O homem que não se encaixava

Um conto erótico de Leandro Gomes
Categoria: Homossexual
Contém 879 palavras
Data: 23/12/2025 22:31:46

Prólogo do Tradutor

As cartas que ora apresento ao leitor chegaram-me às mãos por vias tão tortuosas quanto o espírito que as redigiu. Foram encontradas entre papéis de família esquecidos num antigo sobrado de Nova Orleans, outrora pertencente aos Devante, nome que ainda hoje ressoa entre os registros comerciais do fim do século XVIII, cercado de prosperidade súbita e de rumores jamais devidamente explicados.

O autor das missivas, Louis Marshal Devante, jamais as destinou à publicação. Todas foram escritas ao mesmo destinatário — Philip Bellami — e nelas se entrelaçam confissão, vaidade, delírio e uma espécie de expiação tardia. Não encontrei qualquer resposta às cartas, o que me leva a crer que o silêncio do receptor teve papel decisivo no progressivo escurecimento do tom que nelas se observa.

Alguns nomes ali mencionados — Bernard Shaw, seus filhos, e sobretudo um certo Alastor Malffoy — figuram apenas de modo fragmentário em registros públicos, quando figuram. Quanto a este último, nenhuma referência documental pôde ser confirmada, exceto rumores dispersos, invariavelmente contraditórios, sobre um homem negro de hábitos refinados, presença constante nos salões da elite e cuja idade parecia nunca avançar.

Não me cabe julgar a veracidade dos fatos narrados. Limito-me a transcrevê-los com o mínimo de interferência possível, preservando a grafia, o estilo e o espírito do autor. Se há mentira nestas páginas, ela nasce menos do desejo de enganar e mais da necessidade desesperada de justificar a própria ruína.

O leitor atento perceberá que, desde a primeira carta, algo se insinua — uma fissura moral, um desejo impróprio, uma sombra que cresce lentamente até devorar tudo. Que cada qual decida, ao final, se Louis Devante foi vítima de forças externas… ou de si mesmo.

Tradutor: Anselmo Vieira de Castro

Publicado em: 1843

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Primeira Carta

Nova Orleans,

14 de maio de 1768

Meu estimado Philip,

Permita-me iniciar esta carta pedindo indulgência pela extensão que certamente tomará, pois sinto hoje o espírito inquieto, quase febril, e apenas a pena me oferece algum alívio. Escrevo-lhe não por necessidade de resposta — embora sempre a deseje — mas pelo consolo que encontro em imaginar seus olhos percorrendo estas linhas, atentos, cúmplices, talvez indulgentes.

A vida aqui segue com a previsibilidade que tanto me entedia. Meu pai continua a governar seus engenhos com a mesma mão dura e o mesmo olhar que parece sempre procurar em mim uma falha nova. Não ignora o senhor que entre nós jamais houve verdadeira afeição; e, ainda assim, surpreendo-me ao constatar quanto me pesa sua presença, mesmo quando silenciosa.

Tenho buscado distrações onde sempre as encontrei: nos salões, nos longos bailes, nos bordéis onde o luxo disfarça a sordidez e onde os corpos — sobretudo aqueles de pele escura, que tanto me encantam — se oferecem como remédio momentâneo contra o vazio. Não lhe ocultarei nada, Philip; sabes bem que nunca o fiz. Houve noites recentes em que nenhuma companhia me bastou, e precisei entregar-me ao prazer solo, às mesmas fantasias que outrora partilhei contigo em confidência. Imagino que compreendes.

Todavia, escrevo-lhe hoje por motivo diverso.

Na noite passada, durante o baile na casa dos Montreval, ocorreu-me um encontro que ainda me perturba, e não saberia descrevê-lo a outro senão a ti. Entre músicos e risos artificiais, notei a presença de um homem que não se encaixava — não por grosseria ou timidez, mas por excesso. Um tal Alastor Crowley.

Era negro, Philip — e não o digo com estranheza vulgar, mas com sincero assombro, pois jamais vi alguém de sua cor mover-se com tamanha segurança entre os mais altos nomes desta cidade. Vestia-se com elegância discreta, falava com erudição que constrangeria muitos doutores, e havia em seu porte algo… indecifrável. Um domínio silencioso, como se o salão lhe pertencesse por direito antigo. Sua presença era notada por todos que cruzavam seu caminho naquele lugar.

O sr. Crowley fixou os olhos em mim de onde estava — sentado conversando com o prefeito — e então, se aproximou como se me conhecesse. Conversamos longamente. Não saberia dizer como o assunto começou, apenas que, em poucos instantes, senti-me examinado com uma precisão desconfortável. Alastor falava pouco de si, mas parecia saber demais sobre mim — sobre meus hábitos, minhas inquietações, até mesmo certas inclinações que nunca confessei em voz alta. Tudo isso indiretamente, sutilmente. Ri, é claro, atribuindo tal perspicácia a um espírito sagaz e a truques de observação. Ele sorriu, como quem consente numa mentira conveniente.

Houve momentos — e peço-lhe que não ria de mim — em que senti algo próximo de vertigem. Não desejo, não busquei, nem concebo desejar homens; sabes disso melhor que ninguém. Ainda assim, ao despedir-me, notei que minhas mãos tremiam, e que meu pensamento insistia em retornar àquele olhar escuro e atento em olhos castanhos e aos traços tão fortes de seu rosto e seu porte físico avantajado, como se algo em mim tivesse sido tocado sem permissão.

Escrevo-lhe agora, enquanto a casa dorme, e percebo meu corpo reagindo a essa lembrança de modo que me constrange admitir. Talvez seja apenas o tédio, talvez excesso de vinho, talvez o simples gosto pelo proibido que sempre me acompanhou. Amanhã rirei disso, estou certo.

Ainda assim, quis registrar o ocorrido. Contigo, sempre contigo.

Escreva-me logo, Philip. Dize-me de teus próprios excessos, de teus desejos, de tudo aquilo que ainda nos mantém vivos nesta existência previsível.

Teu dedicado amigo,

Louis Marshal Devante

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