A primeira coisa que sinto não é o sol, nem o cheiro de café. É o peso. Oitenta e dois quilos de carne inerte, ossos densos e pele que não sente temperatura, ancorados ao colchão ortopédico como se fossem sacos de cimento molhado. Minhas pernas. Elas estão lá, eu sei que estão, vejo os volumes sob o lençol de algodão egípcio de 600 fios, mas a conexão neural foi cortada com a precisão cirúrgica de uma guilhotina na altura da T12. Acordar é o processo diário de lembrar que eu morri, mas meu cérebro esqueceu de avisar ao resto do corpo para parar de respirar.
O cheiro do quarto é uma mistura enjoativa de lavanda — o aromatizador caro que Lúcia insiste em usar — e o subtexto acre de amônia e látex. O cheiro da minha dependência. O cheiro de um homem de trinta e cinco anos que precisa ser trocado antes do café da manhã.
A porta se abre. Lúcia.
Ela entra com a luz da manhã recortando sua silhueta através da camisola de seda pérola, o tecido agarrando-se às curvas que eu costumava explorar com a fome de um marido recém-casado. Agora, vejo apenas a mecânica do corpo dela. Os seios fartos, livres sob o tecido, balançam levemente com o passo cansado. O cabelo castanho está preso num coque frouxo, fios rebeldes colados no pescoço por uma fina camada de suor noturno. Ela é linda de uma maneira que dói, uma beleza que está apodrecendo de dentro para fora pelo cansaço e pelo ressentimento.
— Bom dia, Rafa — ela diz. A voz é suave, treinada. É a voz que se usa com crianças ou animais feridos.
— Bom dia — minha voz sai rouca, seca como lixa.
Ela não me beija na boca. Faz meses que ela não me beija na boca. Ela beija minha testa, um toque seco e maternal que me castra um pouco mais a cada alvorecer.
— Vamos lá. Rotina — ela sussurra, mais para si mesma do que para mim.
Ela puxa o lençol. A humilhação não é um evento único; é um ritual. Ela calça as luvas de látex azul. O estalo da borracha contra a pele do pulso dela é o som do início do meu turno no inferno. Ela pega a comadre de inox gelado.
*Ela está pensando no cheiro. Eu sei que está. Ela está rezando para que eu não tenha tido um acidente noturno, para que a fralda esteja seca, porque limpar merda seca da pele de um homem adulto é o tipo de coisa que mata o desejo sexual de qualquer mulher.*
Ela levanta minhas pernas. Eu vejo as mãos dela — aquelas mãos de pianista, dedos longos e elegantes que agora têm as unhas cortadas rente para não me arranhar — agarrando meus tornozelos pálidos e atrofiados. Ela manobra meu corpo como se eu fosse um manequim de loja quebrado.
— Vira, amor — ela pede, e empurra meu quadril.
O "amor" é um cacoete linguístico. Eu obedeço, usando a força dos meus braços para ajudar a girar o tronco. E então, começa. O toque clínico. O lenço umedecido frio passando nas minhas nádegas, limpando o suor e resquícios de urina. Ela verifica a pele em busca de escaras, aquelas úlceras de pressão que são o terror da minha existência. O dedo dela pressiona a base da minha coluna, verifica o sacro.
— Está vermelhinho aqui — ela murmura, preocupada. — Vou passar a pomada de barreira.
Ela espalha o creme espesso e gorduroso. O toque é íntimo, mas desprovido de qualquer erotismo. É manutenção. Sou um carro velho na oficina. E enquanto ela cuida do meu ânus, garantindo que eu não apodreça vivo, eu olho para o decote da camisola dela, que se abriu quando ela se curvou. Vejo o vale profundo entre os seios, a pele macia, o bico do peito esquerdo endurecido pelo ar condicionado ou... ou pela expectativa.
Porque hoje é terça-feira. E terça-feira é dia de Thiago.
***
Thiago chega às 09:30 com a pontualidade de um predador que sabe que a presa não pode fugir.
