Que fim de tarde infernal naquela Boa Saudade de todos os pecados! O sol havia castigado a cidade o dia inteiro, como um marido ciumento que não perdoa, e agora, no horizonte, as nuvens de siriris se empilhavam, negras e gordas, prometendo a chuva que viria para lavar as ruas.
Leninha estava só outra vez. Sozinha, como sempre acabava estando, mesmo podendo ter o homem que quisesse. Ainda era bela, palavra minha, bela de um jeito que fazia os homens babarem em silêncio e as mulheres rangerem os dentes de inveja. Passara, é verdade, daquela idade em que as moças de família se casam de branco e virgem, mas o tempo só lhe dera mais fogo, mais perigo. Naquele dia, porém, Leninha dispensou todos. Preferiu a solidão, essa amante cruel que a conhecia melhor do que ninguém.
A noite caiu despudorada, quente como boca de forno, abafada como segredo de confissão. No quarto pobre mas limpo, Leninha quase se despira inteira. Só a lingerie branca, rendada, fina como véu de noiva traída, cobria o essencial – e mal cobria. O tecido colava na pele suada, transparente de tanto suor, exibindo sem pudor algum os pelos escuros do seu monte de Vênus, aquele triângulo negro e insolente que gritava desejo para quem quisesse ver (e ninguém via, porque ela estava só, só com o espelho e com o demônio que morava dentro dela).
O suor escorria lascivo pelos seios fartos, descia pelo ventre, perdia-se nas dobras da carne, brilhando como lágrimas de um prazer que ainda não chegara. Leninha se olhava no espelho rachado, e o que via era uma mulher que o mundo chamava de solteirona, mas que ela sabia ser apenas uma fêmea em chamas, esperando – Deus sabe o quê ou quem – para se consumir de vez.
Leninha mudou de ideia, como mudam as mulheres quando o desejo, esse canalha, dá um beliscão no fundo da alma. A solidão do quarto já não bastava; precisava refrescar o corpo e, quem sabe, atear fogo noutro lugar. Vestiu-se com o que a noite escaldante pedia: roupas curtas, quase indecentes, saia que mal cobria as coxas suadas, blusa que deixava entrever o contorno dos seios livres, sem sutiã, desafiando o decoro de Boa Saudade inteira. Saiu para a praça solitária, onde o vento morno lambia as árvores como um amante sem pressa, e dirigiu-se à única sorveteria da cidade, aquele oásis gelado no meio do inferno.
Enquanto isso, Gorete, pobre Gorete, acabava de guardar os últimos pacotes de berbigões no freezer. Amanhã levaria ao seu Mané na peixaria – e receberia o que ele quisesse oferecer, porque em Boa Saudade não havia barganha possível quando só existe um comprador e uma mulher sozinha. Vestiu uma camisa simples e uma saia até os joelhos, pudica como convém a uma beata de carteirinha. Sentou-se na beira da cama, com as pernas bem juntas, e colocou a lingerie nova que comprara escondido na loja da esquina. Branca, rendada, fina como pecado disfarçado de inocência. Olhou-se no espelho, viu como ficava bem no corpo que ninguém tocava, e sentiu um aperto no peito: ninguém para ver, ninguém para desejar, ninguém para profaná-la.
Beata que era, recusara todos os convites de namoro, vira como indecorosa qualquer proposta amorosa – mesmo as mais honestas – e ficara para titia, como cochichavam as comadres na missa de domingo. Mas naquela noite de calor insuportável, um sorvete cairia bem, pensou. Algo frio para aplacar o fogo que, apesar de tudo, queimava por dentro. Pegou a bolsinha, ajeitou o cabelo e foi à sorveteria.
Sentou-se num canto, discreta, e pediu o de coco – o mais puro que havia no cardápio. Lambia devagarinho, como quem teme que o prazer acabe cedo demais, quando ergueu os olhos e viu Leninha entrando, toda pernas e ousadia, o corpo ainda úmido do suor da caminhada.
Ah, Leninha.
Gorete sentiu o coração dar um pulo de coelho assustado. Ouvira tantas histórias sobre aquela depravada – histórias que as beatas contavam de boca tapada, mas com os olhos brilhando de curiosidade malsã. Leninha com homens, Leninha com grupos de homens, Leninha nos becos escuros, Leninha se entregando à luxúria e à imundície com uma naturalidade que escandalizava e, vá lá, invejava.
