Os segredos de Clara. 05
A terça-feira amanheceu claro e radiante, sem dar qualquer indício da reviravolta surpreendente que o dia tomaria. Eu estava terminando uma linda bancada de cedro para a cozinha quando fui contatado por uma rádio local. Aparentemente, Elem, uma das apresentadoras do programa matinal "Oscar e Elem", tinha lido o aviso de separação e reconhecido meu nome, pois era amiga de Deise, outra prima minha por parte de mãe. Acho que é verdade o que dizem sobre o mundo ser pequeno.
Elem contatou Deise, que, por sua vez, contatou minha mãe e Mel. Minha mãe e Mel compartilharam alegremente as cartas de amor com minha prima, e ela, com a permissão delas, as compartilhou com Elem.
Oscilava entre a vergonha de ter meus assuntos privados expostos para todos verem e a empolgação de que, talvez, Clara e Zaqueu fossem humilhados publicamente, afinal. Dizer que era constrangedor para mim era óbvio. Eu me sentia emasculado, como se não conseguisse satisfazer minha esposa e mantê-la fiel, mas como diz o ditado: quem busca vingança deve cavar duas covas, e se a minha fosse a da vergonha, eu conviveria com ela. Que me importava o que um bando de estranhos pensava de mim? As pessoas de quem eu gostava sabiam que tipo de homem eu era e, mais importante, no fundo, eu também sabia, independentemente dos momentos de dúvida.
Conversei bastante com Elem. Ela pareceu simpática e gentil. De alguma forma, a invasão de privacidade dela não me pareceu uma invasão. Aparentemente, Deise tinha me elogiado bastante, o que me deu um ânimo extra. Para mim, isso significou que minha família estava se unindo para me apoiar.
Ao final da ligação, concordei em ser entrevistado na sexta-feira de manhã e autorizei o uso de algumas das cartas em seu site e página do Facebook. Para manter o conteúdo adequado para todas as idades, algumas palavras ou frases teriam que ser ocultadas, mas ela me garantiu que a essência permaneceria clara.
Eles iriam dedicar os próximos dias a discussões sobre infidelidade, incentivando os ouvintes a ligarem e compartilharem suas histórias. Minha entrevista na sexta-feira seria o ponto culminante do fórum. Combinamos de nos encontrar no dia seguinte para que eu assinasse um termo de autorização para o uso das cartas. Terminei a ligação me sentindo um pouco atordoado, mas determinado; se o programa corresse como planejado e a plateia reagisse da maneira que Elem previu, Clara e Zaqueu seriam julgados por um júri de seus pares.
Talvez não sejam apedrejados, o que é uma pena.
Mas, por outro lado, nem todas as punições tem grades...
# # #
Olhei para mim mesmo e fiz uma careta. Minha roupa não era exatamente adequada para encontrar alguém em um café. Saí da caminhonete e sacudi a calça jeans e a camiseta para tirar o máximo de serragem possível. Com um pano, limpei minhas botas de trabalho. Dei de ombros. O resultado não estava perfeito, mas teria que servir. Não havia nada que eu pudesse fazer. Eu ainda precisava ganhar a vida e não tive tempo de dar uma passada em casa para me trocar.
Ao entrar na cafeteria moderna que Elem havia escolhido, parei e observei o local. Eu sabia como Elem era, pelos outdoors e anúncios nas redes sociais. Avistei sua cabeça loira inclinada no fundo de uma das mesas, ótimo, pelo menos teríamos um pouco de privacidade.
Observei-a enquanto olhava para o relógio e depois para cima. Sorri e levantei o braço em reconhecimento. Ela se levantou e sorriu também. Tinha uma altura mediana, mas essa era a única coisa mediana nela, pelo que pude perceber. Ela era muito mais bonita pessoalmente do que nas fotos promocionais.
O cabelo dela, o corte era meio descolado; curto, bagunçado, com algumas mechas espetadas aqui e ali, e uma franja longa que caía sobre a testa. Sexy. Muito, muito sexy.
