O barulho da voz do Higor ecoando pela casa quebrou o silêncio e o olhar que eu e Kaio trocávamos. Foi como acordar de um sonho ou de algo que eu nem queria entender direito.
Kaio piscou rápido, como se voltasse à realidade antes de mim, e deu um meio sorriso.
— Estamos na cozinha! — gritei, fingindo naturalidade, mesmo com o coração disparado.
Higor apareceu na porta logo em seguida, com uma mochila nas costas e um sorriso pregado no rosto.
— Bora logo, preguiçosos! O dia tá lindo e eu quero pegar estrada antes do pôr do sol.
Kaio riu. — Preguiçoso é tu, que só acorda depois das dez.
— É estratégia, pai. Eu acordo quando o corpo pede. — Higor deu de ombros e piscou pra mim. — E o corpo tá pedindo praia, cerveja e sol.
— E responsabilidade que é bom, nada — respondeu Kaio, pegando as chaves da caminhonete.
— Relaxa, pai, comigo e com o Lipe nada dá errado.
Tentei sorrir, mas o peso daquele "nada dá errado" me deu um arrepio.
Começamos a carregar as malas pro carro. Kaio, como sempre, fazia questão de ajudar, mesmo quando a gente dizia que dava conta. O problema era que, toda vez que ele pegava alguma mala, as veias dos braços dele saltavam e eu tentava, em vão, não reparar.
— Essa é sua, Lipe? — perguntou, levantando minha mochila com uma mão só.
— É, obrigado.
— Tá leve demais, hein? Não vai passar a viagem inteira de sunga, né? — ele brincou.
— Vai saber, tio. Se o calor apertar, quem sabe — soltei sem pensar.
Ele arqueou uma sobrancelha e deu um sorrisinho que me deixou ainda mais sem graça.
— Esses jovens de hoje... — murmurou, jogando a mochila na carroceria.
Higor apareceu logo depois, jogando o cooler e o violão lá dentro também.
— Pronto! Agora é só alegria. — Deu um tapa no ombro do pai. — E sem drama, hein?
Kaio riu. — Prometo tentar.
Entrei na caminhonete e fui direto pro banco de trás. Só que Kaio fala.
— Vai na frente, Lipe. O Higor vai dormindo metade do caminho, aposto. — Kaio falou enquanto ajustava o espelho retrovisor.
— Que nada, tô de boa — protestou Higor, já encostando a cabeça no vidro.
Acabei aceitando. Sentei ao lado de Kaio, tentando parecer tranquilo. Ele ligou o rádio, e o som suave de rock antigo preencheu o ar. O vento batia no rosto, o cheiro de maresia começava a se misturar ao perfume dele, e a cada curva eu me sentia mais perdido.
Por um tempo ninguém falou nada. Só o barulho do motor e as risadas ocasionais do Higor, sonolento no banco de trás.
— E aí, Lipe — a voz grave quebrou o silêncio —, tá animado pra esses dias?
— Tô sim. Vai ser bom dar uma desligada da faculdade e do trabalho.
— Você merece. — Ele olhou rápido pra mim, os olhos castanhos dourados sob a luz do sol. — Deve estar sobrecarregado.
— E o senhor... digo, você, vai conseguir relaxar um pouco também?
Ele sorriu de canto, sem olhar pra mim.
— Acho que sim. Mas às vezes, pra relaxar, a gente precisa de uma boa companhia.
Engoli seco, e fiquei quieto.
Ficamos mais um tempo em silêncio. Kaio cantava baixinho o refrão da música, batucando no volante com os dedos. Eu observava o movimento distraído das mãos dele e pensava em como aquele gesto simples me deixava tenso.
No banco de trás, Higor roncava baixo.
Kaio notou e riu. — Te falei. Não dura nem uma hora acordado.
— Ele é dorminhoco mesmo.
— Herdou isso da mãe — disse com um tom saudoso.
A forma como ele falou fez o ar parecer mais denso por um instante. Havia saudade ali, e uma sombra de dor que eu já tinha visto antes.
— Ela era incrível, né? — perguntei, quebrando o silêncio.
— Era. — Ele respirou fundo. — E eu só percebi o quanto depois que perdi.
Olhei pra ele de lado, e o vi sorrir com os olhos baixos. Um sorriso triste, mas bonito.
— O Higor fala dela o tempo todo. — Falei devagar.
— É... — Ele olhou de relance pro espelho, vendo o filho dormindo. — Acho que é a única coisa que ainda segura ele.
Não soube o que responder. Então ficamos quietos de novo.
A estrada seguia, o céu mudava de cor, e o silêncio entre a gente não era mais desconfortável.
Quando a primeira brisa de mar entrou pela janela, Kaio desligou o rádio.
— Chegamos.
A praia se estendia à frente, e a casa deles, branca e simples, surgia logo depois das dunas.
Kaio estacionou o carro, me olhou e sorriu de leve.
— Pronto pra uns dias inesquecíveis?
Eu sorri de volta.
— Nem imagino o quanto.
