Apesar de tudo, eu voltei da viagem diferente.
Não era algo visível à primeira vista, não havia novo corte de cabelo, nem roupas diferentes, nem grandes gestos. A mudança morava em outra camada, mais funda: no jeito como eu olhava antes de responder, no silêncio que agora eu escolhia com intenção, na forma como eu parecia sempre um passo à frente da conversa.
Heitor sentiu isso antes de perceber.
Nos primeiros dias, tentou manter tudo como antes. Me buscou de moto, me chamou para ver filmes (ele gostava muito de filmes históricos e de guerra), me ensinou a tocar violão como se nada tivesse mudado. Mas eu já não me entregava do mesmo jeito. Estava presente, sim, ria, escutava, encostava, mas havia algo retido, como se uma porta interna tivesse sido fechada com cuidado.
Era um jogo novo. E eu estava aprendendo rápido.
Heitor, acostumado a ser o centro das atenções, começou a se inquietar. Perguntava demais, observava em excesso, queria saber onde eu estava, com quem eu falava, por que demorava a responder mensagens que antes eram imediatas. O tom ainda era leve, quase brincalhão, mas a ponta já cortava.
Eu percebia tudo e não recuava.
Eu aprendera, cedo demais, que desejo também era uma forma de poder. E, pela primeira vez, sentia que não precisava me oferecer por inteiro para ser desejado.
Com Júlia, precisei ser incisivo, mais uma vez. Numa tarde comum, sentados na beira da piscina, com o barulho distante da casa dela cheia, tivemos que ter uma outra conversa, sobre o mesmo assunto.
— Júlia, a gente não tá junto — eu disse, calmo, quase didático — Nunca estivemos, de verdade.
Ela riu, achando que era brincadeira.
— Claro que tá, Mateus. Todo mundo acha.
— Esse é o problema — respondi, sem elevar a voz — Todo mundo acha. Eu não.
A crueldade não estava nas palavras, mas na ausência de culpa. Eu não pedi desculpa. Não expliquei demais. Não ofereci consolo. Apenas retirei o que nunca foi dado de verdade.
Júlia sentiu o chão ceder. A imagem, o casal perfeito, a narrativa bonita, se desfez ali, diante dela, sem espetáculo. E isso doeu mais do que qualquer briga.
Ela não chorou. Apenas ficou dura. E passou a me observar com outro olhar.
Já Rafael foi o primeiro a perceber a virada completa.
Não mais o Mateus tenso, inseguro, fácil de pressionar. Havia agora um brilho atento, quase irônico, nos meus olhos castanhos. Rafael reconheceu aquilo de imediato, não era ingenuidade, era cálculo.
Os encontros com ele começaram a carregar outra eletricidade.
Olhares que demoravam um segundo a mais. Frases com duplo sentido jogadas no ar e deixadas ali, sem explicação. Rafael provocava; eu devolvia, com economia. Nenhum dos dois avançava demais. Era um duelo silencioso, elegante, perigoso.
Rafael sorriu para mim, um certo dia, como quem reconhece um adversário à altura.
— Você mudou — disse, casualmente, numa tarde qualquer, na casa dele.
Eu ergui os ombros.
— Ou você que começou a prestar atenção.
Heitor, por sua vez, começou a perder o controle.
A possessividade apareceu em pequenas coisas: um comentário atravessado, uma pergunta repetida, um toque mais firme do que o necessário. Não era violência ainda, mas havia algo sombrio, uma ansiedade que ele não sabia nomear.
Eu sentia. E, em vez de me afastar, regulava a distância.
Às vezes me aproximava só o suficiente para reacender o desejo. Outras, desaparecia por um dia inteiro. Heitor oscilava entre o alívio e o desespero, preso num laço que antes ele mesmo conduzia. Era isso que eu aprendera, no fundo: quem controla o ritmo, controla a relação.
A cidade seguia observando, mesmo sem entender.
O menino quieto, estudioso, discreto, agora no centro de três forças que se chocavam: a fixação possessiva de Júlia, a paixão dominadora de Heitor, o desejo venenoso de Rafael.
Mas eu já não era mais objeto. Eu via o jogo inteiro. E, pela primeira vez, escolhia onde pisar.
No silêncio dos meus pensamentos, uma certeza começava a se formar, incômoda, perigosa, libertadora: talvez amar não fosse o maior risco. Talvez o verdadeiro perigo fosse aprender que eu podia usar o desejo dos outros a meu favor e gostar disso.
E, enquanto isso, três pessoas diferentes acreditavam, cada uma à sua maneira, que ainda me tinham nas mãos. Só que nenhuma delas percebia que o jogo já havia mudado.
