Mas quando ela se virou para agradecer a Mavka, sua expressão mudou. A criatura estava de joelhos, o brilho em seu corpo diminuindo rapidamente.
— Mavka? — perguntou Arabel, a voz agora cheia de pânico.
— Foi a última vez que pedi a interferência das forças das Forças da Natureza. Meu chamado acabou — respondeu Mavka, com um sorriso melancólico.
A aparência de Mavka mudou, agora era possível reconhecê-la como Iryna.
— E agora? O que vai acontecer? — perguntou Arabel, com a voz embargada.
— Meu espírito vai se unir ao espírito da natureza... — respondeu Iryna com suavidade — E, enfim, reencontrarei Natália.
Arabel arregalou os olhos, com o coração disparado.
— Mas... minha vó está viva!
Iryna a olhou com ternura. Seus olhos, agora humanos, refletiam uma calma profunda,
— Ela estava — disse, com um sorriso sereno. — Sua avó desencarnou no momento em que deixei de ser Mavka. Era como se estivéssemos ligadas, desde sempre. E agora, vamos nos encontrar espiritualmente naquela região e aguardar nosso destino.
Arabel sentiu o peso da revelação, mas não com dor — e sim com uma estranha melancolia.. Era como se tudo tivesse se alinhado num ciclo misterioso e perfeito.
— Diga a ela que eu a amo muito... por favor — sussurrou Arabel, segurando a mão de Iryna com força.
O espírito de Iryna começava a brilhar suavemente, como se a floresta a estivesse chamando. Mas ainda havia tempo para mais uma despedida.
— E se... se encontrar com Helena — continuou Arabel, hesitante, com a voz tremendo — diga que fiquei emocionada com sua história. Que ela me tocou profundamente...
Iryna então parou. Seus olhos se encontraram com os de Arabel pela última vez:
— Eu já me reencontrei com a Feiticeira... — disse, com um leve sorriso. — E para sempre serei eternamente grata pelo que ela me fez.
Elas se abraçaram. Um abraço profundo, carregado de tudo o que não cabia em palavras. E foi ali, no calor daquele último toque, que Iryna desapareceu.
Não restou dor. Apenas paz. E uma conexão que ecoaria para sempre entre os bosques.
Marcos estava deitado ainda tentando se recuperar, sentia-se ainda um pouco debilitado, apesar da visão ainda turva conseguiu assistir aquela cena, que lhe trouxe um estranho conforto.
Arabel veio e se sentou ao seu lado, segurou sua mão com força e exibia um sorriso aliviado. Antes que Marcos pudesse perguntar qualquer coisa, a lembrança voltou como um raio: a cobra deslizando silenciosamente entre os arbustos, a dor aguda na perna e a sensação de escuridão tomando conta dele.
— Você está bem, Marcos? Achei que te perderia...
— O que aconteceu? — Marcos murmurou, ainda confuso. — Como eu estou vivo? E a Mavka?
— Mavka salvou sua vida, para que eu pudesse viver com você o que Helena não conseguiu viver com o noivo dela. Ela me mostrou coisas... coisas do passado.
Marcos franziu a testa, intrigado.
— Que coisas?
Arabel alegremente contou a Marcos:
— Ela me contou sobre a vida dela como Iryna, como foi morta por Ivan e eu também pude ver minha vó jovem e também a Helena!!
O coração de Marcos acelerou, a ideia de uma entidade mágica salvá-lo e ainda revelar segredos parecia surreal. Ele olhou para Arabel, buscando apoio, e encontrou em sua namorada um olhar de determinação.
— Eu sei que é muito para processar — disse Arabel suavemente. — Mas confie em mim. Mavka não apenas te salvou, ela nos deu respostas... e talvez mais perguntas do que esperávamos.
Marcos sabia que sua vida nunca mais seria a mesma. Ele não apenas sobrevivera a uma picada de cobra mortal, mas entendeu que há mistérios a serem revelados neste mundo, e que por vezes o passado, o presente e o futuro se entrelaçam.
Após ficarem mais alguns minutos contemplando a paisagem decidem retornar à pousada. Quando voltam para a cidade, onde o sinal de internet voltou ao celular de Arabel. Assim que desbloqueou a tela, viu uma mensagem de voz da mãe. O coração acelerou. Ela já sabia o que vinha.
