Os segredos de Clara. 03

Um conto erótico de Daniel
Categoria: Heterossexual
Contém 5550 palavras
Data: 22/12/2025 08:18:34

Os segredos de Clara. 03

Dei um sorriso. Era mais malicioso do que feliz, mas era um começo. Eram 5h da manhã e Clara não era uma pessoa matinal. Mesmo às sete, a hora em que eu geralmente a acordava, eu quase precisava de um pé de cabra para tirá-la da cama.

"Oi Clara. Desculpe mandar mensagem tão cedo, mas esqueci ontem à noite. Culpa da cerveja! Estarei trabalhando até sexta-feira à noite. Ligo quando puder. Te amo."

Mandar mensagem para Clara me causou repulsa, ainda mais do que me despedir com um "te amo". Nunca mais a verei como algo deliciosamente doce e leve.

Acordada ou não, eu duvidava que ela respondesse. O mais provável é que ela lesse, se virasse e tentasse voltar a dormir, provavelmente me xingando.

Meu sorriso permaneceu no rosto enquanto eu enxaguava a xícara de café e a colocava no escorredor. Peguei minha mochila e fui em direção à porta da frente. Eu ia viajar por alguns dias, confirmando a história que havia contado ao meu pai e ao meu irmão.

Após as ligações da noite anterior para estabelecer meu álibi, tomei uma decisão que me levou a fazer mais uma. Liguei para Reinaldo, que trabalhava para mim como meu encarregado, e contei a ele a mesma história que contei ao meu pai e ao Saulo. Conversamos um pouco sobre nosso trabalho atual e desliguei, sabendo que podia confiar nele para continuar enquanto eu estivesse fora.

Ao fechar a porta da frente, maravilhei-me com o silêncio; nenhum latido de cachorro, nem mesmo os pássaros haviam começado seu canto matinal. Respirei fundo o ar fresco do outono, apreciando-o. Era doce, carregado com o perfume da profusão de jasmim que se estendia por toda a extensão do jardim.

Joguei minha mochila no banco do passageiro do meu xodó — minha Toyota Hilux, minha picape de trabalho. Acho que dá para dizer que isso demonstra que sou um homem de gostos simples. Carros de luxo não me atraíam, mas uma picape de trabalho turbinada, ah, essa sim me empolgava, sem trocadilhos. A minha era um vermelho-sangue impecável, com uma carroceria personalizada repleta de caixas de ferramentas, gavetas e prateleiras embutidas que me ajudavam a manter minha vida profissional organizada.

Dei ré na entrada da garagem e segui em direção à rodovia. Era bom estar na estrada. A cada quilômetro que me separava da casa de campo, minha mente ficava mais clara, meus pensamentos mais focados. Estar longe de tudo relacionado à Clara facilitava pensar. E eu precisava pensar.

E planejar.

Recostei-me na espreguiçadeira, à sombra de um enorme guarda-sol, com uma cerveja na mão. A única coisa que separava o hotel da praia era um pequeno trecho de gramado sombreado por palmeiras e uma piscina. Ambos eram convidativos e o tempo estava quente, mas eu não percebia o encanto de nenhum dos dois.

Eu estava frustrado.

Plano após plano, ideia após ideia rejeitada. Algumas brilhantes. Outras nem tanto. Todas repletas de vingança, de humilhação. Eu poderia publicar um anúncio de página dupla no jornal local e divulgar as cartas do Zaqueu; nomes, datas e tudo mais. Eu poderia esperar o momento certo, contratar um detetive particular para pegá-los em flagrante e divulgar o vídeo. Eu poderia fazer dos dois um sucesso em vários sites pornográficos. Eu poderia criar um álibi e espancar o Zaqueu até deixá-lo em frangalhos, talvez pregar os testículos dele em algum banco de parque, ou colar o pênis dele com uma supercola. Eu poderia pagar uma prostituta para infectá-lo com alguma DST que ele, por sua vez, poderia infectar a Clara. Puxa, meu décimo aniversário de casamento era só uma semana. Eu poderia organizar a festa para acabar com todas as festas. Eu poderia exibir tudo em um telão para nossa família e amigos assistirem.

Cada uma das ideias me atraía de alguma forma. Eu queria que eles sofressem, sentissem vergonha, fossem humilhados. Queria que se afogassem em arrependimento pelo que tinham feito. Queria que pagassem, e pagassem caro, pela sua traição.

Mas eu tinha um dilema.