Nas noites solitárias da cama estreita, quando a mão descia traiçoeira entre as coxas e, às vezes, um pequeno bastão comprado às escondidas era a única ferramenta de seu prazer secreto, Gorete fervia relembrando aquelas histórias. O contraste era brutal: de um lado, a vida impecável, o mundinho púbico e religioso; do outro, a devassidão sem freios de Leninha. E talvez exatamente por isso – porque era proibido, porque era sujo, porque era o oposto de tudo que lhe ensinaram – aquelas imagens não saíam da cabeça de Gorete, feito tentação do demônio em forma de mulher.
Agora Leninha estava ali, a poucos metros, pedindo um sorvete com aquela voz rouca que parecia promessa de cama. Gorete baixou os olhos para a taça, mas o coração batia descompassado, e entre as pernas, sob a saia recatada e a lingerie nova que ninguém veria, algo começava a umedecer, traidor, como se o corpo já soubesse o que a alma ainda
Leninha, com o copo de sorvete já meio derretido na mão, sentiu aquele formigamento na nuca que só uma mulher conhece quando está sendo devorada pelos olhos de outra. Virou o rosto devagar, como quem não quer dar importância, e deu de cara com ela: Gorete, sentada num canto, lambendo o sorvete de coco com uma lentidão quase criminosa, os olhos baixos, mas subindo, subindo, traindo toda a beata que se pretendia ser.
Leninha sorriu por dentro. Sabia muito bem que era vítima da língua daquela ali e das outras comadres de missal na mão. Falavam dela na fila do pão, na porta da igreja, no grupo de WhatsApp das beatas de Boa Saudade: “Leninha isso”, “Leninha aquilo”, “Leninha com fulano no beco”, sempre com o tom de quem condena, mas com a salivação de quem inveja. E agora ali estava Gorete, fingindo atenção no sorvete, mas olhando, olhando com uma fome que não era de doce.
Leninha percorreu-a inteira, sem pressa. Aquelas roupas-punição – camisa abotoada até o pescoço, saia até os joelhos – não enganavam quem sabia ler corpo de mulher. Pelo contrário: eram um grito. O corpinho cheio, arredondado, feito para o pecado que nunca se confessava. Os seios fartos esticando os botões da camisa, quase implorando para que um deles cedesse e revelasse o que havia por baixo. As coxas roliças, apertadas pela saia recatada, prometendo uma maciez que faria qualquer mão perder o juízo.
Gorete não era feia, não, senhor. Era bonitinha, desejável, do jeito que as beatas mais perigosas são: cara de santa, corpo de cortesã disfarçada. Aquela aparência de retidão não era só etiqueta de família – era convite puro aos prazeres mais sujos. Um desafio. Um “venha me corromper, se for capaz”. Leninha sentiu o sangue esquentar mais que o ar da noite. Conhecia aquele olhar: mistura de inveja, curiosidade e, no fundo no fundo, desejo puro, cru, aquele que faz a mão tremer e a calcinha umedecer sem permissão.
Levantou-se devagar, lambeu o restinho de sorvete do lábio superior com uma lentidão deliberada, e caminhou até a mesa de Gorete. Parou ao lado, apoiou uma mão no encosto da cadeira vazia, inclinou-se um pouco – o suficiente para que o decote da blusa mostrasse o que queria mostrar.
— Boa noite, Gorete — disse Leninha, com aquela voz rouca que parecia já estar na cama. — Que calor dos infernos, não é mesmo? Até as beatas saem do convento pra tomar um sorvete…
Gorete ergueu os olhos de repente, como quem é pega em flagrante. O rosto corou violentamente, o sorvete escorreu um pouco no queixo. Tentou responder algo, mas a voz saiu um fiapo.
E Leninha sorriu, aquele sorriso de quem sabe que a caça já começou – e que a presa, no fundo, está morrendo de vontade de ser apanhada.
A sorveteria inteira parecia prender a respiração. Lá fora, os primeiros trovões anunciavam a chuva. Mas dentro daqueles dois corpos, o temporal já tinha começado havia muito tempo.
Leninha, encostada na mesa de Gorete, lambia o sorvete devagar, muito devagar, a língua rodando na bola gelada como se fosse pele quente, como se estivesse já chupando o corpo alheio ali mesmo, na frente de todos e do atendente sonolento da sorveteria. Cada lambida era uma provocação, cada sucção um convite ao pecado. Gorete não tinha reação: apenas estupefata, os olhos arregalados, o sorvete esquecido na mão, o corpo inteiro paralisado entre o horror e a fascinação.
Então Leninha, com aquela voz baixa e rouca que parecia vir do fundo do inferno, inclinou-se mais um pouco e perguntou, como quem pergunta a hora:
— Sabe a cor da minha calcinha, Gorete?