Com os olhos marejados, colocou o áudio para tocar.
A voz da mãe soou trêmula, carregada de emoção:
— Filha… você precisa ser forte agora. A vó Naty se foi. A Tereza está cuidando de tudo …
Houve uma pausa, um suspiro.
— Volta pra Curitiba, minha filha. A gente precisa de você.
Arabel decide ligar para Tereza
Tereza atendeu ao telefone com a voz embargada. Os soluços vinham em ondas, dificultando até a respiração.
— Nós… estávamos no barco, navegando pelo rio Amazonas. Sua avó estava ao meu lado, calada, olhando para a água com aquele brilho… — ela engasgou com as palavras. — De repente, ela se inclinou um pouco para a frente, como se tivesse ouvido alguém chamá-la pelo nome. Ela estendeu a mão na direção da água, tão devagar, tão suave, como se estivesse tentando tocar uma luz invisível. No mesmo instante, o rosto dela mudou. Foi tudo tão rápido. Ela apenas se deixou ir. Tentamos de tudo, chamamos ajuda, mas… ela se foi.
Arabel apertou o celular contra o ouvido, como se pudesse alcançar Tereza do outro lado da linha. Sua voz saiu baixa, embargada.
— Obrigada, Tereza. Obrigada por estar com ela até o fim. Ela teve sorte de ter você por perto.
Tereza chorou mais um pouco, e depois disse com ternura:
— Ela falava de você o tempo todo. Das suas conquistas, do seu jeito, do quanto se orgulhava. Sei que, se pudesse escolher, ela ia querer ser lembrada com alegria. Sem tristeza, sem dor.
As duas permaneceram em silêncio por um momento, compartilhando a dor pela distância, sem precisar de mais palavras.
Depois de alguns segundos, Tereza falou, mais firme:
— Eu vou trazer o corpo dela de volta, Arabel. Vou cuidar de tudo por aqui, não se preocupe. Apenas respira… e saiba que estou aqui pra você.
Arabel fechou os olhos. Uma parte dela ainda não conseguia aceitar. Mas outra, mais profunda, sabia. Sabia que sua avó já não estava mais naquele corpo que voltaria para Curitiba. Natália agora estava com Iryna ... onde quer que os estejam habitando agora, como espíritos livres.
Para tranquilizar a mãe, Arabel encaminha uma mensagem de texto:
“Mãe, acabei de falar com a Tereza.
Foi tudo muito rápido… ainda parece um pesadelo.
Ela me contou que a vó estava feliz, sorrindo no barco, antes de tudo acontecer. Isso me conforta um pouco, saber que ela partiu em paz, em um lugar que amava.
Eu estou tentando ser forte, como você disse. Vou organizar minhas coisas aqui e volto pra Curitiba ainda hoje.
Te amo. Vai ficar tudo bem. A gente vai passar por isso juntas. 💔”
Assim que chegaram à pousada, Arabel e Marcos foram recebidos por um aroma acolhedor de comida caseira que parecia envolver todo o ambiente — um misto reconfortante de manteiga derretida, especiarias suaves e algo levemente adocicado no ar.
Patrícia acabava de dispor os últimos pratos sobre a mesa quando os convidou para o almoço.
— Por favor, sentem-se — disse Patrícia, puxando as cadeiras com naturalidade. — Fiz tudo com muito carinho.
Mas o casal não estava ali apenas para se alimentar — havia algo mais. Um fio invisível os conectava àquela mulher, um chamado silencioso os havia conduzido até ali.
Ao lado da mesa, um quadro chamava a atenção: retratava uma Mavka, envolta por sombras verdes e uma aura de encantamento.
— Esse quadro foi você que pintou também, Patrícia? — perguntou Marcos, os olhos fixos na figura enigmática, enquanto levava um pedaço de Pierogi à boca.
— Sim — respondeu ela, servindo-se de uma pequena porção de batata gratinada. — Foi a forma que encontrei de manter viva a memória dela. Ninguém acreditava em mim quando eu dizia que a via… Mas, para mim, era como reencontrar minha tia.
— Nós vimos uma — disse Marcos, pousando os talheres. — Aqui, em Nova Cracóvia.