O interfone toca e eu vejo a mudança física em Lúcia. É sutil, mas eu sou um observador profissional agora. A postura dela se endireita. Ela passa a mão no cabelo, soltando o coque, deixando os fios caírem sobre os ombros. Ela mordisca o lábio inferior para trazer cor. O cheiro dela muda; a acidez do cansaço dá lugar a um feromônio doce, ansioso.
Quando Thiago entra no quarto, o espaço encolhe. Ele é tudo o que eu não sou mais. Alto, 1,82m de pura arrogância biológica. Ele usa aquelas camisetas de tecido tecnológico que colam no corpo, evidenciando o peitoral trabalhado e os bíceps que ele faz questão de flexionar sempre que me manipula. Ele cheira a rua, a escapamento de carro, a desodorante *Old Spice* e a testosterona.
— E aí, guerreiro! — ele exclama, a voz explodindo no quarto silencioso. — Vamos colocar esse esqueleto para mexer?
*Guerreiro.* Eu odeio essa palavra.
Lúcia está no canto, preparando a bandeja de remédios. Eu vejo o olhar. É rápido, quase imperceptível. Thiago olha para a bunda dela, coberta agora por uma calça de yoga preta justa, daquelas que desenham cada centímetro das nádegas e a fenda entre elas. Ele sorri. Um sorriso de canto de boca, sujo, proprietário.
— Como ele passou a noite, Lu? — Thiago pergunta, a intimidade no apelido raspando em mim como vidro moído.
— Agitado — ela responde, sem olhar para ele, focada em esmagar um comprimido. — Espasmos.
— Vamos precisar relaxar essa musculatura então — ele diz, e a mão dele, grande e quente, aperta minha coxa morta. — Vou começar com os alongamentos de isquiotibiais.
Ele levanta minha perna direita, empurrando o joelho contra meu peito. Eu não sinto o alongamento, mas vejo meu corpo dobrando. Lúcia se aproxima com o copo d'água e o Rivotril.
— Toma, Rafa — ela diz.
Eu olho para o copo. A água está turva. Ela dissolveu o comprimido. Não é a dose de 0,5mg. Eu conheço o gosto, conheço a cor. São 2mg, talvez 3mg. O suficiente para derrubar um cavalo. O suficiente para me apagar por três horas.
— Obrigado — eu digo, e engulo.
Por que eu engulo? Essa é a pergunta que me assombra nas madrugadas insones. Eu engulo porque sou covarde. Eu engulo porque, por algumas horas, eu não preciso ser o marido aleijado. Eu engulo porque, no fundo, uma parte doentia e masoquista de mim quer que aconteça.
O remédio bate rápido. Minhas pálpebras ficam pesadas, como se tivessem âncoras. O teto branco começa a girar suavemente.
— Ele já está indo... — ouço a voz de Thiago, distante, como se viesse debaixo d'água.
— Espera ele apagar de vez — a voz de Lúcia. Dura. Ansiosa.
— Ele não vai ouvir nada, gatinha. O cara tá no mundo da lua.
Sinto a mão de Thiago soltar minha perna. Ouço passos. O som de um zíper? Não, talvez seja minha imaginação drogada. A escuridão me engole.
***
Mas hoje o corpo lutou. Talvez a tolerância química, talvez o ódio, talvez o simples acaso biológico.
Acordo. Não sei que horas são. O quarto está na penumbra, as cortinas fechadas. Minha boca está seca, pastosa, com gosto de metal e remédio. O silêncio da casa não é total. Há um ritmo. Um som surdo, repetitivo, vindo da sala. *Thump. Thump. Thump.* E vozes. Não, não vozes. Sons primais.
Meu corpo parece feito de chumbo, mas a adrenalina inunda meu sistema, lutando contra o benzodiazepínico. Eu preciso ver. Eu preciso saber.
Arrasto-me para a lateral da cama. Meus braços tremem, mas a raiva é um combustível potente. Puxo a cadeira de rodas para perto. A transferência é desajeitada, perigosa. Quase caio. Se eu cair, serei um besouro de costas, esperando alguém me desvirar. Mas consigo. Jogo o tronco no assento, puxo as pernas mortas com as mãos, jogando-as nos apoios de pé.
O piso do corredor é laminado de madeira. As rodas deslizam silenciosamente. Eu sou um fantasma na minha própria casa.
