Quando amar demais, reconstrói!

Um conto erótico de Mark da Nanda
Categoria: Heterossexual
Contém 4557 palavras
Data: 23/12/2025 18:44:37

Uma semana passou num silêncio doloroso, mas que aumentava a esperança de Anália. “Ele ficou tocado. Ele me ama. Vai me perdoar.”, pensava. Entretanto, no meio da semana seguinte, os papéis do divórcio chegaram como uma sentença fria à sua culpa, embrulhados em um envelope pardo e timbrado de um escritório de advocacia que Anália encontrou na caixa de correio da casa dos pais. Era uma tarde chuvosa de outono e o ar úmido parecia amplificar o peso do ar que pairava sobre aqueles documentos. Ela os abriu na cozinha, sob o olhar atento de Dona Lúcia, que preparava um chá de camomila para acalmar os nervos da filha. Depois de segundos de leitura, desafiando os olhos que teimavam em ficarem marejados, ela disse:

- É isso, mãe. O fim oficial.

Dona Lúcia pousou uma xícara à frente da filha, fez-lhe um rápido cafuné e se sentou ao seu lado, pensando duas vezes no que devia falar:

- Não vejo assim, filha. Fim só há um e Deus se encarrega de nos dar. Para mim, isso é uma chance, chance de um recomeço.

- Sem ele, mãe!? - Insistiu Anália, os olhos marejando.

- Por que você não procura um advogado, se orienta, vê se está tudo certo e... - Ela titubeou vendo a dor nos olhos da filha: - Ou só assina, e deixa tudo isso para trás. Felipe não seria injusto...

Anália folheou as páginas, os olhos correndo pelas cláusulas secas e impessoais. A casa, comprada por Felipe antes do casamento, permaneceria inteiramente com ele, um alívio amargo, mas justo, pois ela nunca se sentira dona absoluta daquele espaço, embora sempre tenha tido liberdade absoluta para fazer e desfazer, mas sim uma hóspede que o encheu de memórias. Os bens adquiridos após o casamento seriam divididos ao meio: a poupança conjunta, os investimentos em ações que Felipe gerenciava com maestria, os móveis da sala e da cozinha que eles escolheram juntos em uma feira de design. Anália teria direito à metade do valor da empresa de Felipe que crescera durante o matrimônio, calculado por peritos imparciais, e ele, por sua vez, receberia metade dos contratos freelance que ela fechara nos últimos anos, incluindo royalties de logos e identidades visuais que ainda rendiam. Era justo, no papel, mas o coração de Anália sangrava ao ver números substituírem anos de cumplicidade. Ela pegou seu celular e ligou para Felipe. Diferentemente das outras vezes, ele a atendeu no terceiro toque:

- Anália!? - Perguntou, surpreso.

- Oi, amo... - Ela pigarreou: - Oi, Felipe. Eu... recebi os papéis do divórcio, mas não concordo.

- Como assim!? Por que não?

- Eu... queria que você alterasse a cláusula sobre a sua empresa. Não quero nada dela. Só queria te pedir que você também abrisse mão dos meus contratos e royalties. Acho que você não terá prejuízo algum, porque minha renda ainda não era tão grande quanto a sua e...

- Sério!? - Perguntou Felipe, desconfiado.

- Se você concordar, sim.

Felipe se manteve em silêncio por instantes, talvez analisando sua proposta. Então, falou:

- Você tem como se manter?

Ela sorriu involuntariamente, ouvindo a preocupação do ainda marido:

- Tenho. Meus pais querem que eu fique aqui por enquanto. Minha renda é suficiente com sobras para as minhas despesas.

- Então, tudo bem. Vou pedir para o Doutor Mark retificar a minuta e... - Ele se calou: - Me passa o nome do seu advogado.

- Não precisa. Peça para o seu me representar também.

- Ok. Vou pedir para ele entrar em contato com você.