Eu queria alcançar isso sem me rebaixar ao nível deles. Quando tudo acabasse, eu queria poder me olhar no espelho e ver um homem bom me encarando. Se eu quisesse me recuperar e seguir em frente, precisava saber disso, ou me tornaria um homem vazio. Se isso acontecesse, eles venceriam e eu perderia. Metaforicamente, eles me manteriam como refém pelo resto da vida. Eu nunca mais seria capaz de confiar ou amar, e eu queria amar de novo. Eu queria ter minha própria família. Queria ser para um filho ou filha o que meu pai é para mim: um herói. Ele era o tipo de homem que eu almejava ser. Se eu colocasse em prática qualquer um dos planos que elaborei até agora, por mais satisfatórios e justificáveis que fossem, eu não seria capaz de fazer ou ser isso. Eu não seria um homem do qual meu pai ou meu filho se orgulhassem.

E se eu lhes mostrasse o quanto eu estava magoado, eles saberiam exatamente o quanto me feriram. Eu poderia ter conseguido conviver com essa consciência se acreditasse sinceramente que minha dor os envergonharia e os encheria de remorso, mas por que eles se importariam com o quanto me machucaram? Eles me traíram por doze anos. Claramente, não tinham a menor consideração por mim e pelos meus sentimentos. Revelar-lhes a profundidade da minha dor poderia até lhes proporcionar ainda mais satisfação. Eu não podia lhes dar isso.

Desanimado, fui para o meu quarto. Precisava ficar sozinho. Não conseguia ficar perto de ninguém. Nem mesmo de estranhos.

Apesar de não ter apetite, segui meu bom senso e pedi um jantar cedo e, enquanto esperava a comida ser entregue, tomei um banho.

Comi sem saborear. Olhei sem ver e ouvi sem ouvir. A amargura e a frustração me consumiram, cegando-me para o que me rodeava.

Eu andava de um lado para o outro no quarto, mas ele era pequeno demais para conter a avalanche de emoções que me consumia, então levei minha necessidade de movimento para a extensa faixa de praia praticamente à minha porta.

Havia algo de satisfatório em ouvir o estalar da areia sob meus pés e o som constante das ondas quebrando na costa.

Descarreguei meu tormento na praia, chutando a areia, pegando e atirando ao mar pedaços de madeira e conchas. Por fora, permanecia em silêncio, mas por dentro eu gritava. Era injusto. Por que a vida era tão injusta? Tão desleal? Parecia que os agressores sairiam praticamente ilesos, enquanto eu, a parte inocente, pagaria em todos os sentidos; física, mental, financeira e emocionalmente.

A injustiça era como veneno no meu estômago, seu ácido percorrendo minhas veias, corroendo-me por dentro. Eles eram os culpados, mas a menos que a inspiração me atingisse, a melhor vingança que eu conseguiria infligir a eles seria ter sucesso e viver bem. Não parecia suficiente. Nem de longe.

Depois de voltar para o meu quarto, percebi que meu celular estava desligado o dia todo. Assim que liguei, começou a tocar com o novo toque que eu tinha configurado para a Clara. " Fuck It (I Don't Want You Back)", foi uma mudança bem-vinda em relação ao antigo toque que eu tinha para minha esposa infiel — " All Of Me" , do John Legend . Sim, a nova música definitivamente combinava muito mais com meus sentimentos e com a nossa situação. Acho que concordo com os especialistas: existe uma música para cada ocasião.

Agindo rapidamente, liguei o rádio do quarto, que eu havia ajustado previamente para não sintonizar nenhuma estação, emitindo, em vez disso, um ruído alto e irritante. Como precaução, peguei a folha de papel amassada que também havia preparado logo após o check-in e liguei o celular no viva-voz.

— Dani? Onde você está? Não consigo entrar em casa.

— Clara? — Comecei a mexer no papel perto do telefone.

— Dani, que barulho é esse? Mal consigo te ouvir e a estática está terrível.

— O quê... você...? Eu... ouvi... ...a ligação está caindo. — Respondi, dizendo apenas uma palavra a cada duas em cada frase. Tive que morder o lábio para não rir.

"Dani, você consegue me ouvir? Mal consigo entender o que você está dizendo. Sua voz está falhando. Não consigo entrar em casa. Minha chave não funciona. Onde você está? Quando você volta para casa?"

— O quê? Eu—entendi—a palavra—disse. —recepção. —carregador—em casa. Telefone—para descarregar. Vou—para casa—sexta-feira. —você—. —você."

