Eu queria contar tudo, todos os detalhes, mas não há tempo suficiente para isso. Os sinais já se fazem presentes e, ainda que eu não perceba, tudo terminará nas próximas horas.
Uma rajada de vento sopra repentinamente e esfria o ar além da conta, fazendo um calafrio subir pela espinha e me deixando arrepiado.
Algumas das folhas do original que eu copio voam soltas sobre a mesa, caindo ao chão.
Eu estranho. Em pleno calor de dezembro, numa noite morna e escura como aquela, o vento não sopra e muito menos faz frio.
Fico desconfiado, tem algo ali que não bate, o primeiro sinal deve ser este. É mais uma sensação do que um pensamento. Desde que comecei a viver isto eu ando assim, mais dado a impressões que análises. Logo eu, que sempre fui tão racional.
Recolho as folhas e volto a organizá-las na pilha.
O manuscrito do Putamatri não é o original, consegui lá na zona sul, no sebo do Germain, um amigo de longa data. Ele fez questão de frisar que era uma cópia feita à mão que ele mesmo produziu quando era jovem, afinal, ninguém tem interesse em publicar aquilo. Eu já sabia, não sei como mas eu me lembro, e agora sou eu quem copia.
Quando relatei o que vinha me acontecendo, ele rapidamente procurou o tal manuscrito e me passou. Isso também foi estranho, o Germain tem uma memória fantástica, mas nem tanto para lembrar que tinha a cópia esquecida na loja há trinta anos. Foi tão estranho quanto eu lembrar de algo que não sabia, mas tinha tanta certeza que fui até a zona sul procurá-lo.
E o mais raro ainda foi que ele não me vendeu o Putamatri, ele me emprestou. O Germain nunca empresta um livro, muito menos para um amigo, diz que nunca devolvem. Por isso, ele só vende. Mas essa cópia que ele fez e guardou sem saber porque estava ali, esperando em sua memória que um dia eu aparecesse por ela.
Sim, ele me emprestou, dizendo que era o que eu precisava, mas que não queria se desfazer daquilo. “Edu, sei que você não acredita nessas coisas, mas toma cuidado. As palavras desse texto tem poder”, advertiu-me ao despedir-se. O Germain não me conhece mais, eu mudei depois de tudo, agora acredito em qualquer coisa, principalmente nas palavras.
Volto a copiar, determinado a não fazer caso de mais nada. O texto em francês é intrincado e eu vou traduzindo o que consigo, misturando várias línguas e deixando tudo mais complicado. Faz dias que eu tento concentrar-me nisso, mas sempre acontece algo que me impede.
Eu preciso resolver esse enigma, o Putamatri deve ser a chave, mas enquanto eu avanço lentamente percebo que as horas continuam correndo para trás e os dias seguem invertidos, amanhecendo de noite e entardecendo de manhã, como uma contagem regressiva. E ninguém se dá conta, nem a Jojo, só eu.
Não copio nem duas páginas e a Jojo chega. Está cansada do trabalho, mas não perde o bom-humor. Trouxe uma quentinha, algo que sobrou do bar da boate. Ela sabe que eu estaria acordado, assim como sabe que eu não durmo. Olha-me com ternura e passa a mão na minha cabeça, enquanto eu digo que não tenho fome.
Mesmo assim, ela me obriga a comer. “Edu, eu preciso de você bem. Se não comer, vai desmaiar, homem”, ela diz. Dou umas garfadas para contentá-la mas tem gosto de cinzeiro, não consigo, afasto o prato. Quero voltar ao Putamatri, preciso terminar de copiar aquilo, mas ela não permite.
Jojo me toma pela mão e quer levar-me para a cama, dizendo que eu tenho que tentar dormir. Eu cedo, mesmo porque sei que ela não vai desistir e que eu não vou conseguir copiar mais.
Caio na cama pequena como estou, vestido e insone, só tiro o sapato. Jojo fica nua e se aconchega ao meu lado. Seu corpo moreno irradia calor ao encostar no meu, é talvez o único conforto que ainda sinto desde que tudo mudou.
Suas mãos delicadas me procuram, como se ela soubesse que precisa me ancorar ali, antes que minha cabeça comece a divagar e vá para longe. Porquê? Porque a Jojo ainda se importa comigo, quando ninguém mais o faz?
Não sei, mas retribuo suas carícias quase que por instinto. Não é uma resposta do corpo, carnal. Não sinto urgência naquilo, ou ao menos não a mesma urgência que tenho para terminar com o Putamatri, algo que me consome.