Consideradas individualmente, sua boca poderia ser considerada um pouco larga demais, seu queixo um tanto pontudo demais, suas maçãs do rosto ligeiramente altas demais, mas, de alguma forma, quando tudo estava junto, ela era simplesmente deslumbrante.
Fiquei aliviado ao vê-la vestida casualmente, uma camiseta branca por dentro de uma calça jeans de cintura baixa, presa por um cinto preto largo. Embora o cinto não tivesse muita função, eu tinha certeza de que suas curvas dariam conta do recado sozinhas. Tudo o que o cinto conseguiu fazer foi chamar a atenção para a diferença entre sua cintura e seus quadris.
— Daniel? — Perguntou ela. Sua voz tinha um toque rouco.
— Por favor, me chame de Dani.
O sorriso dela se alargou e apertamos as mãos; o aperto dela era agradavelmente firme.
— Sinto que já te conheço. — Disse ela, voltando a sentar-se. — No ensino médio, Deise falava muito de você e do Saulo. Ela provavelmente vai me matar por te contar isso, mas ela costumava lamentar o fato de vocês dois serem primos dela.
— Bem, pode contar a ela por mim que Saulo também reclamou bastante sobre o parentesco deles.
Elem riu, e foi um som agradável, que me envolveu e me fez sentir aquecido.
—Você não?
—Não. — Dei uma risadinha. — Eu estava ocupado demais olhando para as peitudas do colegio o tempo todo.
— Então você é fascinado por peitos?
— Até que era, mas já não sou mais tão fâ assim.
Senti o calor subir às minhas bochechas. Menos de dois minutos depois, eu já estava confessando verdades embaraçosas.
— Espero que não se importe, mas tomei a liberdade de lhe pedir um cappuccino. Achei que seria uma opção bastante segura.
— Tudo bem; obrigado.
Trocamos sorrisos sem jeito, sem que nenhum de nós soubesse como abordar o assunto delicado. Isso me fez sentir um pouco melhor; o fato dela se sentir desconfortável em me questionar sobre o caso de Clara mostrava que ela tinha alguma humanidade, que minha dor e traição não eram algo corriqueiro para ela.
Olhei em seus olhos, surpreso ao ver que não eram azuis ou cinzentos como eu esperava. Eram verdes. Muito verdes. Na verdade, não me lembrava de ter visto olhos tão verdes antes. Não brilhavam como esmeraldas, mas sim como as folhas lustrosas do lírio-da-paz que geralmente ficava no centro da mesa de jantar da minha mãe.
Ela estendeu a mão por cima da mesa e tocou o dorso da minha mão.
— Eu li as cartas, Dani. São horríveis. Nem consigo imaginar como você deve ter se sentido ao encontrá-las. Pode me contar?
Eu a observei atentamente, procurando sinais de engano ou falsa sinceridade. Não encontrei nenhum.
— Podemos decidir depois o que ficará em sigilo? Há partes que definitivamente não quero compartilhar com qualquer um.
— Claro. Isso é óbvio. Não quero saber por curiosidade mórbida ou por algum motivo voyeurístico doentio. Preciso saber para poder planejar minhas perguntas. Devo avisá-lo que Oscar é irreverente e pode soltar algumas piadinhas para fazer as pessoas rirem ou causar polêmica. Prometo que só passarei a ele as partes que você não se importar de compartilhar com nossa plateia.
Assenti com a cabeça. Respirei fundo e olhei para as minhas mãos que seguravam a caneca de café. Graças a Deus, ela tinha pedido uma grande, eu ia precisar de cada gota. Tentei olhar para ela enquanto contava a minha história, mas não conseguia sustentar o seu olhar. Mesmo assim, sempre que eu olhava para ela, ela me observava, com uma expressão séria, mas gentil. Contei-lhe tudo, não só sobre ter encontrado as cartas, mas também sobre a Clara que eu pensava conhecer e sobre o nosso casamento. Havia algo em Elem que exigia a verdade, mas, a cada palavra que saía da minha boca, eu questionava a sabedoria de ser tão brutalmente honesto. Só me restava esperar que a minha fé não fosse em vão.
