Do Paraíso ao Abismo 5.

Um conto erótico de Lukinha
Categoria: Heterossexual
Contém 5414 palavras
Data: 13/11/2025 16:03:14

A mão tremia quando aproximei o ouvido da porta. Eu não queria ouvir mais, mas era impossível parar. A voz dela, a risada, o tom provocante… tudo martelava dentro da minha cabeça como se o mundo estivesse desabando por dentro.

De repente, o celular vibrou no bolso. Quase deixei cair de susto. Era uma chamada de vídeo da Sara. Por um instante pensei em ignorar, mas algo me pedia para atender.

— Jorge? — A voz dela veio aflita assim que a imagem se formou na tela. — Aconteceu alguma coisa? Você está pálido...

Demorei alguns segundos para responder. A respiração curta, o peito travado. Me afastei um da porta e encostei na parede, tentando não desabar ali mesmo.

— Ela está aqui, Sara... — Murmurei, engolindo seco. — A Ana... Ela está aqui, na faculdade... com outro homem. Estão trancados num depósito, eu ouvi... ouvi tudo, meu Deus...

Seu olhar mudou na hora. Firme, frio. Aquela serenidade que eu nunca consegui entender direito.

— Jorge, me escuta... — Sua voz ficou baixa, mas cortante. — Não entra aí. Não faz nada agora.

— Mas eu... — Tentei dizer, mas ela me cortou de novo.

— Confia em mim! — Ela elevou o tom, mas sem perder o controle. — Você me deu os dias que eu pedi, lembra? Agora eu tenho tudo pronto. Tudo. Mas se você agir agora, estraga tudo o que a gente preparou.

Passei a mão no rosto, tentando conter as lágrimas que já queimavam meus olhos. O ódio misturado à vergonha, à impotência.

— Eu não sei se consigo, Sara. — Sussurrei. — Ela me fez de idiota. E o pior... é que eu ainda...

— Eu sei. — Ela interrompeu de novo, mas com voz mais suave. — É exatamente por isso que você precisa vir pra cá. Agora. Eu te explico tudo, te mostro tudo. Mas não enfrenta essa mulher sozinho. Ela não é o que você pensa.

Houve um silêncio breve, só o som do meu coração batendo nos ouvidos. Então, sem pensar, respondi:

— Eu confio em você, Sara. Desculpa por não ter acreditado antes.

Ela assentiu, com um meio sorriso que misturava tristeza e determinação.

— Eu sei. E é por isso que eu estou aqui. Vem aqui pra casa. Fica tranquilo... Ela não vai sair impune. Prometo.

A chamada terminou, e eu fiquei ali por alguns segundos, imóvel, sentindo o corpo inteiro vibrar entre raiva e medo. Depois guardei o celular e olhei pela última vez para a porta. As vozes ainda vinham abafadas de dentro, mas eu já não queria mais ouvir.

Dei meia-volta e saí. Cada passo era uma batalha contra o instinto de voltar, de gritar, de acabar com tudo de uma vez. Mas a voz da Sara ecoava na minha cabeça, firme, incontestável: “Não agora.” E eu obedeci.

{…}

Ana Flávia:

— Você sabe que eu não resisto... Por que continua fazendo isso comigo? — Minha voz soou quase como num sussurro.

— Eu só te chamei. Se tu não resiste, se não consegue ficar longe, que culpa eu tenho? — Respondeu Murilo.

— Quem manda tu ser tão gostoso? Quem mandou ter um pau desse tamanho? — Eu disse, entre o riso e o desejo. — Quando não estamos juntos, eu até sonho contigo. Sonho com você me rasgando inteira, me preenchendo toda.

— E por que tu ainda continua com o Jorge? — Ele rebateu. — Não é certo o que a gente faz com ele. Às vezes, até me arrependo.

— Esquece o Jorge. — Cortou, ríspida, já de saco cheio. — Tira essa calça logo. Não posso perder mais de uma aula.

— Uma diversão inocente de vez em quando não mata ninguém. Mas, Aninha... tu já fez o cara de corno com metade da galera. E isso apenas neste ano. O Jorge já é praticamente recordista mundial.

— E o que você sabe? Isso é intriga das invejosas. Todas querem o Jorge, mas ele me pertence. É meu.

Levantei meu vestido, empurrei Murilo para baixo, enfiando seu rosto entre as minhas pernas e esfreguei a buceta em sua cara.

— Chupa mais e fala menos. Esquece o Jorge. — Exigi.