O som fica mais alto. *Thump. Thump. Áh... isso... porra...*
Chego à porta da sala. Está entreaberta. A fresta é suficiente. É um palco iluminado pela luz cruel do meio-dia que entra pela varanda.
Eles não estão no sofá. Estão no tapete felpudo, bem no centro da sala, diante da TV desligada que reflete a cena distorcida.
Lúcia está de quatro. A calça de yoga foi arrancada e jogada em cima da mesa de centro, derrubando um vaso de orquídeas que ela ama. Ela está apenas com a blusa puxada para cima, os seios pendurados, balançando com o impacto.
Thiago está atrás dela, de joelhos. Ele ainda veste a camisa polo, mas está nu da cintura para baixo. E o que eu vejo... Deus, o que eu vejo me destrói e me excita na mesma medida nauseante.
O pau dele. Grosso, veioso, vermelho de sangue represado, brilhando de saliva e fluidos vaginais. Ele segura os quadris de Lúcia com uma possessividade brutal, os dedos afundando na carne macia da bunda dela, deixando marcas vermelhas que vão virar hematomas roxos amanhã.
— Isso, sua puta... aguenta — Thiago rosna, e estoca.
Ele não está fazendo amor. Ele está usando o corpo da minha esposa como um objeto de masturbação. Ele mete fundo, com força, fazendo o corpo dela ser jogado para frente a cada investida.
— Mais... Thiago, por favor, mais forte... me arrebenta... — Lúcia geme. A voz dela. Aquela voz que minutos atrás era doce e maternal comigo, agora é rouca, suja, irreconhecível. Ela joga a cabeça para trás, o pescoço arqueado, os olhos revirados.
Eu vejo tudo em detalhes gráficos, 4K de horror. Vejo os lábios da buceta dela, inchados e vermelhos, engolindo e cuspindo o pau dele num ritmo frenético. Vejo o líquido branco e espumoso que se forma na junção dos corpos — a mistura do lubrificante natural dela com o pré-gozo dele. O som é obsceno: o *clap-clap* da pele das coxas dele batendo nas nádegas dela, misturado com o som molhado, viscoso, da penetração. *Schluck. Schluck. Schluck.*
— Olha pra isso — Thiago diz, dando um tapa estalado na bunda direita dela. A pele ondula com o impacto. — Tão molhada. Você estava desesperada por pau, não estava, Lúcia? Aquele aleijado lá dentro não consegue fazer isso, consegue?
Eu deveria gritar. Deveria invadir a sala. Mas estou paralisado. Não pela lesão medular, mas pela verdade brutal daquelas palavras.
— Não fala dele... — ela geme, mas empurra a bunda contra ele, pedindo mais. — Só me fode... cala a boca e me fode...
— Eu falo o que eu quiser — ele rebate, puxando o cabelo dela com força, obrigando-a a levantar o rosto. Ele cospe nas costas dela. Um jato de saliva que escorre pela espinha. — Você é minha agora. A enfermeira dele é a minha puta.
Ele tira o pau de dentro dela com um som de sucção, um *pop* molhado. Lúcia solta um gemido de protesto, o corpo tremendo, a buceta dela ficando aberta, escancarada, pulsando no ar, vazia.
— Vira — ele ordena.
Ela obedece instantaneamente. Ela se vira de costas no tapete, abrindo as pernas. E então eu vejo o rosto dela. Maquiagem borrada, lábios inchados, uma expressão de êxtase drogado que eu nunca, *nunca* consegui dar a ela.
Thiago se posiciona entre as pernas dela. Ele pega o pau — aquela barra de carne pulsante — e começa a bater no rosto dela. *Slap. Slap.* A cabeça do pênis batendo nas bochechas, nos lábios, no nariz. Humilhando-a. Marcando-a.
— Chupa — ele manda.
Lúcia abre a boca e engole. Ela chupa com uma fome desesperada, as bochechas afundando, fazendo barulhos de garganta que ecoam pela sala. Ela usa as mãos para segurar as bolas dele, massageando o saco escrotal enquanto a língua trabalha no freio da glande.