Ao estender a mão para pegar o celular que estava na mesa de cabeceira, ouvi Clara gritando para eu não desligar. Sorri e apertei o botão de encerrar a chamada. Eu conhecia Clara. Ela ficaria furiosa. Minha querida esposa era mimada e não estava acostumada a ser deixada esperando. Não consegui parar de rir ao imaginar sua frustração.

O que eu fiz foi mesquinho? Sim. Infantil? Sim, de novo. Me senti bem? Com certeza!

Ainda sorrindo, verifiquei minhas mensagens. Como esperado, Clara havia deixado uma dúzia ou mais. Li e ouvi todas com prazer. Ela até me enviou alguns e-mails. Todos seguiam a mesma linha da ligação, com o tom demonstrando sua crescente exasperação por não conseguir me contatar ou entrar em casa. Na verdade, ver e ouvir sua crescente irritação só fez meu sorriso se alargar. Me deliciei com sua frustração, cheguei até a assobiar enquanto fazia xixi.

É claro que eu poderia ter ligado para ela do telefone do quarto ou aberto meu laptop e respondido aos seus e-mails, e em circunstâncias normais eu teria feito isso, mas, para meu prazer, não há nada como irritar uma esposa vadia para melhorar o humor.

Meus dias eram ocupados, propositalmente. Fiz o que havia prometido ao meu pai e ao meu irmão. Busquei oportunidades e acomodações. Encontrei-me com construtores e arquitetos e deixei cartões de visita por toda parte. Isso me pouparia tempo quando chegasse a hora de fazer o orçamento para a reforma ou qualquer outro trabalho que eu conseguisse durante minhas buscas.

As noites eram difíceis e até mesmo a minha satisfação com as mensagens e e-mails cada vez mais frustrados da Clara, era vazia. Apesar das minhas resoluções, as perguntas sem resposta e a mágoa e raiva por ter sido usado e traído pela Clara e pelo Zaqueu continuavam me atormentando. A praia foi o lugar onde descarreguei toda a minha frustração. Caminhei quilômetros e quilômetros.

Parte da minha raiva era direcionada a mim mesmo. Havia indícios; eu conseguia ver isso agora. A retrospectiva é sempre perfeita. Zaqueu, sendo Zaqueu, não conseguiu resistir a soltar algumas indiretas. Por que eu nunca tinha percebido antes essa tendência dele de se gabar?

Parei e me virei, olhando para o mar. As ondas lambiam meus tornozelos, meus pés afundando um pouco na areia molhada. Era uma sensação fresca e acolhedora, diferente da lembrança de pouco depois do meu quinto aniversário de casamento. Eu conseguia visualizar claramente o rosto de Zaqueu enquanto ele me provocava com informações fragmentadas depois que eu, em tom de brincadeira, perguntei sobre sua vida amorosa.

— Ela é muito legal. Super divertida e incrivelmente sexy. Ainda não estou pronto para apresentá-la a todos. Quero mantê-la só para mim por mais um tempo. — Essas foram apenas algumas das suas dicas iniciais.

E então vieram as surpresas mais difíceis.

— Ela é casada. O marido não a satisfaz, mas ela sente pena dele, então continua casada. Más é no martelo do Zac aqui, que ela encontra o que precisa pra continuar com ele.

Meu olhar de desaprovação deve ter dito tudo, porque ele comentou sobre isso. Teve a audácia de me dizer para não julgar até que eu tivesse me colocado no lugar da mulher dele. E então, com um sorriso irônico, disse que se uma passarinha se oferecesse para fazer comigo o que essa mulher fazia por ele, ele abandonaria seus votos de casamento sem pensar duas vezes. Ele até soltou algumas coisas mais picantes e eu tive que pedir para ele parar porque fiquei com medo de que Clara entrasse e ouvisse.

Ele estava errado, é claro, eu jamais teria sido infiel à Clara, independentemente de quão sexy ou pervertida fosse a mulher que fez a proposta, mas eu não discuti na época.

Ele parou, mas não sem antes me pedir para guardar segredo. Disse que não queria que Clara e o resto da família o repreendessem por ter se envolvido com uma mulher casada.

Lembrei-me da expressão em seu rosto, do olhar em seus olhos. Divertido, e, ao mesmo tempo, de alguma forma malévolo, ou seria vitorioso? Triunfante?

Agora, com a sabedoria da retrospectiva, entendi melhor sua diversão. Ele deve ter achado extremamente engraçado conseguir minha promessa de guardar segredo sobre seu caso, um caso que ele estava tendo com minha esposa. E me confessando sem ser descoberto. Deve ter sido o ápice para seu ego, poder tripudiar sobre os chifres do primo.