A língua de Murilo me invadiu, habilidosa, explorando cada centímetro da xoxota, se demorando no meu grelo.

— Isso… assim… bem aí… safado pirocudo… Ahhhh…

Ele apertava minha bunda, cutucava delicadamente meu cu, sem parar de me chupar com aquela fome que eu adorava. Ele sempre me devorava.

— Eu sou mesmo um cara de sorte, não sou? — Ele provocou. — Se não tivesse te flagrado naquela festa, visto quem você é de verdade, não estaria aqui agora…

O filho da puta adorava me deixar com raiva.

— Era só você mostrar essa pica avantajada que eu teria me derretido toda. Aquele flagrante não estava nos meus planos.

O safado se levantou e me virou de costas, me prensando contra uma prateleira. Ele pincelou a pau na entrada da xoxota e começou a empurrar.

— Vai com calma… e não goza dentro. Não quero assistir aula toda lambuzada.

Ele nem ligou para o meu aviso. Com um empurrão mais potente, ele me invadiu de vez, socando aquele caralho enorme até o fim.

— Devagar, desgraçado. Vai me machucar.

Ele riu, possessivo.

— Tem que deixar marcado, já que o do Jorge, nem faz cócegas.

A insistência em falar do Jorge estava minando o meu tesão.

— Não fica se achando. O Jorge é um ótimo amante. Carinhoso, generoso… ele sempre se preocupa mais comigo do que com ele. É uma pena que eu não o ame…

Acho que irritei Murilo, pois ele passou a estocar mais forte, mais rápido, sem se preocupar comigo. Estava dolorido, não prazeroso.

— Ele te fode assim? Ele te preenche inteira? Aquela piroquinha dele é melhor do que a minha?

Perdi a excitação de vez. Pisei forte no pé do Murilo e me liberei do seu controle.

— Vai tomar no cu, Murilo. Se eu soubesse que ia ser assim, não tinha perdido meu tempo com você.

Comecei a ajeitar minha roupa, queria sair dali, mas Murilo me segurou pelo queixo, apertando, me machucando.

— Você é uma puta manipuladora. Até agora não tirou um centavo do Jorge. Só me enrolou nesses últimos três meses.

Empurrei seu braço, me livrando do aperto.

— Eu já disse que não estou atrás de trocados. Eu quero coisa grande. — Acariciei a mandíbula, tentando amenizar a dor.

— Ele está desconfiado, eu já te disse. Você perdeu a linha nas últimas semanas, aprontou, chegou em casa bêbada…

Eu já tinha explicado mil vezes, mas Murilo se fazia de sonso.

— Eu não te disse que meu primo apareceu? Que encontramos com ele sem querer lá no Espírito Santo? Eu precisava ter certeza de que foi mesmo uma coincidência, que ele não viria atrás de mim, que não estragaria meus planos. — Respirei fundo, sabia que ele tinha razão em ficar preocupado. — Eu pirei com a pressão, tá bom? Satisfeito em me ver admitir que errei?

— Ele não veio, pronto. Bola pra frente. Tá na hora de começar a faturar. — Murilo disse, mais como uma advertência.

Antes de me deixar sair, ele avisou:

— Minha paciência tem limite. Até quando vou ter que esperar? Seu casamento, filhos, depois o divórcio? Acha que eu entrei nessa porque você é irresistível? Acorda, piranha. Você me prometeu benefícios além do sexual e eu já estou ficando de saco cheio de tudo isso.

Deixei o Murilo no depósito e voltei para a sala de aula. Eu tinha algum dinheiro guardado, mas não sei se seria o suficiente para mantê-lo sob controle pelo tempo que eu precisava.

Quem não arrisca, não petisca.

{…}

Alguns meses antes…

Sara:

Depois que o Jorge e a Ana foram embora do bar, no aniversário dele, o silêncio pareceu me engolir.

Fiquei ali por alguns minutos, encarando o copo vazio, ouvindo o garçom recolher os pratos, como se o bar inteiro respirasse aliviado com a saída dela.

Não sei explicar o que senti naquele momento. Raiva, talvez. Ou um tipo de incômodo que não se justifica com palavras. Eu só sabia que tinha algo errado. Mas não com o Jorge, não comigo. Com ela.

Aquela mulher não era quem fingia ser. E eu tinha certeza de que a conhecia. Uma sensação, uma lembrança vaga, mas latente, me consumindo.