- Tá. Obrigada.

- Eu que te agradeço.

No início da semana seguinte, o Dr. Mark entrou em contato e, por vídeo conferência, explicou todas as cláusulas, as antigas e as novas por ela solicitadas. Ela concordou com tudo. Nova minuta e procuração chegaram pelo correio para sua análise, mas Anália não precisava ler, já sabia de tudo e assinou às cegas.

Só no dia da audiência virtual, cada qual de seu local próprio, Anália soube que Felipe havia sido ainda mais generoso: ele abrira mão de alguns itens pessoais dela, como joias, tablet, laptop e um domínio na internet que os dois haviam criado com tanto carinho para sua futura agência de marketing. Anália vestia uma blusa preta simples, símbolo inconsciente de seu luto, e o cabelo preso num coque meio bagunçado. Felipe apareceu na tela, o rosto impassível, o fundo neutro de seu escritório. Dr. Mark surgiu de uma luxuosa sala com vários livros atrás de si. Além deles, um juiz, um promotor e um escrevente:

- Os termos estão claros para ambas as partes? - Perguntou o juiz, uma voz grave e distante.

- Sim, meritíssimo - Respondeu o Dr. Mark, corroborado por um aceno de cabeça de Felipe.

Anália murmurou um "sim" rouco, os olhos fixos na imagem pixelada do ex-marido. Ele não se olhavam diretamente, mas se olhavam, focando na câmera como se falassem com o próprio destino.

O divórcio foi homologado em menos de vinte minutos. Quando a tela escureceu, Anália sentiu um vazio que não era alívio, nem dor aguda, era um limbo, como se uma parte dela tivesse sido amputada sem anestesia. Mas, como o juiz dissera, numa tentativa protocolar de reconciliar o casal, o divórcio não era o fim. Era apenas o ponto final em um capítulo que a vida, teimosa, insistia em virar a página.

Nas semanas seguintes, Anália intensificou as sessões com a dra. Marisa. Agora, duas vezes por semana, ela se sentava no sofá de couro do consultório, rodeada por plantas e uma luz suave que tentava imitar o sol. A terapeuta, com seus óculos de armação fina e voz serena, mergulhava cada vez mais fundo nas camadas subconscientes de Anália, desenterrando motivações que ela própria desconhecia:

- Vamos falar sobre o que te levou a se entregar tão facilmente ao Betão, Anália. - Sugeriu Marisa em uma sessão particularmente tensa, fazendo com que ela a encarasse com semblante bravo: - Você descreveu o primeiro encontro no motel como impulsivo, influenciado pelo álcool e pela briga com Felipe. Mas será que foi somente isso?

- O que você está insinuando? - Resmungou Anália, cruzando os braços.

Marisa a olhou sem julgamento, sem compaixão, apenas contemporizando que deveria ser menos objetiva:

- Vamos retroceder, ok? Você me disse que conheceu Felipe num churrasco de aniversário do Betão, correto?

- Sim. - Respondeu.

- Foi o Betão que te convidou?

- Sim. - Sua entonação ficou mais seca.

- Por que você aceitou o convite?

- Ué!? Porque... Porque... Por que não aceitaria!? - Anália respondeu, os ombros balançando, inconformados.

Marisa a encarou por sobre a armação do óculos e insistiu:

- Nada te impedia, é claro. Mas o que te fez aceitar? Afinal, vocês pouco ou quase nada se conheciam...

- Mas eventos assim não servem para as pessoas se conhecerem melhor?

- Então, você tinha interesse em conhecer melhor o Betão. - Contemporizou a terapeuta, sem perguntar, nem responder.

Anália ficou confusa por um momento, mas logo entendeu onde a terapeuta queria chegar e se retraiu. O silêncio foi inevitável. Por segundos, ficou pensando que ela estava certa, talvez soubesse mais do que ela própria, mas também poderia estar errada:

- Mas eu nunca me insinuei para ele. Ele me convidou e eu não vi porquê não aceitar. E foi lá também que eu conheci o Felipe. Aliás, foi o Betão que nos apresentou.

