POUSADA DO GALEGO, CAP. 1: DE REPENTE EU EXISTO

Um conto erótico de MR TAO
Categoria: Gay
Contém 1826 palavras
Data: 18/10/2025 21:30:23

Minhas pálpebras abriram ebriamente, alguns segundos se passaram antes de meus olhos se acomodarem e as imagens tomarem foco. Vejo paredes brancas, em um quarto gélido e vazio, desconhecido. Estou coberto por um lençol listrado de azul sobre branco, ouvindo um bipe a se repetir ritmadamente. Me pergunto onde estou, quando percebo os tubos que saem da parte de dentro do meu cotovelo e o monitor ao lado de minha cama: estou num leito de hospital; por isso o bipe. O que havia acontecido? Eu não conseguia me lembrar. Redobro a atenção para o meu entorno: uma mesa de cabeceira, uma janela com a cortina entreaberta, uma pia no canto, uma porta aberta. Nenhuma pessoa. Tento me levantar e, para minha surpresa, não sinto dor nenhuma. Sob a mesa de cabeceira, noto um buquê de jasmins e uma garrafa cheia de água.

Coloco-me sentado e sinto uma tração sobre o meu braço direito. Percebo que o tubo de borracha do medidor de pressão está enroscado no suporte do soro e me desequilibro; retorno à posição horizontal. Tento, com o outro braço, desembaraçar os equipamentos para ter uma melhor mobilidade, mas me sinto fraco, cansado. Que diabo! O que aconteceu comigo. Eu tento recordar os fatos, mas nada me vem à mente. E então, de súbito, percebo algo ainda mais aterrador: eu não me lembro de absolutamente nada. E com "absolutamente nada", não estou me referindo unicamente à série de eventos que me levou ao hospital, mas sim a todos os eventos. Eu não me lembrava do dia anterior, nem da semana anterior, nem do mês anterior. Se alguém me perguntasse o meu nome, eu não saberia responder. Olho para os meus braços brancos, meu torso descamisado, e vejo um corpo magro, judiado, mendicante por uma fração de sol. Apalpo meu rosto e sinto a aspereza de uma barba apontando para nascer. Aquele corpo me estranhava, parecia não ser meu.

E, interrompendo a surpresa do meu descobrimento, vejo um homem vestindo scrubs verde-água que cobriam todo o corpo e máscara cirúrgica, com os olhos estatelados, que rapidamente vira-se para o lado e diz "doutor, o paciente do leito 5 acordou!", espantado. Um pedaço de minuto passa, e de repente entra um homem alto, de tronco forte, usando um jaleco branco aberto e mostrando, por baixo, uma camisa social cinza. Ele se aproxima e me olha com olhos azuis, clínicos, de cima a baixo. Senti-me envergonhado de ser examinado assim, tão vulnerável.

- Bom dia - diz, enquanto olha para a prancheta - Bruno! Que benção te ver assim, depois de tanto tempo...

Bruno, eu tinha nome então. E eles sabiam, então alguém devia saber que eu estava lá. O médico imediatamente começou a me tocar: abriu-me os olhos e meteu uma luz incômoda sobre minhas retinas, ouviu o meu peito com o estetoscópio e apalpou as minhas pernas.

- Você consegue dizer algo? - perguntou o doutor. - Você deve estar um tanto assustado... vamos chamar seus amigos.

- Minha família? Quem é minha família? - perguntei, apavorado. Amigos? Por que amigos? Será que eu não tinha nenhum familiar procurando por mim.

- Eu estou aqui há quanto tempo?

- É... Bruno... você está aqui há quase um ano. Nós tentamos entrar em contato com seus familiares, para declararmos de vez a morte cerebral, mas nenhum deles nunca respondeu. - Disse o médico, pensativo, perplexo. - Você é um daqueles casos raros, fera! Eu não tinha esperança nenhuma. Não desligamos os aparelhos porque não tínhamos suporte legal, sua família nunca apareceu... uma amiga sua me ameaçou, ela sempre vem te ver. Te encontraram na beira de uma rodovia, perto daqui, do que você se lembra.

E então, com medo, me recolhi, com o joelho apertado entre os braços. Tudo parecia tão inóspito, mas aquele médico parecia, de algum modo, familiar comigo. Era como se eu tivesse acordado de um longo, longuíssimo porre, e não me lembrava como tinha chegado lá. Minha existência, por si só, era uma baita incógnita.

- Eu não me lembro, doutor. - Falei, receoso. - Eu não me lembro de nada.

- Até quando você se lembra, Bruno?

Era peculiar como esse nome me parecia estranho; parecia que não era meu. Não me recordava, porém, qual nome podia ser meu. A única certeza que eu tinha era a de que eu estava ali, assustado, amnésico.

- De nada. Eu só sei que eu me chamo Bruno porque o senhor falou... Minha família... Por que eles não vêm?

O médico me olhou, curioso, talvez desconfiado, e anotou alguma coisa na prancheta. Ele olhou para o enfermeiro e fez um gesto com a cabeça, e depois voltou o olhar para mim. Deu um sorriso, e então percebi como era um homem bonito.

- Dois amigos seus vêm te ver quase todos os dias, eu vou entrar em contato com eles. Eles devem saber melhor o que houve com sua família e você.

Hesitou por um instante, e completou:

- Cara, sem brincadeira, você estar vivo é um milagre. Nós vamos fazer alguns exames hoje, beleza...? Me diz, você sente alguma dor?

Eu reflito sobre o meu quadro ali. É gozado estar nessa situação, tão desesperadora. O que será que aconteceu com esse Bruno, ou quem quer que eu seja? Em que esquina eu me perdi? Meu desespero, todavia, era completamente indolor.

- Não, doutor. Sinto dor nenhuma.