Peguei minha bolsa, deixei uma gorjeta boa demais para o tanto que eu tinha bebido e saí.

A noite estava fria, o vento batendo no rosto me ajudava a pensar, a colocar em ordem o que tinha acabado de acontecer. Ana tinha reagido à minha presença como quem vê um fantasma, como uma rival.

A forma como ela desviou o olhar, o tom de voz trêmulo quando eu a provoquei… aquilo não era timidez, não era raiva, era atuação. Uma atuação de quinta categoria, de filme de terror de baixo orçamento.

Cheguei em casa ainda com o sabor amargo do vinho misturado ao perfume caro dela na memória. Abri outra garrafa e me sentei no sofá com uma taça na mão, observando o reflexo do abajur no vidro.

— De onde eu conheço essa mulher? — Me perguntei em voz alta pela milésima vez.

Era mais do que déjà vu. Era como se um pedaço do passado estivesse tentando me avisar de alguma coisa.

Bebi o primeiro gole e fechei os olhos, tentando puxar da memória. Rostos, festas, lugares... e então, de repente, uma lembrança distante começou a se formar. Memórias antigas, um nome que eu não ouvia fazia anos, um episódio ruim que eu jurei ter esquecido.

— Ana Flávia… — Falei em voz alta, só para mim, para gravar de vez a informação na cabeça. — Não... impossível.

Mas quanto mais eu pensava, mais tudo se encaixava. Os traços do rosto eram diferentes, ela amadureceu, mas o jeito de falar, aquele sorriso controlado demais pra ser natural, as memórias vindo como uma onda sem fim.

Levantei, fui até o quarto e abri uma caixa de documentos antigos, procurando informações, tentando lembrar a época exata. E lá estava: o cabelo era de outro tom, o nome no crachá era diferente, mas os olhos... os olhos eram os mesmos.

— Então é você… — Murmurei, o coração disparado. O vinho já não tinha gosto de nada.

Peguei o celular, abri as redes sociais dela, o perfil fechado, as poucas fotos calculadas, os comentários apagados. Tudo tão limpo, tão montado, tão artificial que só confirmava a minha suspeita.

E o Jorge... coitado do Jorge. Tão entregue, tão cego por uma mulher que ele nem sabia quem era de verdade.

Ali, com a taça na mão e o passado queimando na garganta, eu decidi: Eu ia descobrir tudo sobre ela. Cada nome, cada mentira, cada pedaço escondido da vida daquela impostora. Nem que pra isso eu tivesse que reabrir feridas que eu jurei jamais tocar.

Cheguei ao escritório do meu pai antes da hora do expediente. O ar condicionado já estava ligado, mas a recepção ainda meio vazia, perfeita para uma invasão discreta. Ele me recebeu com o mesmo olhar de sempre, aquela mistura de orgulho e preocupação que um pai tem quando a filha aparece sem avisar, num horário estranho.

— O que foi, Sara? — Ele perguntou, fechando a pasta em suas mãos. — Sua mãe está bem? Aconteceu alguma coisa?

Sentei na cadeira em frente à mesa dele, as mãos ainda tremendo. Respirei fundo. Não havia como rodear a questão.

— Pai... preciso de um favor. É delicado. É sobre a namorada do Jorge. Acho que ele pode estar se envolvendo com uma golpista. — Minhas palavras saíram rápidas, diretas.

Ele ficou em silêncio um segundo, avaliando. Conheço o jogo: se eu queria acesso aos arquivos, precisava ser honesta.

— Uma acusação dessas é séria, Sara. Você tem alguma prova? — Ele perguntou, levantando uma sobrancelha.

— Ainda não. Por isso estou aqui. — Respondi. — Mas eu tenho as minhas razões. E não quero que ele se comprometa mais até eu ter certeza.

Apelei para o sentimental.

— Por favor, só me deixa checar o registro de menores aprendizes e estagiários de alguns anos atrás. Se nada aparecer, eu desisto. Se aparecer, eu te explico tudo nos mínimos detalhes.

Meu pai suspirou, a expressão dura do diretor da empresa, não de pai. Ficamos alguns segundos medindo forças até ele ceder com um aceno.

— Você também é uma funcionária, afinal. Mas cuidado. Se você sair por aí acusando alguém sem prova, vai me arrumar problemas no RH.

Ele digitou a senha no sistema, pôs para rodar e me cedeu a cadeira, o gesto silencioso que me autorizava a vasculhar.

