Parte 1: O Silêncio Ruidoso
Quinta-feira, 21h17. Eu sei o horário exato porque olho pro relógio da TV a cada três minutos. Catarina está na cozinha, fazendo barulho com as panelas de um jeito que não é casual—é proposital. Cada batida do escorredor de arroz na pia, cada porta de armário fechada com força calculada. Ela está puta. Eu finjo que não percebo, porque perceber significa ter que fazer algo a respeito, e eu não tenho energia pra isso.
O apartamento cheira a alho refogado e a algo azedo que não consigo identificar. Talvez seja o lixo que esqueci de descer. Talvez seja a gente. Estou no sofá, aquele de três lugares que compramos há cinco anos na liquidação da Etna, com o notebook no colo, fingindo revisar planilhas. Na verdade, estou rolando o feed do Reddit, lendo sobre pessoas com problemas piores que os meus. Tem um cara no r/relationship_advice que descobriu que a esposa é cam girl. Leio os comentários: "Divorce her ass", "She's for the streets", "Lawyer up". Fecho a aba. Não quero ler sobre casamentos acabando.
O gato—Mingau, nome idiota que ela escolheu—passa pela minha perna e vai direto pra cozinha. Ele prefere ela. Sempre preferiu. Até o bicho percebe a hierarquia aqui.
Catarina aparece na porta da sala com um prato na mão. Macarrão com molho de tomate, básico, sem esforço. Ela não põe na mesa de jantar. Põe na bancada da cozinha americana e come em pé, de costas pra mim. O cabelo dela está preso num coque bagunçado, e consigo ver a nuca—a pele clara com duas pintas que costumava beijar. Quando foi a última vez? Seis meses? Um ano?
"Você vai comer ou vai fingir que trabalha até meia-noite de novo?" A voz dela corta o silêncio sem olhar pra mim.
"Já vou." Fecho o notebook. Não estava fazendo nada mesmo.
Levanto e vou até a cozinha. O prato que ela deixou pra mim está tampado com papel alumínio, esfriando. Pego, tiro o papel, esquento trinta segundos no micro-ondas. O som do micro-ondas funcionando é o único som entre nós. Beep-beep-beep. Pego o prato quente demais, queimo a ponta dos dedos, coloco na bancada ao lado dela. Não sentamos. Comemos em pé, como dois estranhos num buffet de casamento.
O molho está aguado. Ela esqueceu o sal. Não comento. Ela também não come com vontade—empurra o macarrão de um lado pro outro do prato, enrola no garfo, larga, enrola de novo.
"O Pedro ligou hoje", ela diz, ainda sem me olhar. Pedro é o irmão dela. "Perguntou se a gente vai no aniversário da mãe dele."
"Quando é?"
"Sábado que vem."
"Tô com muito trabalho."
Ela ri, mas não é um riso de humor. É aquele riso curto, nasal, que significa *você é patético*. "Você sempre tá com muito trabalho, André. Sua vida é planilha de Excel e fingir que existe."
Engulo o macarrão sem mastigar direito. Fica preso na garganta, tenho que tossir. Ela não pergunta se estou bem. Só continua: "Eu vou sozinha. Como sempre."
"Ok."
"Ok." Ela repete, com desdém. "Sua resposta pra tudo. Ok. Tudo bem. Tanto faz."
Largo o garfo. O barulho do metal batendo no prato reverbera mais alto do que deveria. "O que você quer que eu diga, Catarina? Quer que eu brigue? Quer que eu grite? Eu tô cansado."
"Eu também." Ela finalmente me olha. Os olhos verdes, que já foram meu ponto fraco, agora só carregam cansaço. Tem olheiras. Quando foi que apareceram? "Eu tô cansada de viver com um fantasma."
Esse comentário deveria doer mais. Mas não dói. Só confirma o que eu já sei. Eu sou um fantasma. Acordo, trabalho, volto, como, durmo. Repito. A gente transa? Uma vez por mês, talvez. Sempre a mesma coisa: ela de costas, eu por trás, rápido, sem conversa. Ela goza? Não sei. Finge que sim. Eu gozo porque é biológico, mas não tem prazer. É só descarga.
"Então o que você quer?" Minha voz sai mais agressiva do que pretendia. "Quer que eu seja diferente? Quer que eu vire o príncipe encantado que te salvou na faculdade? Aquele cara morreu, Catarina. Você matou ele com suas críticas, com seu desprezo, com—"
"Com minha honestidade?" Ela me interrompe, se virando completamente pra mim agora. O corpo dela, coberto por uma camiseta larga cinza e calça de moletom preta, parece menor do que lembro. Ela emagreceu. Não tinha percebido. "Eu te critiquei porque você *parou*. Você parou de me olhar. Parou de me tocar. Parou de fazer qualquer coisa que não fosse apertar botões naquele porra desse notebook."