Mais uma noite. Mais uma caminhada na praia. E eu estava preocupado por ter desenvolvido um novo hábito, um contraponto obsceno ao de Clara. Um hábito em que eu revivia minha vida com ela, estudando cada lembrança através de um filtro completamente novo.

Em minha mente, examinei tudo, seu cabelo, sua maquiagem, suas roupas, até mesmo o jeito de andar. Suas roupas estavam amassadas? Seu cabelo despenteado? Batom fresco? Borrado? Perfume desconhecido? Xampu? Vasculhei cada lembrança em busca de evidências que, ironicamente, eu não queria encontrar, tanto porque seria mais uma confirmação de sua traição, quanto da minha estupidez, da minha fé cega na minha esposa infiel.

Tentar analisar algo indecifrável através de memórias pouco confiáveis foi dilacerante. Devastador. Eu tinha sido um tolo, um tolo enorme, burro como uma porta. Minha autoconfiança era menor que a barriga de um mosquito. Nunca me senti tão inseguro em todos os aspectos, como homem, como amante, como amigo. Nem mesmo na adolescência me senti tão inseguro.

Normalmente, eu tinha o que sempre considerei uma libido saudável. Clara e eu fazíamos sexo, eu já não conseguia mais chamar aquilo de amor na minha cabeça, de três a cinco vezes por semana, e geralmente mais de uma vez por sessão. Agora, meu pênis parecia estar permanentemente mole como um fio de espaguete cozido demais.

E mesmo assim, continuei a vasculhar minhas memórias.

Eu estava com um nojo profundo de mim mesmo, e como uma ferida que coçava para ser arranhada, eu não conseguia controlar a vontade de me torturar em busca de respostas, das pistas que eu havia perdido.

Normalmente, eu gostava de dirigir. Algo na maneira como a paisagem passava rapidamente pelas janelas laterais, ou talvez fosse a forma satisfatória como meu Toyota parecia devorar a estrada à minha frente e cuspi-la pela traseira. Seja como for, eu sempre gostei de dirigir longas distâncias.

Hoje não. Hoje foi uma tortura. Cada quilômetro que me aproximava de casa parecia parte de uma longa caminhada até a forca.

Hoje eu estava em guerra comigo mesmo. De novo.

Metade de mim queria respostas, queria explicações. Queria a verdade.

A outra metade não queria ter que ouvir suas mentiras, suas desculpas esfarrapadas e interesseiras. Nada que ela dissesse poderia compensar o que ela tinha feito. Nenhuma palavra ou pedido de desculpas faria a mínima diferença no resultado, então qual era o sentido?

No último instante, mudei de ideia e desviei bruscamente, mudando de faixa sem dar seta, o que me rendeu algumas buzinas e gestos obscenos, enquanto virava à esquerda na direção da casa dos meus pais.

Parei o carro em frente à casa deles e fiquei olhando para a porta, mentalmente me desculpando pelo atoleiro em que eu estava prestes a envolvê-los. Tecnicamente, os problemas eram meus, mas nossa família era unida. Mamãe, papai e Saulo, assim como a esposa Melissa, não teriam mais condições de se distanciar dos meus problemas do que a Terra poderia parar de orbitar o Sol. Eu sabia que mamãe, em particular, ficaria arrasada, a mãe de Zaqueu era sua irmã mais nova.

Olhei para o banco do passageiro, para a pasta onde eu tinha guardado as cartas de amor do Zaqueu, e bufei. Uma pasta, como se aquelas cartas destruidoras de vidas fossem algum trabalho escolar ou algum relatório importante do escritório. Pessoalmente, eu preferiria ter urinado nelas, mas o bom senso ditava que, pelo menos por enquanto, elas deveriam ser protegidas.

Fazendo uma careta de desagrado, peguei o objeto, saí do carro e, com um passo determinado, mais fingido do que genuíno, caminhei até a porta da frente e bati.

Mamãe respondeu. Ela se inclinou para a frente, segurou meus bíceps e me deu um beijo na bochecha ao mesmo tempo em que falava; isso que é multitarefa!

— Querido, o que está acontecendo? A Clara está ligando e vindo aqui todos os dias dizendo que não consegue falar com você e que não consegue entrar em casa. Estamos muito preocupados. Por que você não atende o telefone nem checa suas mensagens?