— ...então é isso. Não é muito bonito, não é?
— Não, é como um filme de terror trash horrivelmente pervertido.
— Foi isso que Mel disse.
— Se eu não tivesse ouvido e visto com meus próprios olhos, não acreditaria que fosse possível. É muito bizarro. Surreal. É incompreensível que duas pessoas comuns, do dia a dia, pudessem se comportar dessa maneira. A verdade realmente pode ser mais estranha que a ficção.
— Sim, e eu sou apenas o tolo cego que nunca suspeitou de nada.
— Não se culpe, Dani. Você nunca viu os sinais porque não estava procurando por eles, e por que estaria?
Você achava que era feliz no casamento. Quando eu estava cursando Comunicação, fiz algumas aulas de psicologia e eles tinham um nome para isso. Nossa, qual era mesmo?
Elem fechou os olhos e franziu a testa, batendo levemente na testa num gesto rápido e seco. Não consegui conter o sorriso; o gesto era adorável.
—Já sei! — Ela se iluminou como uma árvore de Natal. — Chama-se viés de confirmação ou algo parecido.
Ergui as sobrancelhas. — Meu Deus, isso parece uma linguagem dúbia. O que exatamente significa?
— Bem, quando você ama alguém e acredita que esse amor é recíproco, isso influencia a forma como você vê as palavras e ações da pessoa amada. Basicamente, você acreditava que Clara te amava, então tudo o que ela dizia ou fazia era interpretado de uma maneira que corroborava essa crença. Seria preciso um raio para te fazer reavaliar tudo. Encontrar as cartas foi o seu raio.
— Então eu não sou idiota?
— Longe disso.
Eu sorri. — Bem, isso é um alívio.
— Você a amava muito?
— Sim.... Não. — Suspirei. — Eu amava a mulher que pensava que ela era, mas a mulher revelada naquelas cartas não era a Clara que eu conhecia, então acho que amava uma fantasia.
— Deve ser difícil aceitar isso.
—Sim. Muito!
— Você parece estar no controle de forma notável. Acho que eu estaria em prantos.
— Estou magoado, mas guardei isso para tratar mais tarde.
—Como é que se 'esconde isso'?
— Vou lhe dar uma analogia. Digamos que você machucou o pé tão gravemente que ele infeccionou e gangrenou. Você choraria, lamentaria e se queixaria de como foi injusto, dando tempo para a infecção se espalhar pela perna, ou você encararia a situação, amputaria o pé e lamentaria a perda depois, sabendo que pelo menos salvou o resto da perna?
— Ah, entendi. Sim, faz sentido. É como morder um pedaço de cada vez em vez de tentar comer o pão inteiro de uma vez.
Assenti com a cabeça, dando um gole no meu café. Reprimi uma careta de desagrado, agora estava morno.
— Quais são seus planos para o futuro? Você tem algum? Já pensou nisso?
— Para ser totalmente honesto, me sinto um pouco perdido. Como um barco sem leme. Até encontrar as cartas, minha vida inteira girava em torno de Clara e do nosso casamento. Tudo era sobre reformar a casa, começar uma família, fazer uma última grande viagem antes de sermos pais. Tudo isso acabou. — Dei outro gole no café morno, organizando meus pensamentos na esperança de conseguir expressá-los de uma forma que Elem entendesse. — Sou carpinteiro. Sou especializado em acabamentos internos; coisas como cozinhas, salas de jogos com painéis de madeira, restaurantes, bares, espaços de lazer, etc. E o que geralmente acontece é que o construtor ou arquiteto me dá algumas plantas, eu converso com o proprietário e então projeto e construo algo que se encaixe no espaço e atenda às suas necessidades. Agora, sinto que o plano para a minha vida, o plano com o qual venho trabalhando nos últimos doze anos, foi arrancado das minhas mãos e destruído, e eu tenho que projetar uma vida completamente nova. É assustador. Racionalmente, sei que vai ficar mais fácil, só preciso ir um dia de cada vez, mas mesmo assim é assustador. Quer dizer, quais são as regras agora? Quais são as limitações? Preciso repensar como quero que meu futuro seja.
