora aberta, e despejou sobre a testa da mulher um jorro de óleo ungido. O líquido escorreu, reluzindo mesmo na penumbra.

— Você não vai vencer, Candariel. Não vai — sussurrou, antes de erguer a voz para que todos ouvissem: — Pela autoridade do nome de Jesus, eu te ordeno! Eu te amarro! Eu te expulso! NÃO PERTENCE MAIS AQUI!

O corpo de Eliza sacudiu de novo, mas agora o movimento era mais... mecânico. Como se algum motor velho girasse por baixo das costelas, arrancando grunhidos e sons de metal enferrujado. A risada infantil voltou, misturada agora a gritos de bicho doente, um ranger de dentes que fazia cada pequeno pelo do corpo dos presentes se eriçar.

De repente, as amarras do pulso direito se romperam. O couro bateu seco contra a lateral da mesa, e a mão de Eliza veio direto no rosto do pastor, arranhando do queixo até a orelha. Vieira se afastou cambaleando, o sangue pingando quente na gola da camisa.

O segundo diácono reagiu por instinto, tentando segurar o braço solto da mulher. Mal tocou a pele, sentiu uma força impossível para aquele corpo magro — foi arremessado contra a parede, bateu com o ombro e desabou no chão, gritando de dor.

Mas o pastor não arredou pé. Avançou outra vez, os dedos cravando a Bíblia como se a usasse de machado.

— NÃO! — rugiu, tão alto que a voz ecoou até no corredor do lado de fora. — EU TE DETERMINO, ESPÍRITO MALDITO! PELO SANGUE, PELO PODER, PELO ALTÍSSIMO! VOCÊ ESTÁ QUEBRADA!

Foi quando tudo explodiu.

Do peito de Eliza, jorrou um vapor negro, denso, que primeiro rastejou pela barriga, depois subiu aos trancos, tomando o rosto, os cabelos, cada centímetro do corpo. O cheiro era pior que enxofre — era de carne podre, de esgoto apodrecido, de caveira arrancada do túmulo. A nuvem negra se ergueu, girou acima da mesa, formando um vórtice no teto do bunker.

E do meio da fumaça, vieram as vozes: milhares delas, todas as vozes que Eliza já tinha soltado, agora multiplicadas por mil. Cada uma falava um idioma, um tom, um segredo. Algumas cantavam, outras xingavam, outras só choravam. O som era tão alto que a estrutura do bunker gemeu, como se o concreto ameaçasse estourar.

Os diáconos se arrastaram para a porta, de quatro, quase desmaiando de pavor. Mas Vieira ficou. Firmou os pés, os olhos ardendo em lágrimas, e abriu a Bíblia, recitando os salmos mais fortes, os mais cortantes. Cada frase dele parecia empurrar a fumaça para cima, até que a nuvem bateu no teto e ficou presa ali, rodando, enfurecida, mas sem conseguir escapar.

A mulher na mesa, livre das amarras, estava inconsciente, o peito arfando aos solavancos. O terceiro diácono, o mais novo, correu até ela, puxou o corpo leve e começou a arrastá-lo para fora.

Vieira foi o último a sair.

Com as mãos ensanguentadas, apoiou a Bíblia na porta, murmurou uma oração final, e então bateu com força, trancando a entidade no escuro do bunker.

Do lado de fora, o ar da madrugada parecia mais limpo, como se a natureza respirasse aliviada. O pastor caiu de joelhos, exausto, e por um segundo pensou ter ouvido, vindo de dentro do bunker, o riso de criança da Candariel — não de terror, mas de promissora vingança.

O bunker agora era prisão, o túmulo do impossível.

E o mundo, lá fora, mal sabia o que tinha acabado de acontecer.