- Veja bem... O interesse do Betão em você é claro, inclusive ele já te confessou isso naquela vez lá na...

- Na edícula. - Anália a interrompeu, chateada: - Sim, é verdade. Eu me lembro.

- Então... - Pigarreou a terapeuta, retomando sua linha de pensamento: - Talvez o seu interesse por ele é que tenha ficado mascarado quando você conheceu o Felipe.

- Está querendo dizer que eu queria ficar com o Betão, é isso, e o Felipe atrapalhou?

- Responda-me você. Se você não tivesse conhecido o Felipe, teria dado uma chance para o Betão?

Anália arregalou os olhos e desviou o olhar para uma parede lateral, ciente de que a resposta àquela pergunta era um talvez, quase certamente um sim. Ainda assim, ela não entendia:

- Mas eu nunca quis trair o Felipe. Isso não é da minha índole. Tudo bem, a gente discutiu, eu estava chateada, saí de casa, bebi mais do que devia, mas fiz isso para traí-lo.

- E o que você buscava então quando saiu de casa para um ambiente lotado de solteiros, bebendo sem controle?

- Não sei. Eu... acho que... acho que eu queria me lembrar quem eu era antes. Sentir de novo aquela liberdade que toda solteira tem, sabe? Sei lá... Ter o poder de tomar minhas próprias decisões novamente.

- Aham... - Resmungou Marisa, anotando algo em seu caderno: - Você me disse que uma amiga sua ligou para o Felipe te buscar, mas que, quem atendeu foi o Betão, e, por isso, ele foi te buscar, correto?

- Correto.

- Por que você acha que a sua amiga fez isso?

- Ué! Porque... - Anália deu de ombros: - Porque um cara estava conversando comigo e ela não queria me deixar conversar com ele. Daí, ela me disse que iria ligar para o meu marido e eu falei que não me importava.

A terapeuta a encarava curiosa, mas antes que dissesse algo, Anália continuou:

- Acho que na verdade o que eu queria era que o Felipe tivesse ido me buscar. Talvez a gente discutisse, mas certamente iria terminar num motel. Você sabe, né? Fazendo um sexo de reconciliação. Só que aí quem apareceu foi o Betão...

- E aí você seguiu com o plano e foi para o motel com ele. - Insinuou a terapeuta.

- Mas eu... não queria... transar!? - Anália encarou a terapeuta, confusa: - Ou queria?

- Você queria. Esse era o seu plano para o seu marido, mas.

- Mas... com o Betão!?

- Vamos aprofundar... Se suas amigas não tivesse intervindo e ligado para o seu marido/Betão, você teria transado com o carinha da balada, talvez para provar a tal "liberdade de solteira" que você me falou?

- Eu... não. Acho... Acho que não...

- Você precisa ser sincera consigo mesmo Anália, senão não consigo te ajudar. - Retrucou a terapeuta, insistindo: - Teria ou não teria transado com o tal carinha, sabendo que isso não mudaria em nada seus sentimentos pelo seu marido, nem atrapalharia o seu casamento?

- Eu... Eu... - Anália suspirou profundamente consternada e mordeu os lábios, tensa: - Provavelmente sim.

Anália se sentou, agarrando-se aos joelhos, numa posição fetal e encarou a terapeuta:

- Eu sou um lixo, né? Eu saí para trair o meu marido por causa de uma discussão besta e pior voltei para casa com um amante.

- Não é bem assim. Talvez o Betão não fosse o seu alvo imediato, mas foi o que se apresentou mediatamente à sua frente e como ele já tinha algum interesse em você, tudo foi se encaixando.

- Talvez se eu não tivesse bebido tanto... - Resmungou Anália, como se tentasse convencer a si mesma.