*****
O vento com cheiro de maresia já batia forte quando o carro parou em frente à casa branca. O som distante das ondas se misturava ao barulho do motor ainda quente. Higor acordou com um sobressalto, espreguiçando-se como se tivesse dormido a viagem inteira e, de fato, tinha.
— Finalmente! — Ele abriu a porta, respirando fundo. — Cara, esse cheiro de mar é a melhor coisa do mundo.
Kaio desligou o carro e sorriu, observando o filho.
— Você dizia isso quando era pequeno também. Só que naquela época, o cheiro de mar era desculpa pra brincar na areia até escurecer.
— E hoje é pra beber e dormir tarde — Higor respondeu, rindo. E Kaio o repreendeu.
Eu saí do carro, ainda meio atordoado. O sol estava se pondo, pintando o céu de laranja e rosa. Tinha alguma coisa naquilo, o fim do dia, o vento salgado, o riso leve do Higor que me fez sentir que aquele verão ia mudar muita coisa.
— Lipe, pega tua mochila — Kaio chamou.
— Tô pegando — respondi, indo até a carroceria.
Ele já estava lá, segurando duas malas com facilidade, os músculos do braço se contraindo sem esforço. Desviei o olhar rápido, fingindo procurar minha garrafa de água.
— Deixa que eu levo essa — tentei, estendendo a mão.
— Relaxa, garoto. Só tem uma vantagem em envelhecer: o Velho ainda aguenta o tranco. O tom foi brincalhão, mas o olhar dele ficou sério por um instante, quase distante, antes de se virar pra entrar.
Segui logo atrás.
A casa era simples, mas aconchegante. As paredes brancas refletiam a luz suave do entardecer, e o ar cheirava a madeira, sal e lembranças. Eu lembrava de ter vindo ali algumas vezes quando criança, mas agora, tudo parecia diferente.
Higor já estava abrindo a geladeira.
— Cara, ele deixou cerveja! — gritou, como se fosse um milagre.
— E água pra quem dirige — retrucou Kaio, pegando uma garrafa de água e jogando pra mim. Peguei no ar, meio desajeitado. Eu bebia, mas não tinha tanto costume como o Higor. Que já tive que aguentar muita bebedeira dele em balada.
— Valeu.
— Tu ainda treina? — perguntou Kaio, encostando-se no balcão.
— De vez em quando, to meio sem tempo. — Dei de ombros.
— Dá pra ver. Tá ficando mais forte. — Falou distraído, sem olhar diretamente pra mim. O comentário soou casual.
Sorri de canto, sem saber o que responder.
— E você, continua treinando todo dia?
— Tento. — Ele bebeu um gole d'água, o olhar perdido na janela. — Faz bem pra cabeça.
Falou baixo, mas havia peso na voz. Pensei em Higor, e entendi o que ele queria dizer.
— Faz mesmo — respondi.
O clima ficou silencioso, mas não desconfortável. Era aquele tipo de silêncio que diz mais do que as palavras, onde tudo parece suspenso por um instante, até o barulho distante do mar parecia fazer parte dele.
— Ei! — Higor gritou da sala. — Vamos ver o pôr do sol na areia!
— Já vai escurecer — Kaio respondeu.
— Melhor ainda! — Ele já saía pela porta.
Kaio riu e me olhou.
— Vamos também.
Assenti. Peguei a garrafa, e fomos.
A areia ainda estava morna, e o vento batia forte o suficiente pra bagunçar o cabelo. Higor corria na frente, chutando a areia, feliz, como se tivesse dez anos outra vez.
Kaio parou ao meu lado, as mãos nos bolsos.
— Ele parece bem.
— Parece — respondi.
— Espero que continue assim. — A voz saiu baixa, quase um sussurro.
Olhei pra ele, e por um segundo vi o quanto se preocupava. Aquelas rugas pequenas perto dos olhos, o olhar atento no filho... era carinho de verdade.
Senti uma pontada estranha no peito.
Admirar alguém por amar tanto o próprio filho parecia natural. Mas o que eu sentia ia além da admiração, era uma mistura de empatia e algo que eu não sabia nomear.
— Vai continuar sim — falei, com convicção. — Ele tem sorte de ter você.
Kaio virou o rosto pra mim, surpreso.
— Às vezes não sei se sou o bastante.
— É sim — respondi sem pensar.
Ele ficou me olhando por um momento. A brisa levantava areia entre nós, e o som das ondas parecia preencher o que não precisava ser dito.
Higor gritou do alto de uma duna:
— Bora, seus velhos!
Kaio riu, e o momento se desfez como espuma.
— Velho é ele, que não aguenta uma viagem acordado — disse, começando a andar. Dei risada.
Fui atrás. O sol já tocava o horizonte, e o céu parecia em chamas. Higor pulava nas ondas rasas, enquanto Kaio ria e o observava. E eu, parado a poucos metros, sentia um peso doce no peito, uma sensação de que aquele verão guardava algo que eu ainda não entendia, mas que já me fazia querer ficar ali.