— Que tal vocês me deixarem entrar, ligarem para o Saulo e a Mel, me darem uma das cervejas do papai e a gente sentar todo mundo junto para eu contar o que está acontecendo? Prefiro explicar só uma vez. Não quero ter que ficar repetindo.

— Oh, céus, isso parece grave. — Ela se afastou, parecendo preocupada. Ela me conhecia. Sabia que devia ser algo extremo para me fazer agir de forma tão atípica.

Segui-a pelo corredor, continuando quando ela parou junto à mesa da sala para ligar para Saulo e Mel. Servi-me de uma cerveja antes de ir para o pátio dos fundos, onde sabia que encontraria meu pai. Mamãe sempre brincava que eles deviam morar numa barraca, já que meu pai não precisava de uma casa, a menos que estivesse chovendo torrencialmente, ele sempre preferia estar ao ar livre. Tendo passado a vida como pedreiro, imagino que a preferência por ar fresco e sol tenha se tornado parte do seu DNA.

Na nossa juventude, Saulo e eu queríamos seguir os passos do nosso pai na profissão, mas ele insistiu que procurássemos profissões que não dependessem tanto do clima. Eu gostava de projetar e construir coisas, então optei por me tornar carpinteiro especializado em acabamentos internos. Saulo era fascinado por raios, ele ainda costumava acampar na varanda durante tempestades, tirando fotos intermináveis de raios sobre a água, e por tudo relacionado à eletricidade, então se tornou eletricista. Muitas vezes trabalhamos juntos na mesma casa, pelo menos até meu pai se aposentar, há pouco mais de um ano. Saulo e eu ainda recomendávamos os serviços um do outro aos nossos clientes, é claro.

Papai se levantou, me avaliando enquanto estendia a mão para me cumprimentar e me envolver em um abraço firme. Nos desvencilhamos, sentamos e eu coloquei a pasta de apresentação na mesinha de centro antes de dar um gole generoso na minha cerveja. Papai continuou me olhando, com uma sobrancelha arqueada em silenciosa interrogação.

— Pai, é uma história longa e difícil que preciso contar a todos vocês, então quero esperar até que Saulo e Mel cheguem para que eu só precise contá-la uma vez.

Meu pai estendeu a mão, enorme e áspera por uma vida inteira de trabalho braçal, e deu um tapinha no meu joelho, exatamente como fazia quando eu era pequeno.

— Tudo bem, Dani. Sou um homem paciente, posso esperar.

Essa foi uma das razões pelas quais eu amava e respeitava meu pai; ele sabia quando insistir e quando esperar o momento certo.

Logo depois, minha mãe se juntou a nós e preparou um bule de café. Isso por si só já me indicava que ela sabia que eu estava prestes a confessar uma tragédia: café quente e doce era a solução para todos os seus problemas. Ela silenciosamente descarregou o bule, junto com duas xícaras, antes de nos passar cervejas frescas e separar outra para a chegada iminente de Saulo.

E era iminente. Mal minha mãe tinha esvaziado a bandeja quando ouvi uma batida na porta da frente. Saulo e Mel moravam a apenas algumas quadras de distância, mas mesmo assim, deviam ter saído assim que desligaram o telefone. Eu esperava que tivessem deixado as crianças em casa com Emili, que era a babá deles de sempre e, por coincidência, morava ao lado.

De repente, me vi sendo abraçado e algemado na lateral da cabeça ao mesmo tempo pela Mel. Mais uma demonstração de multitarefa feminina...

— Meu Deus! Onde você esteve? E por que não atendeu o telefone nem respondeu as mensagens? Estávamos muito preocupados. Íamos chamar a polícia se não tivéssemos notícias suas hoje.

Mel estava chorando e conseguia parecer zangada e aliviada ao mesmo tempo. Abri a boca para responder, mas Mel ainda não tinha terminado.

— Você me deixou apavorada. Preocupou a todos nós. Como você pôde ser tão irresponsável? Se algo tivesse acontecido com você, como iríamos contar para a Mi e o De? Seus sobrinhos te adoram. Imagina o quanto eles ficariam arrasados? Pelo amor de Deus, Dani, você não pode fazer uma merda dessas. Ninguém sabia onde você estava hospedado. Só sabíamos que era a algumas horas ao norte. Você tem noção do medo que sentimos? É melhor você ter uma boa explicação ou eu mesma corto seus testículos fora! Desculpa, sogra, mas é verdade.

Se ele estava usando isso por aí, eu corto mesmo!