- Talvez... - Concordou a terapeuta, novamente contemporizando: - Ou talvez isso só tenha potencializado você a tomar uma decisão que teria tomado no passado se não tivesse se envolvido com o Felipe. Você compreende isso? Concorda com essa possibilidade?

Anália se calou, olhando para as mãos, grudadas e apertadas ao ponto dos nós dos dedos ficarem brancos. A terapeuta não perdeu o fio:

- Mas o que me estranha é o depois? Por que continuar com ele, mesmo sentindo culpa?

Anália suspirou, ainda olhando para as mãos entrelaçadas:

- Eu não sei... Não sei direito nem porque aconteceu da primeira vez. Talvez você tenha razão e eu possa ter desenterrado algo. Sei lá... Tesão, porque o Betão é muito másculo, não sei! Talvez só pela novidade... Talvez pela surpresa porque, tenho que reconhecer, o Betão é muito intenso. Ele me dominava de um jeito que o Felipe nunca fez e isso me fazia sentir viva, desejada. Como se eu fosse a mulher mais importante do universo.

Marisa anotou algo em seu bloco, inclinando a cabeça.

- Dominação. Taí algo que ainda não eu não havia cogitado. Descreva como isso se manifestava.

- Oi!? - Perguntou Anália, surpresa, ficando com a face vermelha.

- É, ué? Quero saber o que ele fazia que pode ter disparado algum gatilho em você.

- Ué!? Ele... Ele... O Betão é um cara alto, forte, bem... dotado.

Anália pegou seu celular e abriu o perfil do Betão no Instagram, mostrando para a terapeuta, que o olhou por um momento e anotou algo em seu caderno. Anália não sabia se continuava ou se calava, mas uma olhada da terapeuta, fazendo um movimento de mão, a fez prosseguir:

- Ele é bem físico, sabe? Alto, forte... - Anália olhou de soslaio para a terapeuta que a encarava com olhar sereno e calmo: - Então... Ele me pegava pela cintura, me carregava para a cama como se eu fosse uma boneca. E no... no... Bem! Lá, ele fazia tudo, mandava mesmo, dizendo coisas como: "Arreganha as pernas, sua safada!", "Pede para eu enfiar em você, putinha casada". Ele não me pedia para chupar o seu pau, ele pegava e enfiava o pau na minha boca até eu quase engasgar. Ele é assim. Era cru, mas... era excitante também. Já com o Felipe... - Anália suspirou: - Ele era sempre carinhoso, respeitoso, sempre preocupado em me dar prazer, mas sem extrapolar no sexo ou nas palavras.

- Por que você acha que o Felipe é tão diferente do Betão na cama?

- Não sei. Talvez para que eu não me ofendesse com algo.

- Entendo. - Disse a terapeuta, ficando em silêncio por um instante: - Mas... o sexo com o Felipe não era bom?

- Ah sim. Era sim. Muito. Era aquela coisa mais calma, mas eu sempre gozava com ele. Só que... Sei lá! Acho que podia ser um pouquinho melhor na pegada.

A terapeuta a olhou por cima dos óculos e sorriu sem que ela percebesse:

- E por que você nunca pediu para ele fazer algo diferente, Anália? Ele era seu marido...

- Porque pensei que talvez ele se ofendesse, me achasse uma puta, deixasse de me amar...

A terapeuta assentiu com um movimento involuntário de cabeça, sem julgamento. Anotou novamente algo e perguntou:

- Tá. Essa "submissão"... - Fez aspas com os dedos, chamando a atenção de Anália: - Ela se estendia além do sexo? Por exemplo, naquela manhã em que você praticou sexo oral nele e depois beijou Felipe, sabendo que ele poderia sentir o gosto. O que passou pela sua cabeça?