Eu sinto meu próprio pau. Mole. Inútil. Um pedaço de carne murcha escondido dentro da fralda geriátrica. A comparação é inevitável e devastadora. Thiago é virilidade pura. Eu sou um vegetal com consciência.
— Vou gozar, Lúcia... vou encher você... — Thiago avisa, a respiração ficando irregular.
Ele sai da boca dela e, sem aviso, levanta as pernas dela, jogando-as sobre os ombros dele. Ele alinha o pau com a entrada dela novamente e se enterra até as bolas num único movimento violento.
Lúcia grita. Um grito abafado, gutural.
— DENTRO! — ela implora. — GOZA DENTRO DE MIM!
Ele acelera. É animalístico. Suor pinga do rosto dele no peito dela. Os seios dela balançam violentamente. Ele fode com raiva, com desprezo, com poder. Cinco, seis, sete estocadas brutais. O corpo dele convulsiona.
— PORRA! — ele ruge.
Ele segura firme contra ela, despejando jato após jato de esperma quente dentro do útero da minha esposa. Eu imagino a sensação. O calor se espalhando dentro dela, preenchendo o vazio que eu deixei. A semente dele colonizando o território que um dia foi meu.
Ele cai sobre ela, ofegante. O silêncio retorna, pesado, quebrado apenas pela respiração descompassada dos dois e pelo som úmido dos corpos se descolando lentamente.
Eu vejo o esperma escorrendo. Um fio branco, grosso, misturado com os sucos dela, escorrendo da entrada da vagina em direção ao ânus, pingando no tapete caro.
E então, o pior acontece.
Thiago levanta a cabeça. Ele olha em direção ao corredor. Talvez tenha ouvido o rangido da minha roda. Talvez tenha sentido o peso do meu olhar.
Nossos olhos se encontram.
Ele me vê. Ele vê o marido na cadeira de rodas, pálido, patético, assistindo.
Ele não se assusta. Ele não tenta se cobrir.
Thiago sorri.
Um sorriso lento, cruel, vitorioso. Ele pisca para mim, enquanto a mão dele ainda repousa possessivamente sobre o seio esquerdo de Lúcia.
Eu recuo. Minhas mãos tremem tanto que mal consigo segurar os aros. Giro a cadeira, o pânico subindo pela garganta como bile. Volto para o quarto. Volto para a cama.
Arrasto meu corpo de volta para o colchão, o esforço quase fazendo meu coração explodir. Cubro minhas pernas mortas. Fecho os olhos. Finjo que estou dormindo.
Mas o cheiro... o cheiro de sexo, de almíscar, de porra fresca... ele vem flutuando pelo corredor, invadindo meu santuário, impregnando meus lençóis.
Eu ouço os passos de Lúcia no chuveiro minutos depois. A água caindo. Ela está se lavando. Lavando o cheiro dele. Lavando a prova.
Mas quando ela volta para o quarto, trinta minutos depois, para ver se eu acordei, ela se inclina sobre mim. E mesmo com o banho, mesmo com o sabonete, eu sinto.
Debaixo do cheiro de lavanda, há o cheiro de cloro. O cheiro de outro homem.
— Rafa? — ela sussurra, tocando meu rosto.
Eu abro os olhos. Olho para ela. Vejo a mulher que jurou me amar na saúde e na doença. Vejo a mulher que acabou de ser fodida como uma cadela no chão da nossa sala.
— Oi, amor — eu digo.
E a mentira tem gosto de cinzas na minha boca. Eu não digo nada. Eu não grito. Porque eu sei, com uma certeza fria e terrível, que se eu falar... ela vai embora. E eu ficarei sozinho com minhas pernas mortas.
Então eu sorrio. O sorriso mais doloroso da minha vida.
— Tive um sonho estranho — eu minto.
E o inferno continua.
***
>> Gente, se estiverem gostando comentem aí… essa série vai ter 5 partes, extremamente polêmica, cruel… mas a minha intenção é contruir personagens humanos sem a simplicidade do “certo” ou “errado”. Todos somos metade luz, metade sombra… ou pelo menos deveríamos ser. A questão é: qual lado que vence? Quais monstros existem no escuro quando ninguém está olhando?