O núcleo de arquivos da empresa é um bicho antigo: sistema interno com pastas nomeadas por ano e programa, digitalização de fichas, crachás escaneados, relatórios de estágio.

Entrei no menu, respirei fundo e comecei a cavar. Procurei por “menor aprendiz 2019”, ano que lembrava ter sido o da minha turma, dela e do Jorge. Mas, no caso do Jorge, ele ficava diretamente sob a supervisão do próprio pai, então mal nos víamos na empresa.

Filtrei por “programa de apoio à contratação”. Os arquivos carregaram devagar, e o coração bateu mais forte a cada pasta que eu abria: listas de nomes, relatórios de frequência, fotos. E lá estava: uma pasta com o título “Programa Aprendiz – Turma 2019 – Lista A”.

Cliquei. Nomes, RGs, telefones antigos. Desci a lista até que um nome me chamou atenção: Ana Flávia. Ao lado, a função: auxiliar administrativo – aprendiz. O registro mostrava também a cidade de origem — uma cidadezinha do Nordeste, em Alagoas, e o endereço da época, aqui mesmo na nossa cidade.

Abri o arquivo escaneado. A foto veio em baixa resolução. Nada da Ana sedutora de agora. Era uma garota diferente: mais cheinha, com espinhas marcando as bochechas, óculos de aro grande, o cabelo preso num rabo de cavalo simples. Parecia tímida na fotografia, quase deslocada, com um uniforme um pouco grande. A legenda abaixo trazia o CPF e a data de ingresso: março/2019. Em outra aba, um relatório de desempenho com observações sobre assiduidade e tarefas básicas, sem nada que denunciasse ambição de golpista, apenas uma rotina humilde de quem precisava sobreviver.

Senti uma mistura estranha de alívio e de frio. Alívio porque finalmente tinha algo concreto; frio porque aquela imagem não batia com a mulher que fazia o Jorge suspirar. Havia ali uma pista valiosa: um nome usado oficialmente, um passado registrado.

Enquanto eu lia, meu perguntou, curioso.

— Acha que é ela?

— É ela sim. — Respondi, sem tirar os olhos da tela. — Mas olha como ela era… outra pessoa. Isso explica a facilidade dela em se transformar, em vestir uma pele que não é a dela.

Ele me olhou, sério.

— Você precisa ter muito cuidado, filha. Se isso for verdade, a gente não pode expor o Jorge sem ter tudo na mão. Os pais deles já a adoram.

— Não vou expor — Garanti. — Vou montar o quebra-cabeça primeiro.

Fiquei mais um tempo ali, salvando cópias, anotando números, gravando nomes de colegas daquela época. A foto da “aprendiz Ana Flávia” ficou na tela por um minuto a mais, como se eu quisesse gravar cada detalhe: os óculos, o sorriso apagado, a diferença brutal entre aquela menina e a mulher calculada que eu vinha observando.

Saí do escritório do meu pai com o arquivo salvo no pen drive escondido no bolso. A sensação era de quem encontra a primeira pedra de um caminho perigoso: eu já tinha algo concreto, agora era preciso correr atrás do resto.

No meu tempo livre, comecei a traçar a linha do tempo como quem monta um quebra-cabeça às cegas, peça por peça, sem saber quantas faltavam ou se alguma tinha sido trocada por outra. Tinha uma primeira peça sólida: o registro da empresa, o crachá com o nome Ana Flávia, a foto de aprendiz. A partir dali, foquei no que vinha antes e, sobretudo, no que vinha depois.

Meu método foi o mesmo que uso quando preciso provar alguma coisa no trabalho ou na faculdade: organização, paciência e cruzamento de fontes. Abri uma planilha e comecei a preencher tudo que encontrava: datas de ingresso e saída da empresa, possíveis matrículas em escolas, nomes de professores, bairros onde constavam endereços antigos, telefones que apareciam nos cadastros. Cada pista recebia uma linha, cada linha um nível de confiabilidade.

No começo, parecia simples. Os registros escolares daquela época indicavam uma adolescente deslocando-se entre colégios da região, mudança de escola por transferência de família, rematriculas, histórico com médias medíocres. Nada que sugerisse um perfil de golpista ou alguém com agenda secreta. Havia até fotos da adolescência num álbum público de uma colega: um sorriso de menina, unhas pintadas, cabelo solto… a mesma pessoa da foto do crachá, só que mais jovem, mais desajeitada. Era uma história comum demais.