Anália corou, os olhos marejando de imediato, o estômago revirando com a lembrança:

- Foi uma brincadeira idiota. Betão me desafiou, disse que eu não teria coragem. E eu... fiz. Foi como se eu quisesse provar algo para mim mesma, ou para ele. Uma rebeldia, talvez. Mas depois me senti baixa demais, cruel.

- Rebeldia contra o quê? Ou contra quem?

Anália pausou, os olhos marejados:

- Contra a rotina, talvez... Contra me sentir invisível no casamento. Felipe era ótimo, já disse, mas previsível demais. Já o Betão me via como alguém que precisava ser venerada e ao mesmo tempo, dominada, e isso alimentava um lado meu que eu não desconhecia. Sei lá... Acho que fundo, eu punia o Felipe por não ser mais... presente, mais surpreendente. Como se aquela crueldade fosse uma forma de gritar: "Você não é mais o meu dono. Veja o que você perdeu!"

Marisa sorriu levemente, encorajadora:

- Isso é um "insight" poderoso, Anália. Essa "dominação" de Betão sobre você preencheu um vazio emocional que transcendeu para o sexual. Mas será que ele é sustentável? Ou é só uma ilusão?

Anália a encarou por ter notado uma mudança na pergunta. Piscou rapidamente os olhos e respondeu:

- Ilusão, claro. Porque no fundo, eu sempre soube que amo o Felipe. Betão era o fogo, a novidade, o que me faltava, mas Felipe é o meu lar. - Anália então sorriu: - Será que, agora, eu entendendo isso um pouco melhor... Será que eu consigo me explicar melhor para ele me perdoar?

Marisa ajeitou os óculos sobre o nariz e seu semblante sereno, endureceu levemente, mas de uma forma quase imperceptível para Anália:

- Perdoar é bastante possível, quase certo pelo perfil que você me passou do Felipe. Mas... - Marisa fez uma pausa: - Você precisa entender que perdão não impõe necessariamente que vocês voltem a ficar juntos. Pode ser que o Felipe nunca supere a traição ocorrida e você precisa estar pronta para essa possibilidade.

As sessões seguintes continuaram no mesmo ritmo, profundas, desvendando camada por camada: primeiro, a infância de Anália, onde descobriram que seu pai, autoritário e pouco acessível, internalizou nela a necessidade de buscar aprovação em figuras dominantes:

- Mas Felipe... - Ponderou Marisa: - Ele não me parece uma figura autoritária, Anália. Por que se interessou justamente por ele?

- Felipe pode não ser dominante na cama, Marisa, mas é em muitas outras áreas. Ele sabe conversar bem, conhece diversos assuntos, domina muitos mesmo. Sabe se impor numa negociação. É um profissional e gestou como poucos. Todos os seus funcionários o adoram, ele sabe mesmo mandar. Quando precisa...

As sessões prosseguiram e logo descobriram uma insegurança de Anália, a de não se sentir "suficiente" no casamento, amplificada pela rotina:

- Mas você me disse que Felipe era insuficiente na cama? - Ponderou novamente Marisa.

- Não insuficiente. Só não era inovador. Do jeito dele, com aquela calma rotineira, ele mandava muito bem. Só não trazia inovação e emoção, acredito.

Aos poucos, Anália se reconstruía, aprendendo a separar desejo de amor, impulsos de escolhas conscientes. Ela começou a trabalhar mais, fechando novos contratos, alguns bem lucrativos. Voltou a sair com amigas, rindo pela primeira vez em meses e muito importante, bebeu pouco, quase nada. Inconscientemente, ela também culpava a bebida em excesso pelo fim de sua relação.

Entretanto, o coração ainda sentia falta de Felipe e seus dedos começaram a buscá-lo: mensagens esporádicas, como um simples "Espero que você esteja bem", mas que ficavam sem resposta. Era uma tentativa sutil de reaproximação, alimentada pela esperança que a terapia lhe trazia.