Elem estendeu a mão e a colocou sobre a minha. — Isso é realmente profundo, até poético. Deveríamos tentar incorporar isso à sua entrevista.
Conversamos um pouco mais, trocando ideias sobre as perguntas que ela me faria para guiar a conversa na direção que desejávamos. Contei a ela sobre a próxima reunião com Clara e combinamos de conversar por telefone na quinta-feira à noite, caso precisássemos mudar algo dependendo do resultado da conversa.
Esperei enquanto Elem pagava a conta, já que ela havia recusado minha oferta de pagar. Segurei a porta aberta para ela e a acompanhei até seu carro, um pequeno BYD. Combinava com ela.
— Deixe-me adivinhar, aquele carro do outro lado da rua é o seu.
Eu sorri. — O que me entregou? O fato de ser uma caminhonete ou todas aquelas caixas de ferramentas?
Elem deu uma risadinha. — Ambas eram pistas importantes, mas a sua placa DAN0007 foi a prova definitiva.
Eu ri. — Dan, o espião com zero a esquerda.
— Nossa, e ainda por cima é comediante. Que achado!
Nós dois rimos novamente e nos despedimos.
Ao atravessar a rua em direção a minha caminhonete, percebi que, por alguns preciosos instantes, eu havia sido feliz, genuinamente feliz.
Franzi a testa, parando no meio do movimento; eu estava prestes a verificar as horas mais uma vez.
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Coloquei minha mão de volta sobre a poltrona reclinável, franzindo ainda mais a testa enquanto minhas mãos se fechavam involuntariamente, meus nós dos dedos quase brancos pela força do aperto. Minha garganta doía, uma sensação de aperto insuportável em torno do nó que a preenchia. Tentei engolir em seco e fiz uma careta de dor. Rangendo os dentes, afrouxei os dedos, flexionando os, sem surpresa ao ver o que restava de uma marca no couro da poltrona. Lentamente, como se tivesse um peso enorme, deixei meu queixo cair sobre o peito. O movimento foi controlado e deliberado, mas isso se devia mais à teimosia do que a um domínio real sobre minhas emoções.
Uma coisa que eu não conseguia controlar era a palpitação do meu coração. Isso me deixava perplexo. Por que ele batia tão forte como um trem desgovernado? Seria raiva? Mágoa? Nervosismo? Ou o amor que eu ainda sentia por ela? Não, não era isso. A mulher que eu amei não era a mulher que estava prestes a bater à minha porta. Aquela mulher nunca existiu; ela não passava de um fruto da minha imaginação, uma miragem. Mas eu lamentava. Sentia falta dela. Sentia falta da minha ilusão. A perda dela deixou um enorme vazio na minha vida.
Inspire. Expire. Repetida. Lenta, profunda e calmante; um momento quase silencioso que poderia ser descrito, de forma geral, como meditação.
Funcionou, como um bálsamo refrescante em uma ferida aberta. Claro, Clara e eu já tínhamos passado de qualquer possibilidade de cura. Estávamos queimados, carbonizados, e assim tínhamos estado desde a primeira vez que ela abriu as pernas para ele. Eu simplesmente não sabia disso.
Enquanto continuava respirando de forma constante e aguardando que meu coração se acalmasse, lembrei-me do plano. Por mais que eu quisesse destruí-la com minhas palavras, isso teria que esperar. Essa seria a conversa de Clara; eu seria apenas o receptor de suas palavras.
Ouvi, em vez de ver, Saulo se aproximar e ficar atrás de mim. Respirando fundo pela última vez, levantei a cabeça e me virei para encará-lo. Com um sorriso tranquilizador no rosto, ele estendeu a mão e segurou meu ombro.
— Está tudo pronto. A câmera de vídeo está apontada para a mesa e já está ligada. Recarreguei a bateria ontem à noite, então, caso não haja nenhuma falha, você estará coberto.