Mamãe deu um tapinha na mão de Mel; ela estava acostumada com a personalidade e a fala apaixonadas de Mel. Era algo que todos nós amávamos nela e parte do motivo pelo qual ela era perfeita para Saulo, que era muito mais tranquilo. Ela era a irmã que eu não tinha.

— Sente-se, querida. Vamos dar ao Dani a chance de dizer alguma coisa. — Disse minha mãe.

— Bem, primeiro, peço desculpas por toda a preocupação que causei. Acho que não estava pensando com tanta clareza esses dias. Não consegui enxergar o panorama geral, talvez. Mas acho que talvez estivesse em choque e precisava me afastar um pouco.

Mel parecia prestes a me atacar novamente, então levantei a mão.

— Por favor, me escute antes de me criticar, Mel. Depois disso, acho que você vai entender por que saí correndo sem pensar.

Então, contei tudo a eles. Não omiti nada, nem mesmo as partes que me colocavam em uma situação ruim, como meu desejo de causar algumas dores de cabeça e momentos de ansiedade em Clara quando ela descobrisse que sua chave não funcionava.

— Então, se a Clara tem ligado para vocês todos os dias, posso presumir que ela não conseguiu entrar na casa.

— Não. Ela ligou e veio nos visitar depois do trabalho para saber se tínhamos notícias suas. Estávamos todos esperando até esta tarde para fazer qualquer coisa porque você disse que estaria em casa hoje. — Explicou minha mãe.

Eu ri.

— Bem, devo dizer que isso me surpreende um pouco. A troca da fechadura funcionou melhor do que eu esperava. Achei que havia uma boa chance de ela convencer algum chaveiro ingênuo a deixá-la entrar. Imaginei que, na melhor das hipóteses, isso a impediria de entrar, na pior, a atrasaria, e de qualquer forma, lhe causaria alguns cabelos brancos por não saber o que estava acontecendo e porque estava acontecendo.

— Ela tentou enganar um deles para entrar, mas ele insistiu que ela apresentasse algo além da carteira de motorista para comprovar que morava lá e queria que ela assinasse vários formulários. Ela disse que não podia mostrar uma conta nem nada do tipo porque não é ela que cuida de tudo isso. Ela ficou bem chateada.

Não consegui conter um sorriso de satisfação. Até agora, tudo corre bem na minha tentativa de manter a posse do produto.

— Não comece a sorrir ainda, Dani. Uma visita ao tribunal e ela provavelmente poderá voltar. — Disse meu pai.

Apesar das palavras dele, Saulo também estava sorrindo.

— Sim, eu sei, mas isso me dá tempo para convencê-la de que seria melhor para ela ser a pessoa a se mudar.

— Como você pretende fazer isso, filho? — Perguntou meu pai.

— Simples. Vou dizer a ela que, se ela voltar a morar aqui, eu me mudo, porque não há a menor chance de eu estar morando sob o mesmo teto que ela. E se eu for embora, não só as reformas vão parar, porque com certeza não serei eu quem as fará, como também não vou pagar outro profissional para fazê-las. Além disso, também vou parar de pagar o financiamento, ela é que vai ter que pagar.

— Oh, Dani, você tem certeza de que é uma boa ideia? Você pode perder a casa. — Minha mãe estendeu a mão e apertou-a suavemente.

— Eu sei que é uma aposta, mãe, mas prefiro perder a casa a vê-la ficar com ela, sendo que foi meu sangue, suor e lágrimas que me proporcionaram obter a casa. Porque o dinheiro dela, ela apenas gastou com ela mesma.

— Mas o depósito e todo o dinheiro que você investiu nisso.

— É só dinheiro, mãe. Sou jovem; sempre posso ganhar mais dinheiro e vou me ferrar de todas as maneiras possíveis antes de ver ela lucrar com suas mentiras e traições. Ela é uma prostituta e me passou a perna direitinho, mas não vai tirar um centavo a mais de mim do que o absolutamente necessário.

O fato de minha mãe não ter me repreendido pela minha linguagem dizia muito sobre o seu estado de espírito; normalmente, ela não era tão tolerante com palavrões meus ou do Saulo quanto era com a Mel. Vai entender.

— Com certeza. Estou contigo, Dani. — Concordou Mel. — Quem trai não deve prosperar. Aliás, aquela vadia deveria pagar caro pelo que fez. E o Zaqueu também.

— Então, onde ela tem estado hospedada?

Mamãe abriu a boca para responder, mas a fechou em seguida, franzindo a testa antes de tentar novamente.