Enquanto isso, Felipe forjava uma nova versão de si mesmo, como um ferreiro moldando metal quente. A traição o deixara marcado, talvez para sempre, mas em vez de se afundar, ele canalizou a dor em ação. Primeiro, matriculou-se em um curso online de programação avançada em IA, algo que expandiria sua empresa de segurança digital. Suas noites, antes dedicadas a jantares com Anália e nos últimos tempos de seu casamento, também com Betão, agora eram preenchidas por aulas virtuais, códigos piscando na tela como estrelas distantes.

Mas o corpo também clamava por mudança. Olhando-se no espelho, via um homem magro que agora não lhe agradava mais. Pior: via o "CDF" protegido por Betão na infância. "Um baita de um banana!", pensou, ecoando as inseguranças que a traição avivara. Felipe se inscreveu em uma academia local de musculação, contratando um "personal trainer". Já no início queria crescer rapidamente e pediu solução:

- Não vou hormonizar você, Felipe. Você precisa aprender a treinar primeiro e te garanto, se você se dedicar e tomar apenas alguns suplementos regulamentados, como "whey protein", creatina, e ainda manter uma boa alimentação e descanso, você terá um resultado mais rápido do que imagina. - Explicou Artur, seu "personal".

Felipe começou com pesos leves e reclamou com Artur, mas foi só sentir seus músculos queimarem que entendeu que talvez ele estivesse certo. Ele persistiu. Musculação três vezes por semana no início: supinos, puxadas, agachamentos, remadas. No segundo mês, reclamou e passou a treinar todos os dias da semana, num sistema PPL ("push", "pull", "legs"). Em três meses, notou mudanças: ombros mais largos, músculos mais duros, boa respiração, abdômen definido. Não era sobre rivalizar com Betão, mas sobre se sentir forte para si mesmo, invencível por dentro e por fora.

Sua superação não foi fácil e veio em etapas. Passou a viajar mais longe para atender novos clientes, fechando contratos maiores, e até adotou um cachorro, um vira-lata chamado "Pamonha", que de pamonha não tinha nada, pois o obrigava a caminhadas matinais. Mas o trauma ainda latejava: sonhos com a edícula, vozes ecoando, gemidos acordando-o na madrugada. Pensou em contratar um psicólogo, mas sentia que seria assumir ser fraco demais para superar. Então, para fugir de seus próprios fantasmas, ele passou a se jogar em "hobbies": ler livros com mais frequência, inclusive de autoajuda, fazer meditação orientado por um guru virtual criado por ele próprio através de seus estudos em IA.

E então, surgiu Rafaela.

Despretensiosamente, uma bela mulata, entregadora de lanches, com olhos amendoados e piadas afiadas, tornou-se uma constante divertida em suas noites preguiçosas. Uma noite, após um pedido tardio, ela entregou o sanduíche com um convite inesperado:

- E aí, ursão entocado, topa um convite?

- Convite!? - Perguntou Felipe, curioso.

- Vai ter um show de rock amanhã no bar do Nogueira, lá no centro. É uma bandinha local, mas eu já os ouvi, tocam bem pra caramba e é boa pra dançar também. Sabe como é, né? Esquecer da vida de vez em quando...

- Convite... - Resmungou Felipe, olhando no fundo dos olhos da bela mulata.

- É, ué! Quer ir? Comigo?

Felipe hesitou, seus fantasmas o assombrando, mas no final aceitou, uma tentativa de reaproximação consigo mesmo, de viver algo além das dolorosas lembranças.

O dia combinado chegou. O local estava lotado. O show era barulhento, guitarras distorcidas ecoando no pequeno bar. Rafaela brilhava, sorrindo e dançando ao lado dele, o corpo esguio movendo-se com energia, e entre cervejas e risadas, uma química improvável surgiu. Após o derradeiro "bis", eles saíram para o ar fresco da rua, e ela o beijou impulsivamente:

- Quer ir para o meu apê? - Sussurrou ela, os olhos brilhando.