— Obrigado por tudo, Saulo.
Ele dispensou meu agradecimento com um gesto de mão. — Você faria o mesmo por mim, tenho certeza. Está pronto para isso?
— Como sempre, estarei. É melhor que isso acabe logo com...
Saulo assentiu com a cabeça. — Então...
Eu ri. — É, eu sei; sem graça, entediante e indiferente.
— Você consegue, Dani. Uma conversa e o pior já terá passado.
Mal tive tempo de acenar com a cabeça quando a temida batida na porta ecoou pelo corredor.
Saulo e eu nos entreolhamos. Ele sorriu e fez um sinal de positivo com o polegar ao me ver assumir uma expressão neutra.
— Vou esperar na sala de jantar enquanto você a deixa entrar.
Aproveitei um último momento para girar o pescoço e flexionar os ombros, num esforço para aliviar a tensão acumulada entre eles, antes de marchar pelo corredor para deixar entrar minha esposa traidora.
Um olhar para ela revelou sua ansiedade. Senti prazer com isso. Puxa, parece que o tempo dela no spa foi desperdiçado. Que pena.
— Clara, siga-me. Vamos conversar na sala de jantar.
— Eu... ah, ok.
O som dos seus saltos me acompanhou enquanto eu caminhava até o fundo da casa. Saulo estava parado perto da porta de vidro deslizante, olhando para o pátio dos fundos. Ele se virou ao nos ouvir entrar na sala. Percebi a surpresa dela ao ver Saulo comigo.
— Dani. Eu... Hum, oi, Saulo.
Meu irmão inclinou a cabeça em sinal de reconhecimento. — Clara. Vou esperar no pátio, Dani, enquanto vocês conversam.
Saulo empurrou a porta para trás e, lançando-me um último olhar, passou por ela. Virando-me para Clara, notei suas bochechas coradas e deduzi que ela sabia por que eu havia combinado a presença de Saulo. Com ele como testemunha, não haveria chance de ela usar de artimanhas e me acusar de algo que pudesse me prejudicar no divórcio. Isso também disfarçava o fato de que eu estava gravando nossa reunião, tipo, por que fazer as duas coisas?
— Posso lhe oferecer algo para beber?
— Hum, água, por favor.
Coloquei propositalmente a agua dela onde tradicionalmente acomodaríamos um convidado, antes de me sentar no meu lugar de costume. Talvez a mensagem fosse sutil demais para ela, mas não achei, pois ela hesitou antes de se sentar no lugar que eu havia indicado. Discretamente, como se tivesse todo o tempo do mundo, recostei-me, tomando um gole de água. Não falei nada, nem a incentivei a falar. Apenas fiquei sentado, olhando e esperando.
— Hum. Eu... ah... Dani, estou tão feliz que finalmente podemos conversar. Senti tanta saudade de você. Sei que você provavelmente não quer ouvir isso, mas preciso dizer: eu ainda te amo.
— Não faça isso, Clara.
— Eu precisava dizer isso. Por favor, acredite em mim. E depois que eu explicar e fizer você entender, talvez possamos...
— Eu disse para parar, Clara. Eu não te amo. Nem quero ouvir suas declarações de amor. Você está desperdiçando seus trinta minutos.
Engole essa, sua vadia mentirosa e traidora.
Para minha surpresa, ela hesitou apenas por um instante. A expressão de choque em seu rosto foi fugaz, logo substituída por um lampejo de irritação, como se eu fosse um cachorrinho travesso que não aprende um truque novo rápido o suficiente. Certamente, ela não era tão ingênua a ponto de pensar que bastava dizer que me amava para que eu perdoasse e esquecesse tudo, não é? Ela olhou para as mãos que seguravam o copo d'água, num gesto que imaginei ser uma tentativa de esconder suas emoções.