Patrícia interrompeu o gesto de servir mais suco, os olhos arregalados.
— Vocês viram uma Mavka? Onde? Como ela era?
Com calma e emoção, os dois contaram tudo: as visões, o passado da tia injustiçada, e o momento em que uma Mavka salvara Marcos da morte. À medida que a história se desenrolava, as mãos de Patrícia tremiam levemente, mas ela continuava comendo em pequenos intervalos, quase como se o gesto a mantivesse ancorada na realidade. O rosto iluminado por uma alegria contida contrastava com o peso dos relatos.
— Vocês não fazem ideia do que isso significa pra mim — disse ela, pousando o garfo e envolvendo o copo de suco com as mãos. — Passei anos sentindo que ninguém nunca entenderia. Sempre tive certeza de que a Mavka era minha tia... mas é algo tão fora do comum, que até eu às vezes duvidava de mim mesma.
A conversa se estendeu por horas. Riram entre garfadas de frango macio e bem temperado, refletiram enquanto mergulhavam os pierogues no creme azedo servido à parte, criaram teorias enquanto reabasteciam os copos de kompot. Falaram sobre florestas e rios, sobre lendas que talvez fossem mais reais do que pareciam, e sobre memórias de infância que agora ganhavam novos sentidos.
Naquela mesa, entre confidências e pratos vazios, formou-se um espaço seguro — um refúgio onde o extraordinário era acolhido com naturalidade.
— O mais importante — disse Patrícia, recolhendo os pratos ao fim do almoço com um sorriso sereno —, é saber que não estou sozinha. Saber que vocês também viveram isso… torna tudo mais real. Obrigada por me darem isso.
— E nós agradecemos a você, Patrícia — disse Arabel, emocionada, ajudando a empilhar os pratos. — Por nos acolher e dividir algo tão precioso. Essa pousada tem algo especial... como se fosse um ponto de encontro para almas ligadas às Mavkas.
Nesse momento, ouviram o som suave de um carro chegando. Pouco depois, um homem de feições tranquilas e um olhar tão acolhedor quanto o da esposa entrou pela porta da frente.
— Esse é Roberto, meu marido — disse Patrícia com um sorriso. — Roberto, estes são Arabel e Marcos, nossos novos amigos.
A troca de cumprimentos foi imediata e calorosa, como se a amizade já estivesse selada muito antes do primeiro aperto de mãos.
A partir daquele dia, nasceu uma amizade sincera entre os dois casais. Compartilhavam mais do que histórias incomuns — havia entre eles uma sensibilidade rara, um entendimento silencioso sobre o que é tocar o inexplicável e ainda assim permanecer de pé, transformado.
Eles se despediram com promessas de retorno. E enquanto se afastavam pela estradinha ladeada por araucárias, a sensação era de que aquela pousada — e tudo o que ela guardava — continuaria viva dentro deles.
A estrada que ligava Nova Cracóvia a Curitiba parecia mais longa naquela tarde nublada. Arabel via a paisagem passar pela janela do carro enquanto Marcos dirigia em silêncio, respeitando o espaço que ela precisava. Nenhum dos dois falava muito — as palavras pareciam insuficientes.
O carro cortava as curvas suaves do interior do Paraná, cruzando plantações, pequenas vilas e trechos de mata nativa. Arabel mantinha os olhos no horizonte. Voltava para Curitiba diferente. Uma parte dela havia ficado no bosque.
Quando chegaram à cidade, passando ao lado do Parque Barigui, já no início da noite, uma fina garoa começava a cair. A cidade parecia envolta numa névoa silenciosa, como se também se preparasse para a despedida que estava por vir.
Arabel permaneceu imersa em lembranças e conversas com a família, o peso da ausência se fazendo cada vez mais presente no silêncio da casa.
No dia do velório, o céu cinzento refletia a tristeza de todos. O enterro foi silencioso, mas cheio de rostos emocionados. Muita gente, alguns vieram de longe para dar adeus. Arabel permaneceu ao lado do caixão, segurando a mão da mãe, ouvindo histórias, revendo memórias.
.
No cemitério, quando o caixão foi finalmente baixado à terra, Arabel olhou para o céu nublado e esperou. Esperou ver algo — uma luz, uma presença, qualquer coisa. Mas não viu nada. E ainda assim, sentiu.