Mas a primeira lacuna apareceu quando ela completou 18 anos. A partir dali, os sinais simplesmente se perderam. Redes sociais com nomes que batiam nas buscas desapareciam, usuários que antes marcavam a mesma Ana sumiram das timelines; e o pior: bancos de dados públicos que eu esperava encontrar, como cadastros de cursos técnicos, inscrições em programas de qualificação, até registros simples como atualização de endereço em listas locais, não traziam nome, CPF ou dados coerentes. Parecia que ela tinha evaporado do mundo.

Fui então atrás de documentos “analógicos”. Liguei para as secretarias de colégios, pedi cópias de históricos escolares (com a justificativa de pesquisa histórica, o que evitou atrair atenção), vasculhei fotografias antigas, conversei por mensagem com ex-colegas de turma... O relato era sempre o mesmo: “uma menina tímida, que sumiu depois dos dezoito”. Ninguém sabia para onde. Ninguém lembrava de uma despedida, de matrícula em faculdade, de passagem de ônibus para outra cidade. O rastro simplesmente sumia.

Naquela altura, eu já tinha o apelido dela na turma, e nomes de possíveis parentes (dois sobrenomes que apareciam em fotos antigas). Criei um arquivo paralelo com esses sobrenomes e comecei a buscar no cartório municipal e nas listas de eleitores. Achei registros, sim, mas as linhas não se cruzavam: um RG emitido numa cidade; um título de eleitor com endereço antigo; um número de CPF que, consultado em fontes públicas, indicava compatibilidade com outros documentos, porém, sem qualquer movimentação clara naquele período de desaparecimento. Havia entradas, mas faltavam conexões.

O passo seguinte foi o que me deu mais frio na espinha: comparei as datas e lugares. Em 2019 ela aparece como menor aprendiz na empresa do pai do Jorge, empresa que tanto eu quanto ele também trabalhamos hoje e fomos menores aprendizes no passado.

Emos bancos de dados locais do Nordeste haviam indexado um nome parecido, com mesmo sobrenome, em listas escolares e em notas de jornal; mas os endereços não batiam com o que tinha no arquivo dela da empresa. Era como se existissem duas trajetórias parecidas demais para ser coincidência, mas diferentes em pontos essenciais. Endereços diferentes. Telefones que não atendiam. Pessoas que lembravam versões distintas dela. Ora “Ana, a estudiosa”; noutra, “Aninha, que ia e vinha”.

Procurei ainda por registros de transporte interestadual, passagens em sites de rodoviárias, e por entradas em hotéis pequenos, contatos com recepções locais. Nada oficial me trouxe prova sólida. Havia, no entanto, fragmentos: um comentário de um blog de uma cidade litorânea citando uma “Ana que voltou do Sudeste em 2024”, um check-in vago em rede social com uma foto de paisagem que poderia ser daquele litoral. Tudo tênue, quase conspiratório, e exatamente por isso perigoso: podia ser coincidência, podia ter sido plantado ou podia ser pista.

O ponto de virada veio quando confirmei que, do nada, alguns meses antes de ela reaparecer matriculada na faculdade, a mesma que Jorge e eu frequentamos, havia uma atualização em registros acadêmicos locais que não constavam publicamente: um protocolo de matrícula com um número de processo, carimbado manualmente. Consegui acessar esse protocolo numa cópia que um funcionário da secretaria, que eu havia conquistado com um papo correto e uma promessa de anonimato, deixou escapar. No carimbo, a data: entrada no curso dois anos depois do desaparecimento público. No formulário, havia campos preenchidos à mão com um endereço que não batia com nenhum outro registro que eu tinha.

O que aquilo me mostrava foi que a transição de “desaparecida” para “reaparecida” aconteceu em sigilo, com documentos preenchidos manualmente, possivelmente com informações alteradas. Quem quer que tenha reorganizado a vida dela depois dos dezoito, e agora, aos vinte e dois anos, fez questão de não deixar trilhas digitais fáceis de seguir.

À medida que eu rastreava, o quebra-cabeça ia tomando um contorno preocupante: era difícil conceber que tudo aquilo fosse obra do acaso. Alguém tinha rebatizado, reposicionado, reconstruído uma trajetória. E eu não estava mais só nas conjecturas: havia documentos, fotos escaneadas, protocolos carimbados, números de telefone que, por mais que estivessem mudos agora, apareciam em arquivos antigos. Era matéria-prima para uma investigação séria e perigosa.