—Na verdade, Dani, eu não sei. Ela nunca disse nada depois de recusar minha oferta para que ela ficasse aqui. Desculpe, querido, mas...

— Tudo bem, mãe, você não precisava saber. Eu queria assim para que vocês não precisassem mentir para mim. Na verdade, eu contei algumas histórias diferentes. Queria confundi-la e que ela não soubesse onde me procurar. Para os colegas de trabalho dela, eu disse que ia trabalhar no oeste e estava organizando uma festa surpresa, e para o Zaqueu eu meio que misturei as duas histórias e...

—Você ligou para o Zaqueu? — Percebi o choque na voz de Mel.

— Hum, sim. Tive que ligar.

— Como você não pulou através da linha telefônica e estripou o desgraçado? — Perguntou Saulo.

Eu ri baixinho. — Com muita dificuldade.

— Aposto que sim. — Murmurou meu pai, balançando a cabeça, com um sorriso sombrio brincando no canto da boca.

A conversa parou; fez-se silêncio à mesa. Todos os olhares estavam voltados para mim. Eu podia sentir o amor e o apoio deles sem que uma palavra fosse dita. Meu pai foi o primeiro a quebrar o silêncio.

— Parece que suas reservas em relação à Clara eram justificadas, afinal, querido.

Me virei para minha mãe, surpresa. Ela nunca tinha sido fria ou hostil com Clara. Talvez não houvesse a mesma proximidade que ela tinha com Mel, mas ela nunca tinha sido antipática, crítica ou demonstrado favoritismo quando se tratava de presentes.

— Você tinha desconfianças?

Mamãe deu de ombros. — Não era nada que eu conseguisse definir. Ela sempre foi educada, doce e falava bem, mas, sim, sempre tive minhas dúvidas em relação a ela. No começo, atribuí isso à juventude dela, mas ela já está na casa dos trinta e deveria ter superado essa inconstância. Não sei o que dizer além de que foi uma questão de intuição feminina, eu acho. Nunca te disse nada porque, bem, você estava completamente apaixonado e eu não tinha motivos para ter dúvidas.

— Algum de vocês chegou a ver algo de errado? Quebrei a cabeça tentando lembrar, mas nunca notei ela flertando com ele mais do que com qualquer outra pessoa, nem ele sendo inapropriado em nenhum dos nossos eventos familiares. Nada, nunca?

Todos balançaram a cabeça negativamente.

— É evidente que eles têm sido muito cuidadosos com o relacionamento deles. — Acrescentou Mel, constatando o óbvio.

— O que é isto? — Perguntou minha mãe baixinho, pousando as pontas dos dedos na pasta que estava em exibição.

— Essas são todas as cartas que o Zaqueu escreveu.

Ela já tinha a pasta nas mãos e a abriu pela metade antes que eu pudesse avisá-la.

— Ah, mãe, acho que você não quer ver isso. São, hum, meio grosseiras e explícitas. Não são cartas de amor de verdade.

Ela fez uma pausa, olhando para mim por cima da borda da pasta.

— Não tenho dúvida de que estou prestes a ficar horrorizada, mas sou capaz de lidar com isso.

Todos a observamos em silêncio. Várias vezes ela fechou os olhos por longos instantes, mas, além de um ou dois suspiros que escaparam de seus lábios cerrados, não emitiu nenhum som. Quando terminou, com o rosto imbuído de repulsa, passou a pasta para meu pai, que fez o mesmo e começou a ler o conteúdo repugnante.

Minha mãe estendeu a mão por cima da mesa e segurou minhas duas mãos.

— Sinto muito que você tenha tido que ler algo assim, querido, sobre duas pessoas que você amava e em quem confiava. Eu não o teria culpado se você tivesse estrangulado a vadia até a morte e depois feito o mesmo com o Zaqueu. Ainda bem que você não fez isso, porque eu não quero você na prisão, mas uma morte lenta e dolorosa é o que eles merecem.

O silêncio voltou a reinar. A falta de conversa era constrangedora; normalmente éramos um grupo barulhento, mas eu os conhecia bem o suficiente para saber que ninguém queria falar muito até que todos tivessem lido as cartas. Mamãe e Mel tomavam seus cafés enquanto Saulo, papai e eu bebíamos nossas cervejas. Quando papai terminou, passou a pasta para Saulo e se levantou.

— Me dê uma mão, Dani.