Indago-me, pode o desassossego desse existir sem existir ser chamado de dor? Sinto-me angustiado por meu anonimato forçado, como se o livro da minha história tivesse caído no fundo do rio e a tinta das páginas encharcadas tivesse se esvaído. Eu funcionava como um ser humano, mas não tinha recordações do que é ser um. O médico sai da sala e o enfermeiro, antes de acompanhá-lo, me lança um sorriso largo, bonito, que me pareceu genuinamente sincero. Sorriu com os olhos e saiu.

Fico sozinho comigo mesmo e, para mim, eu era, também, um completo desconhecido.

Fico sozinho comigo mesmo e, para mim, eu era, também, um completo desconhecido. Não tinha nenhuma história de quando eu era menino guardada em minhas memórias, nenhum insight, nada. Eu não sabia quem eu era e nem o que eu fazia no mundo. Essa falta de contexto me fazia fantasiar com a minha própria existência: um ponto, que antes não havia e agora passou a existir. Violentamente eu existia, ali, naquele quarto de hospital, eu nem sei onde, eu nem sei quando. Perdido no tempo e no espaço, tudo o que eu era eram funções mentais, que de algum modo foram anteriormente aprendidas, mas que agora se mantinham no automático. Não havia passado, eu era o puro presente.

E então, ainda antes do horário do almoço, um biomédico veio coletar amostras do meu sangue. Ele me disse que eu era um milagre, e que havia rezado por mim. Uns três enfermeiros passaram pelo quarto e me examinaram, mas eu imaginei que, de fato, não lhes era nem obrigação, mas estavam curiosos com o andamento do meu caso. E depois, dois homens carregaram-me numa maca até a sala de tomografia, e me colocaram dentro de uma máquina enorme, para tirarem fotos das minhas entranhas. Quando voltei para o leito, eu estava tão exausto daquele maremoto de informações que cochilei.

Acordei com duas pessoas que eu não me lembrava de ter visto antes. O de cabelo loiro estava radiante de felicidade enquanto o de cabelos castanhos chorava, cheio de ânimos. Eles provavelmente eram os meus amigos. Dois rapazes bonitos, notei. O mais baixo era o moreno, de barba cerrada, que devia ter uns vinte e poucos anos e se vestia com uma camisa listrada e uma calça jeans bem colada; seu nome era Álvaro, tinha a pele azeitonada e um porte forte, mas pequeno. O loiro, mais alto, devia ter uns vinte e tantos anos, era atlético e não tinha barba; estava vestido com uma regata vulgar, o seu nome era Davivocê se lembra de mim? Lembra de mim? Eu sou o Álvaro, seu melhor amigo. - Dizia, com um sotaque que tinha resquícios do dialeto caipira, mas parecia que ele tentava escondê-los.

- De mim você lembra, né, sua puta? - Disse o outro, num tom que me deixou desconfortável (quando eu dei essa liberdade toda? - Entretanto, podia eu mesmo ter dado mesmo; eu era um livro em branco, sem começo). - O Davi, eu infernizo a sua vida...

Eles ficaram desconsolados com a minha impotência. Eu demonstrava em minha mímica que eu sequer lembrava suas feições. Eles pareciam muito frustrados. Álvaro, especialmente, desviou o seu olhar pela janela a fitar uma porção de prédios inanimados. E eu, em pleno descontrole de mim, não sabia como reagir. Eu sentia sim, algum tipo de empatia por eles e queria evitar ainda mais desgaste de seus sentimentos, mas tudo o que eu conseguia sentir no momento era medo e confusão. Eu temia algum desconhecido e esse desconhecido era minha própria história. E eu podia ter adentrado um mundo maquiavelicamente encenado, feito para me ludibriar, para que eu tivesse amigos. Amigos? E uma família... o que foi da minha família? Essa resposta eu ainda não tinha, ficou enterrada no meio do tsunami de perguntas e dúvidas que surgiam intactas. Desse jeito, seco, insensível, porque, no fundo eu sentia também muito dó de mim, eu interrompi:

- E minha família? Quem é a minha família?

Eles se entreolharam, e depois olharam para o chão. Álvaro, que parecia ser o mais paciente dos dois, me contou que eles nunca conheceram meus familiares, e que eu sempre contei para eles a estória de que eu era de uma família tradicional, bem abastada, e rompi com eles após os desgastes que surgiram, nunca mais os vi, nunca os quis ver... e Davi acrescentou que eu fui ainda mais veemente, e mudei meu nome no cartório e nunca contei a eles meu nome original. Curiosa e assustadora história.

E depois eles me contaram que nós três trabalhamos juntos como administradores de uma pousada, uma casa que eu havia "recebido". Alugávamos para vários turistas que queiram curtir sem preocupação uma temporada no litoral.

Apesar de todo o mistério que envolvia o paradeiro de minha família, o fato de eu possivelmente ter bons amigos e trabalhar com eles em uma pousada que, de certa forma, apoiava a minha existência (esse é um discurso estranho, porque minutos atrás eu não tinha certeza de quem eu me atraía, talvez desconfiasse, apenas) me trazia algum orgulho. E esses tipos de sentimento, emoções clandestinas, recheadas de déjà vu, acendiam como lamparinas numa escuridão antiga; eu não podia lembrar, mas eu definitivamente já havia passado por aquelas experiências emocionais antes. Eu já tinha sido ser humano pronto. E então, a constatação de que dois caras me visitaram diariamente num hospital por um ano amenizava a dureza de minha amnésia. Aliás, eles eram tudo o que eu tinha. Eles seriam a luz no meu caminho a partir daquele agora. Era difícil confiar de olhos fechados, mas eu precisava, pelo menos um pouco, não tinha outra opção. Alguma, não muitas; eu escolheria o conveniente.

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