E sem dar tempo para a outra respirar, emendou, os olhos cravados nos dela:
— Branquinha, de rendas. Tá ensopadinha e socadinha na minha buceta. Queres ver?
Sorriu em seguida um sorriso deliciosamente malvado, daqueles que prometem perdição eterna. Não esperava resposta, palavra minha. Queria apenas checar, cutucar a beata, ver até onde ia o pudor daquela mulher de saia até os joelhos. Era um jogo, uma brincadeira cruel de quem já venceu antes de começar.
Mas, ó tragédia deliciosa, Gorete, tomada de uma volúpia súbita, de um desejo que subiu das entranhas como lava, de uma vontade infernal de experimentar enfim os prazeres que só imaginava nas noites solitárias com a mão culpada e o bastão escondido debaixo do travesseiro, respondeu, a voz trêmula mas decidida:
— Quero. Agora.
O quê? Leninha piscou, surpresa, o coração dando um salto de alegria selvagem. A presa não só aceitara a armadilha – correra para dentro dela de braços abertos.
— Vamos no beco aqui atrás — disse Leninha, já se levantando, a voz agora urgente, feliz. — Vem.
Gorete se ergueu também, as pernas moles, o rosto em fogo, largando o copo meio cheio na mesa sem sequer pagar. As duas saíram da sorveteria como se fugissem de um crime, o calor da noite abraçando-as como cúmplice. A praça estava vazia, as luzes amarelas dos postes tremendo no ar úmido, os primeiros pingos grossos de chuva começando a cair.
Entraram no beco escuro atrás da sorveteria, aquele beco que Boa Saudade fingia não existir, cheiro de lixo e de desejo antigo no ar. Leninha encostou Gorete na parede fria, as mãos já na cintura dela, o rosto tão perto que os hálitos se misturavam.
— Agora vais ver, minha beata — sussurrou Leninha, os dedos já subindo a saia curta de si mesma, revelando a calcinha branca, rendada, exatamente como prometera: ensopada, colada na carne inchada de vontade.
Gorete olhou, ofegante, os olhos vidrados, e pela primeira vez na vida deixou escapar um gemido baixo, de quem finalmente se rende ao demônio que sempre morou dentro dela.
A chuva desabou de vez, forte, lavando as ruas de Boa Saudade. Mas no beco, entre as duas mulheres, o dilúvio era outro – quente, suado, pecaminoso, inevitável.
Duas criaturas de mundos tão distintos, colidindo como um bonde desgovernado na curva da vida. Leninha, essa diaba de olhos picantes, mas com uma discrição que enganava até santo, fitava Gorete com uma malícia que não gritava, sussurrava pecados. E Gorete, coitada, com seu olhar pudico, de moça de família, mas carregado de um desejo que queimava por dentro, como fogo em palha seca, escondido atrás de uma fachada de virtude.
Leninha não perdeu tempo. Aproximou-se devagarinho, como quem não quer nada, e cravou a mão esquerda na cintura tenra de Gorete, apertando com uma posse que já era declaração de guerra ao pudor. Cada vez mais perto, a mão direita subiu traiçoeira sob a saia inocente, roçando a coxa trêmula. Ah, e lá estava o tecido rendado da calcinha, fina como promessa de freira, mas já traída pela umidade daquela gruta proibida, quente e úmida como o inferno que espera as almas fracas.
Gorete gemeu baixinho, um gemido de vergonha pura, de receio que alguém visse, que o mundo soubesse do seu segredo sujo. Mas o hálito fresco de Leninha, perfumado de hortelã e maldade, chegou tão perto que a boca de Gorete se abriu sozinha, traidora, convidando o beijo. E elas se beijaram, minha senhoras e meus senhores, com uma fome que Nelson aqui vos conta: línguas se enroscando, se entregando aos lábios, como se o pecado fosse o único oxigênio possível.
Com uma habilidade de quem já perdeu a conta das almas que corrompeu, Leninha afastou a calcinha de lado, delicada mas implacável, e brincou no botãozinho daquela mulher que agora a abraçava com desespero. As línguas dançavam uma valsa profana, e de repente, sem aviso, Leninha meteu primeiro um dedo, depois dois, naquela fenda molhada e pulsante. Gorete pulou, soltando um gemido abafado, um grito de surpresa e êxtase, como se o corpo inteiro gritasse: "Eu sou humana, eu desejo, eu me entrego!"
E assim, sob a chuva morna da trovoada, duas mulheres se perdiam uma na outra, provando que o desejo, esse canalha, não respeita nem regra nem moral.