No fim daquele mês, com pastas cheias e mais perguntas do que respostas, fechei meus arquivos e respirei. Sabia que vinha algo grande pela frente e que, se eu quisesse proteger o Jorge, precisaria ir fundo. Não apenas vasculhar o passado de um rosto bonito: era necessário entender quem havia reescrito aquela vida, e com que propósito.

Fechei a planilha, apaguei o rastro do meu navegador e, por uns segundos, encarei o reflexo no monitor. Pensei no Jorge, entregue, apaixonado, confiando. Pensei em como uma história bem montada pode enganar até os olhos mais atentos. E prometi a mim mesma: cada lacuna seria preenchida. Cada documento, verificado. Cada nome, conferido. Nem que para isso eu tivesse que remontar o passado dela pedaço por pedaço e expor, no processo, uma verdade que talvez queimasse mais do que curasse.

Voltei aos registros da viagem do Jorge ao Nordeste, com o café já morno ao lado do notebook. Eu precisava entender como ela se encaixava naquilo tudo. Mas, conforme os dados apareciam, uma coisa não fazia sentido.

No sistema do resort onde eles ficaram hospedados, o nome dela não constava em lugar nenhum. Nenhuma Ana Flávia. Nenhuma variação de sobrenome.

Em vez disso, o que encontrei foi Ana Beatriz, mesmo sobrenome, mesma data de nascimento, CPF com um número de diferença. Fiquei imóvel por alguns segundos. O estômago revirou.

Uma pesquisa rápida pelo cadastro de pessoas físicas, confirmou minha suspeita: duas pessoas, irmãs e gêmeas.

— Meu Deus… Como eu não vi isso antes? — Minhas unhas cravaram na palma.

Abri fotos antigas, que ainda não tinha acessado, que consegui no jornal do colégio onde elas estudaram na infância. Duas meninas idênticas, mas com olhares diferentes.

Ana Beatriz sorria de forma sincera e espontânea. Já Ana Flávia… tinha aquele brilho estranho, um tipo de vaidade que parecia beirar a manipulação.

Continuei a busca.

Enquanto Ana Flávia sumia por completo do mapa depois dos 18 anos — sem redes sociais, sem CPF ativo em compras, sem movimentações —, Ana Beatriz tinha uma vida normal e documentada.

Postagens antigas, fotos com amigos, viagens… até um perfil no Instagram, fechado, mas ainda ativo. A última publicação era de um ano atrás. Meu coração acelerou.

Se o Jorge realmente passou aquela semana com uma “Ana”, e os registros mostram Ana Beatriz, então quem estava ao lado dele… não era ela. Era a irmã. Ana Flávia se passou pela própria gêmea.

Rolei a lista de amigos da Ana Beatriz, e encontrei algumas conexões em comum. Nada muito direto, mas o suficiente pra abrir uma brecha.

Respirei fundo e abri a aba de mensagens. Eu precisava ser cuidadosa, mas também direta. Digitando devagar, mandei:

“Oi, Ana Beatriz. Meu nome é Sara. Trabalho na empresa onde sua irmã foi menor aprendiz há alguns anos. Espero que você não ache invasivo, mas o motivo do meu contato é sério. Pode ser que alguém muito próximo de mim esteja correndo um grande risco.

Eu só preciso confirmar uma coisa antes de te explicar melhor. Você conhece algum Jorge?”

Apertei “enviar” e fiquei olhando para a tela, o cursor piscando no vazio. Um arrepio subiu pela minha nuca. Porque, no fundo, eu já sabia, aquela mensagem podia ser o início de algo grande. Algo perigoso. E, se minhas suspeitas estivessem certas, Ana Flávia não era apenas uma mentirosa. Era uma golpista profissional. E o Jorge, a próxima vítima.

Passei o resto do dia arrastando uma ansiedade que não me largava. A mensagem ficou lá, sem resposta, piscando no canto do celular como uma provocação. Tentei me ocupar: fui pra academia, fiz um treino pesado, queria queimar o nervosismo. Voltei para casa suada, tomei um banho demorado, daqueles que a água leva um pouco do pensamento embora, mas não tudo, e me pus a preparar algo pra comer, olhando o relógio de vez em quando.

Quando a frigideira chiou e o cheiro de cebola e alho refogado tomou a cozinha, o celular vibrou no balcão. O coração deu um pulo. Era a resposta dela.