Só que, como disse, Rafael deixou de observar. Foi uma mudança sutil no início, como tudo que envolvia essa trama complicada. Primeiro, ele começou a me mandar mensagens fora de hora. Depois, aparições “por acaso”. Até que, um dia, Rafael simplesmente começou a surgir na minha casa, no meio da tarde, sem aviso.
Quando a campainha soou, o som agudo me fez franzir o cenho: não esperava ninguém. Me levantei preguiçosamente, caminhei até o portão, desbloqueei o trinco e puxei a maçaneta. Sem cerimônia, entrou Rafael, regata preta colada ao corpo, bermuda surrada, olhos carregados de algo que não era só curiosidade.
– Mas que milagre você por aqui – cumprimentei, cheio de sarcasmo no tom – Não gostaria de entrar para tomar uma xícara de café?
Rafael deu de ombros, cruzou a varanda como quem atravessa fronteira própria. Entrou na sala sem pedir licença, fitou o ambiente com desdém, como se estivesse reavaliando terreno já conquistado. Eu fechei o portão, ouvindo o clique seco do metal ecoar.
Durante o dia, meus pais estavam sempre fora, presos ao trabalho. A casa ficava grande demais naquele horário, silenciosa demais. Restava apenas a faxineira, uma morena falante, que encerrava o serviço cedo. E foi impossível não notar, para a minha completa hilaridade, como ela ficava claramente encantada por Rafael, afinal, eles tinham a mesma idade, dezenove anos.
Risos altos demais. Perguntas inúteis. Um pano que demorava a passar no mesmo lugar.
Rafael, ciente, jogava com isso com um charme quase debochado. Eu observava a cena como quem assiste a algo que não lhe pertence, divertido, mas distante. Quando a porta finalmente se fechava atrás da faxineira, e ela ia embora, o clima mudava.
A casa ficava quieta. E Rafael não fingia mais.
Heitor não fazia ideia daquelas visitas. E isso, por si só, já era uma faísca perigosa.
O confronto veio numa dessas tardes quentes, o ar pesado, as janelas abertas para aliviar o ar abafado. A casa estava silenciosa demais para uma tarde de semana. O ventilador girava lento no teto da sala. Rafael estava sentado no braço do sofá, como se aquele espaço sempre tivesse sido dele.
Já eu fiquei parado no meio da sala por um segundo, sentindo a cerâmica fria sob os meus pés descalços. Depois, me encostei no batente da porta, braços cruzados, olhar firme demais para alguém que fingia casualidade.
– A faxineira olhou pra mim hoje como se eu fosse o novo pecado capital – comentou Rafael, debochado – Deve ter uns dezenove, não tem? Pernas bonitas...
– Ela é de igreja evangélica, mas adora um cafajeste – eu ri – Se você piscar direitinho, quem sabe não ganha um desconto na próxima faxina.
A risada de nós dois soava falsa, carregada de algo que nenhum queria nomear.
– Não gostou do comentário sobre a faxineira? – perguntou Rafael, baixo.
– Não ligo. Faz o que quiser com ela.
Meu tom desinteressado pareceu acender uma fagulha nele. Rafael se inclinou para a frente, mãos nos braços do sofá, me encarando de baixo.
— Faz tempo que você está me evitando – murmurou – Quando vai parar de se esconder?
— Eu não tô me escondendo de ninguém – respondi, engolindo em seco.
— Tá sim. Só não decidiu ainda de quem.
Eu respirei fundo. Caminhei até a cozinha devagar, abri a geladeira sem precisar de nada, peguei a minha garrafa de água. Era um gesto de fuga. Rafael percebeu.
— Você sempre faz isso? Finge normalidade quando tá acuado? – ele falou alto, sem se levantar, me observando da sala.
— Eu não tô acuado. Você que aparece sem avisar – bebi a água e fechei a geladeira.
— Você vai fingir que isso é normal? – ele perguntou.
— O que, exatamente? – respondi.
— Eu aparecer aqui. Sozinho. Sempre quando ninguém está.
— Você aparece porque quer.
— Não. Eu apareço porque você deixa.
— Não confunde gentileza com convite – voltei devagar para a sala.
— Engraçado você falar isso.
— E você quer falar abertamente disso agora ou vai continuar fazendo rodeio? – eu cruzei os braços, me encostando na parede de novo, mas não desviei o olhar.
— Você fala bonito pra alguém que tá brincando com fogo – Rafael sorriu de lado.
— Eu ia dizer o mesmo de você.
Um silêncio curto se estabeleceu entre nós.
— Você tá brincando com todo mundo — Rafael quebrou o silêncio depois de um tempo, se reclinando no encosto do sofá, a voz baixa, direta — Você é amigo da Júlia. É namorado do Heitor. E comigo, você gosta de brincar.
Eu senti o estômago apertar, mas mantive o rosto neutro. E não desviei o olhar.