Felipe, surpreendendo a si mesmo, disse sim. A transa foi inesperadamente intensa, diferente da que tinha com Anália, mas ao mesmo tempo libertadora. Rafaela era direta, sem jogos, sabia o que queria para si e não tinha meias palavras para pedir que ele fizesse do jeito que ela gostava. Ao mesmo tempo em que buscava para si o prazer, ela também não lhe negava nada. O sexo oral veio sem pedido, bem profundo, chupado, babado, surpreendendo-o com algo que nunca tivera com a esposa, e a transa... Essa veio com um gosto de filme pornô, porque a mulata lhe deu um chacoalhão que nunca tomara de mulher alguma em sua vida. E foi ali, na cama bagunçada do apartamento dela, que ele se sentiu vivo, e desejado, sem o peso de cobrança alguma. Não era amor, não ainda, mas era um passo importante para lhe provar que ele podia ser feliz novamente.

Betão, por outro lado, voltava a se afundar em um novo tipo de solidão. Sem Marina e agora sem Felipe e Anália, seu apartamento parecia uma cela. Ele treinava obsessivamente, o corpo mais forte e definido do que nunca, mas o espírito seguia quebrado. Estranhamente, uma culpa passou a corroê-lo por ter prejudicado o casamento de seu amigo/irmão. Mesmo que Betão amasse ou pensasse amar Anália, ele nunca poderia ter feito aquilo com ele, não com Felipe. Passou a mandar mensagens para o amigo, desejando paz e o melhor, todas foram ignoradas, sequer chegavam ao destinatário. Certamente, Felipe o bloqueara. Enviou em algumas oportunidades flores para Anália, que foram devolvidas a ele, a última com um bilhete:

"Betão,

Preciso de espaço para me entender.

Não quero proximidade com você. Não agora. Talvez nunca.

Torço para que fique bem.

Abraço,

Anália"

Ainda assim, Betão não desistia e passou a intensificar as tentativas de reaproximação com ela. Passou a mandar mensagens, ela respondendo monossilabicamente. Mudou de tática e passou a ligar. Ela o atendia, mas as conversas não progrediam e ele não entendia o porquê. Então, ele decidiu aparecer na casa dos pais dela, com desculpas esfarrapadas. Seu pai, na primeira vez que o atendeu, voltou para dentro e saiu com um cabo de machado que ele mantinha pra sua defesa pessoal. Por sorte, Anália chegava nesse momento e evitou o pior. A mãe dela convenceu o marido a entrar e Betão, enfim, pode reencontrar sua grande paixão:

- Anália, por favor. Nós podemos ser felizes juntos. Eu te amo e sei que você também me ama.

Mas Anália, fortalecida pela terapia, via claro agora. A recaída pós-divórcio, a noite impulsiva no apartamento dele, regada a vinho e lágrimas, fora o ponto final. Acordando ao lado dele, sentira nojo, não de Betão, mas de si mesma por repetir erros. A justificativa veio na terapia: Betão representava dominação, mas não amor; era uma muleta para sua insegurança, não um parceiro:

- Sabe!? Sabe como, Betão? Eu nunca te falei nada disso!

- Mas a gente sempre se deu bem e... e na cama então... Poxa! A gente é demais juntos.

- Você está certo! Na cama, a gente é bom demais mesmo. Mas só isso não é suficiente para um relacionamento.

- Mas eu pensei que...

Anália fez um gesto com a mão, pedindo que ele não a interrompesse. Ele se calou. Ela suspirou profundamente e o olhou com compaixão, a mesma que sua terapeuta vinha lhe dispensando e foi sincera:

- Eu pensei... Não! Eu achava que gostava de você, mas amar não. Até que gostar eu gosto, mas como amigo. Sei que talvez vá doer o que vou te dizer, mas eu amo apenas o Felipe, e amo tanto, mas tanto mesmo, que estou disposta a abrir mão de voltar com ele, apenas para que ele tenha a chance de ser feliz com outra.