"Eu trabalho pra pagar esse apartamento que você—"
"Não." Ela levanta a mão, me cortando. "Não usa isso. Não transforma isso numa questão de dinheiro. Você sabe que não é sobre isso."
Silêncio. O gato mia, pedindo comida. Catarina pega a ração, enche o potinho dele. O som dos grãos caindo é alto demais. Tudo aqui é alto demais quando não tem conversa pra abafar.
"Eu acho que a gente devia se separar." Ela solta assim, de repente, enquanto fecha o pacote de ração.
Meu estômago revira. Não de tristeza. De pânico. De algo mais estranho que não consigo nomear. "Você tá falando sério?"
"Acho que sim." Ela encosta na geladeira, braços cruzados. "Eu não aguento mais isso. Eu me sinto morta, André. Eu acordo de manhã e não sinto nada. Nem raiva, nem amor, nem tesão, nada. E você também não sente. Admite."
Eu deveria negar. Deveria dizer que amo ela, que a gente pode consertar, que vou mudar. Mas não sai. Porque ela está certa. Eu não sinto. Ou melhor, eu sinto, mas é algo torto, errado. Eu sinto quando ela fala com outros homens. Quando o vizinho do andar de cima cumprimenta ela no elevador e ela sorri—aquele sorriso que não dá mais pra mim. Quando ela volta da academia suada, o cabelo molhado, e eu imagino quem olhou pra ela. Isso me excita mais do que ela nua na minha frente.
"E se…" A voz sai antes de eu pensar. "E se a gente tentasse outra coisa?"
Ela franze a testa. "Terapia de casal? Já tentamos. Você faltou três sessões."
"Não. Outra coisa." Meu coração acelera. Estou pisando em terreno desconhecido, mas algo primitivo no meu cérebro está tomando controle. "E se a gente abrisse?"
"Abrir?" Ela ri, mas é um riso confuso. "Tipo… relacionamento aberto?"
"É."
"André, você nem transa direito comigo. Você acha que vai conseguir transar com outra pessoa?"
A humilhação queima, mas é combustível. "Não eu. Você."
O silêncio que se segue é físico. Dá pra sentir o peso dele. Catarina me olha como se eu tivesse falado em mandarim. "O quê?"
"Você. Com outro cara." As palavras saem atropeladas agora, a fantasia que ficou anos guardada na minha cabeça finalmente vazando. "Eu ficaria sabendo. Você me contaria. Ou eu veria. Mas… seria pra te fazer feliz. Pra te fazer sentir viva de novo."
Ela dá dois passos pra trás, a mão na boca. "Você tá louco?"
"Talvez." Eu rio, um riso nervoso, doente. "Mas você não tá feliz. E eu… eu não consigo te fazer feliz do jeito que você precisa. Então… por que não?"
"Porque isso é *doente*, André!" A voz dela sobe. "Você quer que eu traia você com permissão? Que tipo de merda é essa?"
"Não é traição se eu quero." Eu me aproximo, e ela não recua dessa vez. Estou tão perto que consigo sentir o cheiro do shampoo dela—maçã verde. "Catarina, eu… eu penso nisso. Muito. Você com outro homem. Te tocando do jeito que você gosta. Te fazendo gozar de verdade. E eu—"
"Para." Mas ela não se afasta. Os olhos dela estão arregalados, mas há algo ali. Curiosidade? Nojo? Excitação? "Você fica excitado com isso?"
Não respondo com palavras. Pego a mão dela e coloco no meu pau, por cima da calça de moletom. Estou duro. Mais duro do que fico quando a gente transa. Ela sente, e a respiração dela muda—fica mais rápida, superficial.
"Meu Deus." Ela tira a mão como se tivesse tocado fogo. "Você é doente."
"Talvez os dois sejamos." Minha voz está rouca. "Você não tá curiosa? Nem um pouco?"
Ela não responde. Só me olha, e nesse olhar eu vejo anos de frustração, de raiva reprimida, de desejo ignorado. Ela está considerando. Mesmo achando que é loucura, ela está considerando.
"Eu preciso pensar." Ela sai da cozinha, vai pro quarto. A porta fecha. Não bate—fecha suave, o que de alguma forma é pior.