— Ou talvez vocês estejam brincando comigo — respondi, calmo demais para alguém encurralado.
— Você gosta disso, né? De ver até onde a gente vai – Rafael sorriu, mas não havia humor ali.
— Você tá viajando.
— Não. Eu tô analisando.
— E desde quando você virou fiscal da vida dos outros? – eu dei uma risada breve.
— Desde que você entrou na minha casa e bagunçou tudo – os olhos negros dele escureceram.
— Eu não baguncei nada. Vocês que projetam coisas em mim – o clima ficou mais pesado.
— Não se faz de santo. Você sabe exatamente o que provoca.
O silêncio entre nós ficou denso, quase físico. Não era mais provocação gratuita. Era reconhecimento. Dois predadores se encarando, testando forças.
— Meu irmão tá apaixonado por você – Rafael irrompeu o silêncio, mais uma vez.
— Ele é adulto. Faz as próprias escolhas.
— E a Júlia acha que você é o namorado perfeito dela.
— Eu nunca prometi nada.
— Prometeu ficando com ela, mais de uma vez.
— Você não veio aqui pra defender ninguém, Rafael – eu dei um passo à frente, me aproximando dele – Veio aqui fazer o quê? Me intimar? Me acusar? Ou me testar? E por que isso te interessa tanto?
Rafael vacilou por meio segundo, o suficiente para eu perceber a sua hesitação.
— Talvez eu tenha vindo descobrir até onde você vai – Rafael sorriu, mas agora havia algo perigoso naquele sorriso – Não... eu vim porque você acha que pode conseguir se esconder atras desse joguinho estúpido seu.
— Eu não me escondo – repeti.
— Se esconde sim. Atrás desse jeito quieto. Desse ar de menino certinho – Rafael inclinou a cabeça, me avaliando de cima a baixo – Mas eu te saquei desde o começo.
— Sacou o quê? – engoli em seco.
— Que você gosta de ser o centro das atenções. Que você finge que deixa as pessoas te conduzirem… mas nunca é só deixar. Você não escolhe ninguém. Você deixa as pessoas escolherem por você. E, enquanto isso, vai se aproveitando delas. E isso... – ele inclinou levemente a cabeça – Dá vontade de virar o jogo contra você.
Silêncio novamente, mais denso. Só se ouvia o ranger do ventilador.
— Você não me conhece – afirmei – Você não sabe nada sobre mim.
— Conheço melhor do que você imagina. E você não é vítima de ninguém aqui. Sei que você gosta de ser disputado. Sei que gosta quando alguém perde o controle por sua causa. E sei que você tá mentindo pra si mesmo se acha que isso aqui é só curiosidade minha.
— E você acha que é o quê? Meu salvador? – senti o corpo reagir antes da razão, mas não recuei.
— Deus me livre – Rafael deu uma risada curta — Eu sou o seu erro.
— Erro? Você tá doido. Me fala, você veio aqui como irmão do Heitor? Como irmão da Julia? Ou só pra me provocar? Ou você tá querendo só machucar o Heitor? – nós nos encaramos, o ar pesado entre nós.
O nome do Heitor caiu como um golpe na sala.
— Cuidado – Rafael estreitou os olhos.
— Com o quê? Com a verdade? Você tá fazendo isso só pra atingir o Heitor.
— Talvez. Ou talvez eu só esteja curioso pra saber até onde você vai.
— E se eu disser que isso não é da sua conta? – me aproximei mais um passo, ficando poucos metros de distância dele.
— Aí eu digo que você tá mentindo – Rafael se ergueu, ficando a poucos centímetros de mim, mas sem me tocar, agora estávamos próximos demais para fingir neutralidade – Você sente isso também, é um pilantra, que nem eu. Só não aceitou ainda.
Rafael deu mais um passo. Agora não havia espaço entre nós. Eu senti o cheiro do sabonete de Rafael, misturado a algo acre e quente que me subiu à cabeça.
— Você acha que só o Heitor tem direito a você? – disse Rafael, a voz baixa, firme, quase no meu ouvido.
Eu senti o coração disparar.
— Você não tem direito nenhum sobre mim! – eu fechei os olhos por um segundo, mas, quando abri, minha voz saiu firme – E isso não é um direito, é uma escolha, minha escolha.
— Então escolhe – a voz dele saiu mais rouca, quase um sussurro de intimidação.
O desafio ficou suspenso no ar. Eu sustentei o olhar de Rafael, meus olhos castanhos contra os seus olhos negros, nossos rostos a centímetros um do outro. Mas não havia medo ali, havia determinação.
— Talvez você não esteja preparado pra resposta – falei.
— Eu tô preparado pra qualquer coisa que você tenha coragem de fazer – Rafael riu, quase sem som.
(continua)