— Eu não acredito em você. Não consigo. Você me amava demais para simplesmente desligar tudo como se fosse um interruptor. — Ela arriscou um olhar para mim, mas não encontrou o que procurava, eu estava genuinamente indiferente à sua declaração. Sua testa se franziu em uma carranca e ela voltou a encarar as próprias mãos. — Sinto muito por ter te magoado, Dani. Não foi minha intenção. Preciso que você saiba que não foi você. Não foi nada que você fez. Foi algo à parte. Não teve absolutamente nada a ver com você. Com a gente.
Ela fez uma pausa, como se esperasse que eu dissesse algo.
Eu não fiz isso. Eu queria. Meu Deus, como eu queria. Eu queria gritar com ela. “Sério? É só isso que você quer dizer? Que trazer uma terceira pessoa para o nosso casamento não tem nada a ver comigo? Daqui a pouco você vai me dizer que foi para o meu próprio bem. ”
Me apoiei com mais força no encosto da cadeira para me impedir de pular e gritar com ela: “Eu realmente gostaria que você me explicasse como o fato de você ter transado com meu primo não tinha nada a ver comigo. Como isso foi bom para mim, para nós. Me explique como isso não foi uma quebra de confiança. Não foi uma apunhalada pelas costas. Não foi maldade e egoísmo.”
Em vez disso, tomei goles de água.
Ela inspirou profundamente, e fiquei satisfeito ao notar que ver seus seios pressionando o algodão da blusa não me comoveu. Ela estava tão linda como sempre, mas para sempre impura aos meus olhos. Na verdade, a mera ideia de tocá-la me repugnava.
Quando ela se arriscou a me lançar outro olhar, deixei claro que não tinha intenção de comentar sua declaração. Ela hesitou, abrindo e fechando a boca; eu quase podia ver as engrenagens girando em seu cérebro. O quanto ela deveria confessar? Que estratégia traria o resultado desejado?
— Dani, há coisas que você não sabe sobre mim. Coisas que eu nunca quis que você soubesse.
Resisti à vontade de erguer as sobrancelhas em resposta sarcástica, repetindo para mim mesmo: calmo, neutro, entediado, calmo, neutro, entediado, sem parar.
— Como você sabe, eu cresci em favela. De muitas maneiras, é uma comunidade pequena. Todo mundo parece conhecer todo mundo. Bem, hum, bem, eu era conhecida como uma garota meio rebelde. — Ela suspirou, virando a cabeça para o lado, mostrando-me a extensão do rubor; ele descia por todo o pescoço e chegava até a gola da blusa. — Mais do que um pouco. Eu era uma vadia. Eu tinha uma reputação. Uma reputação ruim. Quando meu pai foi transferido para outra fábrica no meu último ano do ensino médio, tivemos que nos mudar e usei a mudança como uma chance de me reinventar.
Ela olhou para mim, tentando avaliar minha reação. Sem obter resposta, ela perseverou: — Eu consegui na maior parte do tempo, mas, como descobri, todo esse estilo de vida de festas, sexo e fetiches pode ser viciante. Às vezes, eu sentia como se estivesse saindo da minha própria pele, com uma necessidade enorme de me libertar. Eu lutava com o quão restritivo era ser boazinha em comparação com meus dias de garota má. Resolvi o problema me controlando. Algumas vezes por mês, eu ia para as baladas ou festa funk, qualquer lugar onde eu não fosse conhecida, e eu, hum, acho que você poderia dizer, me entregava aos excessos. Ao me fartar, por assim dizer, eu conseguia passar o resto do mês sendo uma boa menina.
Mais uma vez ela parou, me estudando, esperando uma resposta. Mais uma vez, eu não lhe dei nada além de um olhar inexpressivo.
— Bem, então, eu comecei a trabalhar naquela lanchonete. Eu te conheci um mês depois da admissão e você foi tão doce e maravilhoso, e nos divertimos muito juntos. Por um tempo, a vontade de transar com qualquer outro, passou, mas depois de uns seis meses, a vontade voltou. Por coincidência, eu fui a uma rave num fim de semana e, bem, eu exagerei. Na minha última noite, encontrei o Zaqueu. Ele me viu, hum, fazendo coisas que eu não devia com um cara qualquer e me encurralou. A princípio, achei que ele ia me dar uma bronca, mas não deu. Ele, ai meu Deus, isso é tão difícil, me disse que gostava de uma boa vadia. Foi assim que tudo começou.