Abri a notificação com as mãos trêmulas:

“Oi, Sara. Eu conheço apenas um Jorge. Passamos uma semana maravilhosa no Nordeste um ano e meio atrás. Ele foi apaixonante. Mais uns dias e eu teria largado tudo pra ficar com ele, mas...

Se tem o nome da minha irmã no meio, já imagino que não seja coisa boa. Eu estou de volta à cidade, acho que seria melhor falarmos pessoalmente.”

Respirei fundo, aliviada, e apertei o botão para aceitar o pedido de amizade que aparecera junto. Assim que o perfil dela abriu direito, vi as fotos, e havia imagens do final de semana no Nordeste: ela e o Jorge sorrindo na praia, o crepúsculo atrás deles, uma foto de ambos na mesma mesa de restaurante que eu já havia visto nos registros, beijos roubados, um detalhe de um bracelete que ela usava na foto e que batia com um que eu tinha visto em outra imagem antiga.

Era a confirmação que eu precisava. Não tinha mais espaço para dúvidas: aquela que estava com o Jorge não era a verdadeira Ana. Ana, até que sim, mas não a que o Jorge conheceu e se encantou no Nordeste. Era óbvio que alguém havia se apropriado daquela narrativa.

Coloquei o celular sobre a mesa e deixei a comida esfriar. Um sorriso frio tomou meu rosto, não de alegria, mas de quem finalmente encontra a peça que faltava no quebra-cabeça. Agora era só questão de montar a armadilha com calma: preparar tudo para flagrar a pilantra no ato, com provas irrefutáveis.

Fechei a cozinha, apaguei a luz e, na penumbra do apartamento, comecei a planejar cada passo.

Em poucos dias, comecei a montar uma rede de vigilância quase profissional. Minha vantagem era técnica: estudo Engenharia da Computação, vivo entre códigos e bancos de dados, e isso me ajudou a enxergar rastros onde os outros viam apenas superfície. Enquanto eu fazia o trabalho “digital”, cruzando horários, checando logs de postagens, perfis associados, números de telefone, precisei de alguém que atuasse no mundo físico. Chamei o Lucas.

O Lucas é amigo nosso. Conhece eu e o Jorge desde sempre, e tem aquela facilidade de infiltrar-se em ambientes sem levantar suspeita. Um cara comunicativo, dono de boa lábia, que já me ajudou em outras “missões” discretas. Combinei tudo com ele: queria informação direta, não boatos. Ele topou entrar numa festa onde, segundo indícios, a tal “hostess” trabalhava.

Expliquei que precisava de provas concretas, e pedi que ele tomasse cuidado para não expor ninguém sem necessidade. Imagens seriam bem-vindas, mas ele devia priorizar relatos detalhados e nomes. Dei a ele pistas: horários em que ela sumia, os locais em que ela havia sido vista, descrições físicas que eu já tinha. E deixei claro: “Nada de fotos explícitas. Só detalhes que confirmem a função profissional dela.”

Alguns dias depois, recebi a mensagem do Lucas. Ele escreveu em tom curto, direto, e eu soube, pela objetividade da linguagem, que algo sério tinha vindo:

“Entrei na festa ontem. Ambiente fechado, público seleto, etiqueta rigorosa. Vi ela trabalhar. Não é só hostess de bilheteria nem recepcionista de camarote. Ela é contratada para animar eventos de um tipo bem específico. Circula entre os convidados, avalia, conduz interações privativas. Vi casais convidá-la e ela atender de forma “profissional”. A vi entrando e saindo de áreas privadas com diferentes pessoas. Não deu pra fotografar nada; as regras eram severas. Voltarei com mais dados se precisar. Mas confirmo: ela é do job”.

Li aquilo duas vezes. Senti uma mistura de enjoo no estômago e um frio de raiva crescendo no peito. Não havia ali palavrões, nem juízo moral, só a constatação técnica que eu precisava. Lucas confirmava: Ana Flávia não era apenas “anfitriã itinerante” como ela alegava. Ela atuava, de forma profissional, em eventos de sexualidade liberal, fazendo parte de um circuito em que entretenimento íntimo era trabalho contratado.

Fiquei furiosa. Não por ela trabalhar, cada um faz suas escolhas, mas pela mentira sistemática. Pelo fato de alguém usar uma identidade, um passado, imagens e memórias de outra mulher (a Ana legítima, a Beatriz) para construir um ar de vítima, quando, na prática, montava uma vida com peças deslocadas da realidade. O pior era ver o Jorge no meio daquilo, iludido, acreditando na versão que favorecia a imagem romântica e conveniente.