Ao saírem do cemitério, já no fim da tarde, ela e Marcos caminharam em silêncio até o carro. O vento começou a soprar mais forte, frio, mas com um quê de familiar.
Encostada no carro, Arabel pegou um “daqueles cigarros” e levou-o aos lábios com os dedos trêmulos e o acendeu, mais por impulso do que por vício.
Antes mesmo de dar a primeira tragada, um vento súbito e vigoroso soprou de lado. O cigarro aceso foi arrancado de sua boca e levado para longe, desaparecendo entre as folhas secas da calçada.
Arabel arregalou os olhos e ficou alguns segundos em silêncio. Depois sorriu, com uma lágrima discreta escorrendo.
— Tá bom, vó… eu vou parar de fumar.
Marcos riu baixinho ao lado, sem dizer nada.
E enquanto o carro se afastava do cemitério, Arabel sentiu no peito algo novo: a dor ainda estava ali, mas agora acompanhada por um tipo de paz — como um beijo da brisa.
O tempo foi passando, como sempre passa.
Arabel se formou com honras, caminhando pelo palco da cerimônia com o olhar firme e o coração leve, sentindo — talvez imaginando — que vó Naty a observava de algum lugar. Ao descer do palco, Marcos a esperava com um buquê de flores simples e um sorriso que dizia tudo.
Casaram-se meses depois, numa celebração pequena, cercada por pessoas queridas e lembranças profundas.
Patrícia, a amiga que estivera com Arabel desde o início, continuou presente. Apesar das rotinas diferentes e das distâncias, nunca se afastaram de verdade. Trocavam mensagens quase todos os dias, às vezes áudios longos, às vezes apenas um emoji cúmplice. Quando podiam, voltavam a Nova Cracóvia e passavam alguns dias juntas na pousada — que agora se chamava Pousada Mavka. Uma homenagem discreta, mas viva, à história que ambas carregavam no peito.
Cinco anos se passaram.
Arabel e Marcos continuavam juntos, agora mais fortes, mais silenciosos nas certezas. E Arabel estava grávida. Quando descobriram que era uma menina, o nome surgiu naturalmente —como uma lembrança que voltou com força: Iryna.
— Por ela… — disse Arabel, com a mão na barriga e os olhos marejados. — Pela primeira a me mostrar o invisível.
Naquele verão, voltaram à pousada. Patrícia os recebeu com os braços abertos e uma novidade no rosto: ela também estava grávida. Riram, se emocionaram, falaram sobre os mistérios da vida — e de como tudo se conecta, mesmo quando a gente não entende de imediato.
Naquela noite, sentadas na varanda da pousada sob o céu estrelado de Nova Cracóvia, as duas amigas conversaram em voz baixa, enquanto os homens preparavam café e riam na cozinha.
O vento soprou leve. Nenhuma aparição, nenhuma palavra vinda do além — apenas um arrepio doce, um silêncio cheio de presença.
Dentro da barriga, a pequena Iryna se mexeu pela primeira vez. Arabel levou a mão até o ventre e fechou os olhos.
A vida seguia.
O amor permanecia.
E algumas histórias… nunca terminam de verdade.
EPÍLOGO
O que Arabel e Patrícia não sabiam, era que as filhas que carregavam em seus ventres eram aquelas que haviam partido:
Iryna, agora filha de Arabel.
Natália, agora filha de Patrícia.
Reencarnadas.
Trazidas de volta por um tempo mais tolerante — ainda imperfeito, mas com espaço para um amor que antes fora silenciado. E quando crescessem, o amor entre elas voltaria a florescer, puro e legítimo, desta vez sem esconderijos.
E havia algo mais.
Algo que Arabel apenas desconfiava, nos sonhos estranhos que tinha desde menina, nas emoções intensas que sentia sem explicação. Ela era Helena — ou, melhor, o espírito de Helena, que após deixar de ser uma Mavka, escolhera reencarnar como Arabel.
E agora, como mãe de Iryna, teria mais uma chance de protegê-la, de fazer o que não pôde em sua vida passada.
Uma chance de se redimir, não diante do mundo, mas diante de si mesma.
Porque o amor verdadeiro não termina com a morte.
Ele encontra outras formas.
Outros corpos.
Outras vidas.