Lágrimas escorriam por suas bochechas vermelhas, pingando do queixo e molhando sua blusa.
— Você precisa saber que eu não fiz amor com o Zaqueu, juro que só transamos. Não foi amor de verdade. Não foi nada parecido com o que você e eu temos. Por favor, acredite em mim quando digo que muito do que eu disse para o Zaqueu era só conversa fiada para o excitar. Era tudo parte do jogo que a gente jogava. Eu não quis dizer aquilo. É difícil explicar. É como se eu tivesse duas pessoas diferentes vivendo dentro do meu corpo, com necessidades muito diferentes. Você satisfazia a doce Clara e o Zaqueu... bem, a outra pessoa. Eu precisava ser tratada como... como..."
Ela teve a decência de desviar o olhar.
— Como uma vadia. Era só para satisfazer essa necessidade, agente se encontrava para fumar um baseado a transar, más era só isso, Danny, nada mais. Eu não esperava que ele me fizesse sentir amada, querida e segura. Eu não queria isso dele, eu queria isso de você porque te amo. Eu não queria uma vida com ele. É com você que eu quero envelhecer. Eu nunca, eu juro, o amei. Nunca foi a mesma coisa com ele como é com você e comigo. Ele era apenas uma válvula de escape, era só um baseado e uma transa. Só isso. No começo foi pela chantagem dele, más depois foi pela minha necessidade de extravasar. Depois de um tempo eu tentei parar, más toda vez que eu dizia a ele que seria a última vez, ele me chantageava dizendo que contaria tudo a você se eu não continuasse a transar com ele.
Reprimi a vontade de bufar de nojo. Mas não consegui suprimir meus pensamentos. Eles a repreendiam silenciosamente. Então agora você é esquizofrênica e drogada. Bem, obrigado pela informação. De qualquer forma, ele ainda enfiou o pau em você. E ele deve ter feito um bom trabalho em satisfazer sua, ah, "necessidade de garota rebelde", ou você não teria continuado com ele por doze anos.
— Dani, por favor, tente entender. Ele satisfez uma necessidade sexual. Nada mais. Não foi nada emocional.
Apenas físico. Não emocional. Como se isso fizesse toda a diferença. Será que a falta de emoção fez com que o pênis dele fosse de alguma forma menos pênis? Será que o transformou num pênis fantasma? Num pênis metafórico?
Custou-me muito manter o silêncio e a calma. Meu estômago se revirava com a necessidade de responder. O gosto amargo da bile enchia minha boca por só conseguir responder em pensamento. Um dia, eu me consolaria. Um dia, eu conseguiria dizê-las em voz alta.
— Eu não queria te magoar, Dani. Gostaria de poder voltar atrás. Ter uma segunda chance.
Será que ela estava falando sério? Não queria me magoar? De que outra forma ela poderia prever o desenrolar da situação? Me magoar era inevitável. Era só uma questão de tempo. Como ela não conseguia enxergar isso? E uma vez feito, não havia como voltar atrás. A avalanche já havia começado, descido ladeira abaixo e atropelando meu coração no processo.
Mais lágrimas brotaram em seus olhos e escorreram, descendo lentamente por suas bochechas. Seriam verdadeiras? Fariam parte de sua atuação? Na verdade, não importava se eram genuínas ou falsas, pois não fariam diferença alguma no resultado da nossa conversa.
— Por favor, diga alguma coisa, Dani. Por favor, diga que você entende. Você não sabia. Eu realmente pensei que, enquanto você não soubesse, não te machucaria. Eu queria te proteger. Proteger a nós dois, o nosso amor. O nosso doce, doce amor. Sendo uma vadia uma ou duas vezes por mês, eu conseguia ser uma boa esposa para você no resto do tempo. Me desculpe. Me desculpe muito. Por favor, me perdoe. Por favor, me ame o suficiente para me perdoar.