Fico sozinho na cozinha. O prato de macarrão pela metade. O gato comendo ração. A geladeira zumbindo. E eu, com o pau latejando, a cabeça explodindo de pensamentos que não deveria ter.
Vou pro banheiro. Tranco a porta, abaixo a tampa do vaso, sento. Tiro o celular, abro o navegador anônimo. Digito: "wife with another man". Os resultados são infinitos. Clico num vídeo amador. A qualidade é ruim, câmera tremida, mas dá pra ver: uma mulher loira, corpo comum, não é modelo, e um cara moreno, pau grosso, entrando nela por trás. O marido tá filmando. Dá pra ouvir a respiração dele, pesada, excitada.
Abaixo a calça. O pau está dolorido de tão duro. Não uso lubrificante, só cuspe na mão. Começo devagar, mas logo acelero. A imagem do vídeo se mistura com a imagem da Catarina. Imagino ela na mesma posição. Imagino a bunda dela, as estrias nas coxas, o jeito que ela geme quando está realmente com tesão—aquele gemido que eu não ouço há anos.
Mas no meu imaginário não sou eu que arranco esse som dela. É outro. Um desconhecido. Mais alto, mais forte, mais *presente* do que eu consigo ser. Ele puxa o cabelo dela, e ela grita meu nome—não, ela grita o nome *dele*. Isso me faz gozar.
O orgasmo é violento. Esperma jorra na minha mão, no chão do banheiro, quente e grosso. Eu continuo puxando, ordenhando até a última gota, os olhos fechados, a respiração ofegante. Quando abro os olhos, a realidade volta: eu, sozinho, no banheiro sujo, com a própria porra na mão.
Pego papel higiênico, limpo. Jogo no vaso, dou descarga. Lavo as mãos, olho no espelho. O cara que me olha de volta tem trinta e seis anos, mas parece ter cinquenta. Cabelo começando a ralear no topo. Olheiras fundas. Barba malfeita. Quando eu virei isso?
Saio do banheiro. A luz do quarto está apagada, mas a porta está entreaberta. Entro devagar. Catarina está deitada, de costas pra porta, mas sei que não está dormindo. A respiração não é de quem dorme.
"Cat?" Sussurro.
Nada.
Deito do meu lado da cama, longe dela. O colchão afunda, e a distância entre nossos corpos é do tamanho do abismo que cavamos nesses sete anos de casamento. Fecho os olhos, mas não durmo. Fico pensando na conversa da cozinha. Na expressão dela. No jeito que a mão dela sentiu meu pau duro.
Ela vai aceitar. Eu sei que vai. Porque assim como eu preciso disso pra sentir alguma coisa, ela também precisa de algo pra quebrar essa jaula de tédio que nos prendeu.
Às 2h37 da manhã (olho pro despertador digital no criado-mudo), ela se mexe. Rola pra ficar de frente pra mim. Mesmo no escuro, sinto os olhos dela me estudando.
"Se a gente fizer isso…" A voz dela é baixa, carregada. "Tem regras."
Meu coração dispara. "Tem."
"Eu escolho quem."
"Ok."
"Você não pode ter ciúme depois."
"Não vou ter." Mentira. Mas uma mentira necessária.
"E se eu gostar mais do que gosto de você?" A pergunta é uma faca. "E se eu não quiser voltar?"
Engulo seco. "Então a gente lida com isso quando acontecer."
Silêncio longo. Depois, ela estende a mão, toca meu rosto. O toque é estranho, quase clínico. "Você é mesmo doente."
"Eu sei."
"Eu também devo ser." Ela ri, mas é um riso sem humor. "Porque eu tô pensando em quem seria."
Isso me excita de novo. O pau volta a endurecer. Ela percebe quando eu me aproximo, e não me empurra. Pela primeira vez em meses, a gente transa com vontade. Mas não é amor. É algo mais sombrio—é a antecipação da destruição, o prazer mórbido de apertar o gatilho e esperar o tiro.
Quando termino—rápido, como sempre—ela não finge que gozou. Só vira de lado e diz: "Eu vou começar a procurar amanhã."
E eu, deitado no lado dela da cama, ainda suado, ainda latejando, sussurro pro escuro: "Eu sei."
O gato pula na cama, se enrosca nos pés dela. Lá fora, um carro passa, os faróis iluminando brevemente o quarto. Consigo ver o perfil dela—o nariz pequeno, os lábios entreabertos, os olhos ainda abertos, olhando pra parede.
Nenhum de nós dorme até o sol raiar.
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>>> Em breve: Parte 2