***

Não existia manhã que aliviasse o peso daquela noite. Quando os primeiros fiéis entraram na nave da igreja para o culto das seis, depararam-se com um cheiro estranho — uma mistura de vela derretida, terra molhada e, sob tudo isso, um toque azedo, quase animal, que escapava das frestas do piso como suspiro de coisa morta. O órgão da sacristia, que nunca desafinava, agora lançava acordes trêmulos, e cada nota parecia mais abafada que a anterior, como se o próprio instrumento tentasse engolir as músicas de louvor.

Pouco depois das sete, os primeiros vieram reclamar ao pastor Vieira. Diziam que uma mancha preta tinha surgido no altar, bem atrás do púlpito. Diziam que os vasos de lírios brancos estavam murchando mesmo regados de manhã e à noite. Diziam que as crianças da igreja dominical não queriam mais passar pela porta da sacristia, e que à noite, mesmo com as luzes acesas, uma sombra escorria do corredor lateral até as paredes do santuário, sempre no mesmo lugar.

O pastor subiu sozinho ao altar e parecia ver: do canto da sacristia, exatamente acima do bunker, começavam a brotar veios negros que serpenteavam pelo reboco, inchando cada dia mais, como raízes de mangue em época de chuva brava. Alguns se ramificavam pelo teto, outros desciam pelas paredes, buscando desesperados um caminho para o chão. Onde tocavam o mármore do altar, o branco virava cinza, depois um cremado amarelado, até estourar em crostas pretas como brasa morta.

O diácono mais velho, homem de poucas palavras, foi quem sugeriu:

— Devia queimar tudo, pastor. Queima a igreja, queima até o chão. Só assim pra se livrar.

O pastor respirou fundo, sentindo o cheiro azedo do mal, agora impregnado nas roupas, nos bancos, até nas páginas da Bíblia. Olhou de volta para o altar, para os veios negros que cresciam como câncer, e disse:

— Se queimarmos, espalha. Não é assim que se vence peste.

O diácono hesitou, depois baixou a cabeça.

— Então o que fazemos?

— Soterramos. Construímos outra por cima. Selamos com terra e oração, oração até o último dos nossos netos — respondeu o pastor, já com o plano inteiro costurado na mente. — Não vai ser só mais um porão, mas ali vai ser tumba. Tumba pra bicho que nunca devia ter saído do inferno.

O rumor correu, e por meses, ninguém pisava no bunker. Alguns juravam ouvir sussurros vindo do chão à noite, ou risos de criança girando pelo corredor. O pastor começou a liderar vigílias de oração ininterruptas: sete dias, sete noites, sempre em grupo de sete. Era o número da promessa, dizia ele, o número capaz de confundir até demônio velho.

Quando a reforma da igreja começou, encheram o bunker com entulho de obras. Por cima, uma camada grossa de sal e cal virgem. Depois, acima do teto da antiga igreja, o novo piso, o altar reluzente, os bancos polidos. Um púlpito mais alto, para que ninguém esquecesse o que dormia lá embaixo. A igreja ganhou outro nome: dos Últimos Escolhidos. Diziam que era para marcar nova era, mas para os antigos, era só para lembrar que o antigo nunca fora embora.

Na festa de inauguração da igreja, as paredes ainda pingavam tinta fresca. O cheiro de cera e flor se misturava ao sal que subia do chão. A congregação cantava hinos como se fosse enterrar o próprio medo. Mas, à noite, quando todos já tinham ido embora, Vieira ficou sozinho no altar, ajoelhado.

Sabia que no fundo do bunker, no núcleo gelado do concreto, o mal ainda se mexia — não mais um grito de fera presa, mas um silêncio paciente, de quem aguarda o tempo certo para acordar.

O pastor abriu a Bíblia uma última vez. Leu em voz baixa, só para si, e bateu três vezes com a palma da mão no tampo do altar.

No eco da terceira batida, sentiu uma brisa — gelada, quase imperceptível — subindo do chão e soprando nas páginas do livro.

Era o sopro de Branca, o aviso de que todo selo é só promessa até o pecado encontrar uma nova rachadura.

A igreja dos Últimos Escolhidos estava pronta, e assim começava a contagem do próximo milagre — ou da próxima maldição.

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