Seus apelos e pedidos de desculpas me deixaram perplexo. Ficou claro que ela não se via como a vilã da história, talvez não totalmente inocente, ou a parte injustiçada, mas definitivamente não como a má. Na verdade, ela se via como uma vítima, vítima de seu "vício", como ela mesma dizia. Será que ela realmente acreditava que eu deveria perdoá-la e fingir que não via seus casos extraconjugais para satisfazer sua necessidade de se comportar como uma prostituta uma ou duas vezes por mês?
Como ela pôde não perceber o que admitiu com sua confissão? Eu havia dito que a Clara revelada nas cartas não era a Clara que eu amava e prezava; agora eu sabia com certeza. Seus excessos a permitiam representar um papel, o papel da esposa doce. Era um papel, nada mais que um papel. A Clara doce pode ter tido mais destaque, mas isso não mudava o fato de que a Clara egoísta e vadia era a verdadeira Clara.
Ela se remexeu, meu silêncio claramente a perturbando. — Dani, por favor. Por favor, diga alguma coisa. Preciso saber o que você está pensando. Por favor, me dê uma segunda chance. Nós fomos felizes. Por doze anos você foi feliz. Podemos ser felizes de novo, se você me deixar compensar. Por favor, me deixe voltar para casa.
Me compensar? Como exatamente se compensa mais de uma década de mentiras e enganos? De desrespeito?
— Não. — Foi tudo o que eu disse a ela. Uma palavra.
— Dani, por favor. Eu sei que o que fiz foi terrível. Vou passar o resto da minha vida sendo a melhor esposa possível se você me der outra chance. Nosso casamento não significa nada para você? Você realmente pode deixar tudo acabar tão facilmente?
Peguei meu copo, esvaziando o resto da água num esforço para apagar o fogo que ardia em meu estômago, para afogar a fúria que ansiava por transbordar dos meus lábios. A injustiça de suas palavras testou minha resolução. Eu desistir do nosso casamento? Eu ir embora sem mais nem menos? Era ela. Ela foi quem desistiu de nós antes mesmo de começarmos de verdade. Foi ela fingindo ser algo que não era que nos condenou ao fracasso desde o início. Fechei os olhos enquanto bebia e imaginei-me mergulhando nas águas frescas e tranquilas de um lago e contei, 1,2... Quando cheguei a dez, recuperei o autocontrole.
— Sim, posso ir embora. E sem nem olhar para trás. — Verifiquei meu relógio de forma incisiva. — Acho que seu tempo acabou.
O filete de lágrimas transformou-se em choro descontrolado.
— Dani, eu te amo. Só você. Eu sou sua. Sempre fui sua. Ele só serviu a um propósito. Não desista de nós, Dani. Por favor, me dê uma chance. Eu posso fazer você confiar em mim de novo. Eu posso fazer você me amar de novo. Só me dê uma chance. Eu aprendi a lição. Nunca mais vou te decepcionar.
— Chega, Clara, você teve 12 anos para repensar, em nenhuma vez você pensou em mim. Por favor, se recomponha. Esta reunião terminou.
Eu me levantei e, sem olhar em sua direção, fui até a porta da frente, abri-a e esperei.
Esperei um pouco.
Ela caminhou em minha direção, seus passos lentos como se estivesse a caminho da execução. Parou ao meu lado, olhando para cima com olhos suplicantes.
— Eu te amo, Dani. Eu te amo muito. Será que... será que poderíamos tentar terapia de casal? Por favor, diga que você pelo menos vai considerar essa possibilidade.
— Fazer terapia seria inútil. Eu não te amo. Descobri que esse amor morreu a 12 anos e só veio cair agora. Agora, se me der licença, tenho planos para esta noite.
Fechei a porta silenciosamente, orgulhoso por não ter cedido ao impulso de batê-la com força. Virei-me e segui pelo corredor. O som dos soluços de Clara me acompanhou, mas não me virei nem hesitei.