É um instinto de reconhecimento, de retribuição, de agradecimento. É o mínimo que posso fazer por ela, dar-lhe esse aconchego que ela vê em meu corpo, deixá-la sentir o meu toque, antes que a contagem regressiva termine e tudo mude de novo.
Sinto sua carne macia colando-se a mim, seus pêlos aparados espetando minha pele, sua umidade entre meus dedos, seu hálito soprando rente ao meu rosto, o hálito que eu reconheço desde muito antes, mesmo que ela não desconfie.
Como se cronometrasse minhas reações com precisão, a Jojo vem e senta-se sobre mim na cama mambembe do quartinho pobre em que estamos.
Faz calor, mas o resquício do frio em minha espinha ainda existe. Eu congelo por trás e queimo pela frente, há duas estações e muito tempo dentro de mim, com as coxas da Jojo ao meu redor e os seios indo e vindo compassados próximos ao meu rosto.
Na noite invertida lá fora soam tiros, pequenas explosões violentas, enquanto o relógio na parede acelera os ponteiros e a Jojo me aperta o peito com uma respiração densa de prazer que me empurra para o abismo outra vez.
Só agora, nos últimos segundos, eu me lembro da verdade e tudo parece fazer sentido. Mas é uma lembrança fugaz, como o punhal que corta a pele num relance e expõe a verdade da carne antes que a gente morra, deixando um rastro de realidade crua e breve que se apaga em seguida.
Foi a Jojo, tenho certeza. O Germain e a Jojo. Ele é o seu escravo foragido, assim como sou seu novo brinquedo. Copiou o Putamatri há anos atrás, escapou daquele feitiço e esperou para me emprestar, porque esse manuscrito não se vende nem se dá, somente se empresta, ou não serve de nada, perde a força de desfazer os feitiços.
E a Jojo… Eu não sei, não sei o que ela é, sua pele tatuada de enigmas me capturou, me aprisionou neste lugar que é tantos e nenhum ao mesmo tempo, essa realidade invertida, esse espaço não-espaço que muda cada vez que a contagem regressiva zera.
Daí as explosões soam enquanto ela me cavalga e goza sobre mim, justo quando eu me lembro e esqueço de que já fui um outro alguém mais normal, casado com outra mulher, pai de dois filhos, senhor de posses e dono de mim, que um dia leu o Putamatri a pedido desse ser que eu hoje chamo de Jojo.
Ela é a Jojo, mas já foi a Bubba, a Mely e tantos outros nomes pelos quais eu já lhe chamei em tantas outras vidas breves das quais eu não me lembro quando volto a viver, ou acho que estou vivendo mas não estou, preso nessa fantasia que ela cria, divertindo-se comigo e me mantendo longe de tudo, até de mim mesmo.
O Putamatri, copiar o Putamatri, produzir minha própria cópia é a chave para fugir do limbo e libertar-me do feitiço que ela jogou sobre mim, assim como fez o Germain, o homem que eu achava que conhecia há anos mas que eu nunca tinha visto.
Por um momento eu me lembro de tudo, com o relógio invertido badalando e o tiroteio lá fora comendo solto, com a Jojo no transe do orgasmo sobre mim, se alimentando de mim, me usando a cada nova simulação de vida que ela me obriga a ter.
Mas esse era o último instante, e eu não terminei de copiar o Putamatri nem consegui me libertar. Vou apagar, tudo se apagará, nem saberei disso quando desperte, a Jojo terá outro nome e seguirá me consumindo aos poucos, enquanto eu tento copiar outra vez o Putamatri, se conseguir encontrar o Germain.
O Germain e as palavras de poder, o poder de desfazer aquele encanto, o encanto do ser que me deu o Putamatri pela primeira vez para eu ler, suplicando que eu traduzisse as palavras de Saint Germain para me empurrar no limbo… O Germain deve ser o próprio Saint Germain!
Enquanto tudo dentro do barraco no morro da zona norte gira ao meu redor se desfazendo e reorganizando para criar a próxima falsa realidade, eu atiro a Jojo para um lado e tento correr até a mesa. Quero segurar o Putamatri, quero levá-lo comigo, quero continuar a copiá-lo, assim como fez Saint Germain.
Não sei quantas vezes fiz isso, não sei quantas vezes tentei continuar, mas essa é minha única chance de voltar, de voltar para aquela esposa e as crianças que eu acho que tinha, de escapar deste ser de muitos nomes e retornar para a minha vida real. Eu tenho que continuar tentando, tenho que continuar, mas não sei se consigo.
Talvez eu continue e talvez eu consiga. Não sei, sinceramente, não sei…
Continuo?