Pedi ao Lucas que continuasse, sem se expor demais, e que anotasse tudo: nomes de organizadores, locais recorrentes, horários, qualquer padrão. Eu precisava não apenas saber o que ela fazia, mas como, com quem, e, sobretudo, se havia alguma ligação direta entre esse “trabalho” e o comportamento manipulador que vinha descrevendo.

Enquanto montava o próximo passo do plano, respirei fundo e me lembrei do primeiro mandamento daquela investigação: paciência. A armadilha só funcionaria se estivéssemos duas jogadas à frente. E eu não permitiria que o Jorge fosse sugado para os planos malignos daquela vadia.

{…}

De volta ao presente…

Jorge:

Quando estacionei em frente à casa da Sara, minhas mãos ainda tremiam. O volante parecia escorregar dos dedos. Eu mal lembrava do caminho até ali, só sabia que precisava sair da faculdade antes que fizesse alguma besteira.

Toquei a campainha uma, duas vezes. Nenhuma resposta. O portão destravou com o som metálico de sempre, e entrei, subindo tenso pelo elevador, até a porta do apartamento dela.

— Sara? — Chamei, com a voz embargada.

A porta da sala estava entreaberta. Dei dois passos, e quando a mulher surgiu no corredor, o chão sumiu sob meus pés.

— O que... o que você está fazendo aqui? — Gaguejei, recuando um passo. — Você... como...?

Ela me olhava com ternura, parecia até saudosa. O mesmo rosto. Não o mesmo olhar. Os mesmos lábios. Só que... não era igual. Era ela, mas... diferente.

— Jorge... — Ela disse com calma, a voz mansa.

— Não! — Gritei, sem conseguir me conter. — Não vem com essa voz sedutora. Eu acabei de te ouvir, agora há pouco, na faculdade, com aquele cara! Eu ouvi tudo! Você... e o meu melhor amigo. — Avancei um passo, o sangue fervendo. — Você tava com ele, naquele maldito depósito!

Antes que eu dissesse mais alguma coisa, alguém se colocou entre nós.

— Jorge, para! — A voz da Sara cortou o ar como um estalo. — Se acalma! Ela não é quem você está pensando.

Fiquei paralisado. Sara me segurava pelos ombros, firme, como quem tenta conter uma fera prestes a atacar. A mulher diante de mim respirava rápido, assustada, sem entender minha reação.

— Como assim “não é quem eu estou pensando”? — Murmurei, ofegante. — Vocês estão brincando comigo? Que tipo de jogo é esse, Sara?

Sara fez um gesto para eu me sentar. Eu não conseguia. Meus olhos iam de uma para a outra, tentando encontrar alguma lógica naquele pesadelo.

— Jorge... — Ela disse, com a voz mais baixa agora, tentando escolher as palavras. — Eu prometi que ia te mostrar a verdade, lembra? Pois bem... essa é a hora.

A mulher deu um passo à frente, ainda hesitante, e me encarou. O tom dela era diferente, mais doce, mais... humano.

— Meu nome é Ana Beatriz — Disse. — E eu juro pra você… eu sou a pessoa que passou aquela semana com você no Nordeste, mas não sou a que está na sua vida agora.

O som do nome ecoou na minha cabeça. “Ana Beatriz”. Por um momento, tudo ficou em silêncio — um silêncio que gritou mais alto que qualquer palavra.

— O que você disse? — A ficha ainda não tinha caído. Eu não estava entendendo.

Sara respirou fundo, passou a mão carinhosamente pelas minhas costas e completou:

— A mulher que está com você, Jorge, não é a Ana que você conheceu no Nordeste. Ela é a irmã gêmea. A verdadeira se chama Ana Beatriz. Eu a encontrei.

Fiquei ali, sem reação. O corpo inteiro formigando, o coração disparado, e uma mistura de raiva, incredulidade e medo me consumindo.

— Isso é loucura... — Murmurei. — Isso não pode ser verdade...

Mas no fundo, uma parte de mim sabia que era. Tudo o que não fazia sentido agora se encaixava, de forma cruel e inevitável.

Continua…

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Comentários

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Sensacional Lukinha, cabe fácil em um bom filme de suspese, 3 estrela fácil

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Por causa do último capítulo eu já imagina algo parecido, mas mesmo assim: 😦😦😦

👏👏👏👏

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Que comecem os jogos !!!

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🤣🤣🤣

Comentei nesse conto Ida!!!!😅

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