Segui meu pai até a cozinha, onde ele me envolveu num abraço tão apertado que mal conseguia respirar. Afundei-me em seus braços, agarrando-me a ele como fazia quando pequeno, quando os braços do meu pai eram o lugar mais seguro do mundo. Quando finalmente nos separamos, ele acariciou meu rosto e olhou-me fixamente nos olhos.

— Isso não é culpa sua, Dani. Você nunca tratou aquela vadia com nada além de amor e devoção. No minuto em que você começar a duvidar de si mesmo, ligue para mim ou para sua mãe. Não deixe isso te destruir, filho. Ela claramente não vale a pena.

Assenti com a cabeça, com medo de falar e perder a compostura, chorando como uma criança. Percebendo meu dilema, meu pai continuou a acariciar meu rosto e a me fitar nos olhos, tentando, creio eu, me transmitir sua força.

— Você vai superar isso, Dani. Eu garanto. Você tem uma família que te ama e estará ao seu lado, não importa o que aconteça.

— Eu sei, pai.

— Bom, mas não faz mal lembrar às vezes que você não está sozinho.

Ele soltou minhas bochechas e me puxou para mais um abraço. Com um último tapinha nas minhas costas, ele se afastou, foi até a geladeira, pegou dois refrigerantes e me ofereceu.

— Precisamos estar com a cabeça fria. Depois de termos um plano de ação definido, podemos tomar umas cervejas ou conhaques. — Explicou ele.

Nos reunimos aos outros e pude ver que Saulo e Mel, que estavam compartilhando a pasta, sem dúvida para economizar tempo, estavam quase terminando. Saulo estava em silêncio, com o maxilar cerrado de um jeito que eu sabia que indicava a intensidade de sua fúria. Ele nunca demonstrava sua raiva aos berros. Eu só o tinha visto perder a cabeça algumas vezes na vida, mas cada uma delas foi marcada por seu silêncio e imobilidade antes de uma explosão de ira ser desencadeada. O clichê da calmaria antes da tempestade o descrevia perfeitamente. Mel, por outro lado, resmungava baixinho, com as bochechas coradas por uma mistura de horror e raiva, pelo que imaginei.

Após olhar para Saulo para confirmar se ele também havia terminado, Mel jogou a pasta de volta na mesa com desgosto.

— Bem, se eu não tivesse visto com meus próprios olhos, jamais acreditaria que os dois fossem capazes de tamanha sujeira. Parece um filme pornô de quinta categoria. Quem faz uma coisa dessas e por tanto tempo.

Enquanto meu pai se sentava, olhou para minha mãe. — Coloquei a chaleira no fogo para você e para a Mel, querida. A água já deve ter fervido.

— Eu vou fazer isso, sogra. Eu preciso fazer alguma coisa ou acho que vou explodir.

Mel agarrou a chaleira de água quente, quase derrubando a tampa na pressa.

— Posso presumir que você vai se divorciar dela? — Perguntou Saulo.

— Sim, pelo que vejo, o divórcio é minha única opção.

Todos assentiram com a cabeça.

Mel voltou e encheu a xícara da minha mãe. — Divórcio é ótimo, mas você precisa fazê-los pagar pelo que fizeram.

Se eles saírem impunes, eu mesma vou atrás dela. Com ele então, eu nem sei do que sou capaz.

— Não posso mentir, Mel. Imaginei inúmeras maneiras realmente espetaculares de me vingar deles, mas... — Minha voz sumiu, com um suspiro. — Mas não quero me rebaixar ao nível deles. Tenho medo de que, se fizer isso, não consiga sair dessa lama. Não quero perder quem eu sou.

— Você não precisa. — Disse minha mãe. — A verdade, as palavras e as ações deles os condenarão.

Ela tinha toda a nossa atenção.

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Comentários

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Muito bom. Tô achando o Daniel muito passivo, ele deveria na parte financeira ter tomado atitude no sentido de deixar a traidora sem nada;ter vendido a caminhonete para um terceiro, bola um jeito com relação a casa, fazer um financiamento do imóvel, e só falar que precisa financiar pra levantar dinheiro para termina-lo. Depois coloca esse dinheiro na conta dos pais ou aplica em criptomoedas e some com o dinheiro.

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Muito bom ter uma família que compra suas brigas, ainda mais quando são justas.

A frase do capítulo foi essa:

"Por que a vida era tão injusta? Tão desleal? Parecia que os agressores sairiam praticamente ilesos, enquanto eu, a parte inocente, pagaria em todos os sentidos; física, mental, financeira e emocionalmente."

A frase vale para muitas coisas que acontecem na vida.

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