- Mas... Mas então!? Se você vai abrir mão dele, por que a gente não pode ficar juntos?

- Porque eu não te amo. Por isso...

Betão foi embora chateado, inconformado, constrangido. Mas na semana seguinte, ousou novamente mandar uma mensagem para Anália, convidando-a para sair "como amigos", um simples jantar dançante, o show de pagode de um grupo que ela gosta. Anália respondeu, mas a resposta não era o que ele imaginava:

"Betão,

Pare de me perseguir.

Não te culpo, mas você me fez errar, um erro que me custou o meu casamento.

Não consigo olhar para você sem lembrar quem eu machuquei.

Encontre alguém para amar.

Anália"

Ele insistia, mandando áudios chorosos, textos motivacionais, memes engraçados, mas Anália seguia firme, focando em si. Até que ela, enfim, o bloqueou em tudo, celular, redes sociais... Tudo! Betão, rejeitado, começou a beber mais, e começou a falhar em seus compromissos profissionais, perdendo alunos na academia. Um dia, por acaso, encontrou Felipe na rua, ele vestido como sempre, um esporte fino, mas o corpo diferente, mais forte, encorpado, a postura ainda mais respeitável, imponente, mas aquele olhar... Não! Não era o mesmo Felipe, não o seu amigo, o seu irmão, aquele que tantas vezes protegeu. Felipe também o viu, mas não reagiu, não havia raiva, amizade, bem querer, nada! Ele simplesmente cruzou para a calçada do outro lado da rua e continuou o seu caminho, ignorando o passado.

E essa foi a dinâmica que se manteve por um bom tempo como um triângulo torno: Betão perseguindo Anália; Anália perseguindo seus novos objetivos e sonhando com Felipe; e Felipe perseguindo a uma nova versão de si mesmo, desviando deles dois. Mas em uma noite chuvosa de verão, inesperadamente, Felipe encontrou uma carta de Anália na porta de sua casa e ele nem sabia que ela já sabia onde ele morava. Não era uma súplica, mas uma explicação profunda, nascida da terapia. Ele a leu, o coração acelerado, o peito apertando, e pela primeira vez, considerou responder. Talvez o divórcio não fosse o fim. Talvez, fosse só o começo de algo incerto, e surpreendente. Só o tempo diria...

OS NOMES UTILIZADOS NESTE CONTO SÃO FICTÍCIOS E OS FATOS MENCIONADOS E EVENTUAIS SEMELHANÇAS COM A VIDA REAL SÃO MERA COINCIDÊNCIA.

FICA PROIBIDA A CÓPIA, REPRODUÇÃO E/OU EXIBIÇÃO FORA DO “CASA DOS CONTOS” SEM A EXPRESSA PERMISSÃO DO AUTOR, SOB AS PENAS DA LEI.

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Foto de perfil de Mark da NandaMark da NandaContos: 328Seguidores: 701Seguindo: 29Mensagem Apenas alguém fascinado pela arte literária e apaixonado pela vida, suas possibilidades e surpresas. Liberal ou não, seja bem vindo. Comentários? Tragam! Mas o respeito deverá pautar sempre a conduta de todos, leitores, autores, comentaristas e visitantes. Forte abraço.

Comentários

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Cada um passando pelo seu calvário, espero que todos de alguma forma encontrem a sua redenção. 3 estrelas é pouco.

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Eu acho que o personagem merece mais que voltar com a ex-esposa. Ela foi cruel. A questão de beijar ele após receber o amante na sua boca é quase um desprezo. A traição em si, cabe perdão, concordo, mas esse nível de desrespeito, não condiz com amor. Ninguém ama e faz isso.

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Muito bom o capitulo Mark! Fica o gostinho de quem sabe........⭐⭐⭐.

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Muito bom, venha o próximo conto

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