Eu não lembro exatamente da ordem das coisas depois que o Eduardo apareceu. É como se minha memória tivesse sido engolida por aquele caos de música alta, vozes atravessadas e luzes coloridas piscando sem qualquer compasso. Só sei que, em algum momento, a mão do Samuel fechou na minha, firme, decidida, quente, puxando meu corpo junto ao dele.
A festa ficou para trás antes que eu pudesse entender o que estava acontecendo.
Lembro apenas do vento quente batendo no meu rosto quando atravessamos o portão, do cheiro intenso de álcool misturado a perfume caro, e do contraste gritante entre a bagunça lá dentro e o silêncio da rua.
A casa da Mônica parecia respirar sozinha ali no fundo da calçada — janelas iluminadas, sombras dançando atrás das cortinas, como se ainda estivéssemos sendo observados pela energia da noite.
Samuel abriu a porta do carro com um movimento brusco, mas não agressivo — um daqueles gestos cheios de urgência que só ele conseguia fazer sem parecer descontrolado. Quando se virou pra mim, o sorriso dele estava diferente. Era um sorriso cortado no meio por alguma coisa que os olhos não conseguiam esconder.
— Entra — disse, com a voz arranhada.
Entrei.
A porta bateu forte atrás de mim, abafando o mundo exterior. A música virou apenas um eco distante, uma lembrança vibrando nas paredes como um coração perdido. Samuel deu a volta no carro e se jogou no banco ao meu lado como se estivesse se segurando há horas.
A escuridão do carro era quase confortável. Apenas os postes do outro lado da rua iluminavam de leve o rosto dele — o suficiente para eu ver aquele brilho no olhar que sempre me desmontava, sempre me tirava do eixo.
— Você não tem ideia do que me fez sentir lá dentro, Yuri… — ele sussurrou, inclinando o corpo pra mais perto.
Meu corpo reagiu antes da minha mente. Senti o calor dele atravessar a pouca distância entre nós, quase como se a pele dele chamasse a minha.
Aquele brilho nos olhos dele… Deus. Era impossível decifrar completamente. Era desejo, sim, mas também uma inquietação funda, um medo escondido atrás da pupila dilatada.
— Quando você disse aquilo pro Eduardo… — ele continuou, aproximando o rosto mais ainda. — “Ele é bonito pra caralho todo dia”…
Ele sorriu. Aquele sorriso torto, perigoso, carregado de intenção — o tipo que me fazia esquecer quem eu era.
— Porra, Yuri… você não tem ideia de como eu fiquei excitado.
O ar saiu inteiro do meu pulmão.
Nem deu tempo de responder.
A mão dele subiu pela minha nuca com força e precisão, e a boca dele encontrou a minha como se estivesse tentando invadir todos os espaços possíveis ao mesmo tempo. O beijo não foi gentil. Foi urgente. Fome pura. Pressa. Certeza.
A língua dele aprofundou o beijo como se estivesse marcando território, como se quisesse me lembrar exatamente quem era ele — e quem eu era ali, entre as mãos dele.
Me faltou ar.
Mas eu não queria respirar.
Cada toque dele parecia um incêndio controlado, queimando só nas bordas, sem destruir — pelo menos, não ainda. O peito dele subia e descia rápido contra o meu, e eu podia sentir o corpo dele inteiro vibrando numa intensidade que quase machucava.
— Samuel… — tentei dizer, mas ele mordeu meu lábio, arrancando de mim um gemido involuntário.
As mãos dele desceram pela minha cintura com uma segurança assustadora, firme, quase possessiva. Ele me puxou pro colo como se não houvesse mais espaço no carro para qualquer outra distância. A respiração dele batia quente no meu pescoço, misturada ao perfume forte que eu já conhecia e que sempre me deixava mais vulnerável do que eu admitia.
— Você me provoca de um jeito que ninguém nunca provocou — ele murmurou no meu ouvido, com a voz rouca, carregada de verdade crua. — Eu te quero de um jeito que chega a doer.
A frase atravessou meu corpo inteiro.
Eu tremi.
Eu queria.
Eu queria tanto que doía também.
Os dedos dele deslizaram pelo meu pescoço, descendo pela clavícula, e o toque dele era tão preciso que parecia que ele já sabia exatamente onde minha pele queria ser tocada. Meu corpo respondia sem hesitar, sem racionalizar, sem questionar. Era como se existisse um fio invisível puxando a gente um pro outro.
A temperatura do carro subiu rápido.
O ar ficou espesso.
A respiração dele virou um tipo de confissão abafada no meu ombro.
E então… tudo parou.
O corpo dele se enrijeceu de repente.
As mãos, que antes estavam quentes e firmes, ficaram trêmulas.
A respiração perdeu o ritmo.
A cabeça dele caiu no meu ombro como se tivesse sido desligado.
— Samuel? — chamei baixo, tentando entender.
Nada.
Só um tremor leve.
E então eu ouvi.
Um som engasgado, quase imperceptível, vindo do fundo da garganta dele.
Ele estava chorando.
Eu gelei.
Queria falar algo, mas não sabia o quê. Só consegui colocar uma mão na nuca dele, devagar, tentando afastar o rosto dele pra olhar. Mas ele me segurou com força, como se tivesse medo de ser visto naquele estado.
— Desculpa… — ele murmurou contra minha pele, a voz quebrada. — Me perdoa, Yuri…
Minha respiração travou.
— Do quê? — perguntei, sentindo meu estômago cair. — O que você fez?
Ele levantou o rosto.
As lágrimas já estavam derramando.
Os olhos vermelhos, brilhando como vidro molhado.
— Eu devia ter te protegido — ele disse, num fio de voz. — Eu devia ter feito alguma coisa. Eu devia…
Ele se interrompeu, apertando os olhos, respirando rápido demais. O peito dele parecia pequeno demais pra suportar o que estava sentindo.
— Proteger? Samuel… proteger do quê?
Ele abriu os olhos, e o desespero que eu vi neles fez meu coração despencar.
— De tudo! — gritou, batendo o punho no volante.
O som seco ecoou no carro.
Eu estremeci.
Ele percebeu.
E chorou mais forte.
— Eu sempre estrago tudo, Yuri… tudo que eu toco, eu destruo. E agora tô te destruindo também…
A última frase saiu quase sem voz.
E ali… naquele instante… eu percebi que nada daquilo era sobre o que tinha acontecido na festa.
Era sobre algo muito mais profundo.
Algo quebrado dentro dele.
Algo antigo.
Algo que eu ainda não conhecia.
E o pior?
Aquilo era só o começo.
O carro parecia pequeno demais para tudo que estava acontecendo entre nós. O mundo lá fora seguia vivo — carros passando ao longe, um cachorro latindo na rua de baixo, música ainda vazando da casa da Mônica — mas aqui dentro… estava só eu e ele. E o coração dele batendo rápido demais, quase como se pedisse socorro.
O choro do Samuel não era bonito.
Não era daqueles silenciosos, discretos, cinematográficos.
Era um choro pesado, preso, entalado há anos.
E quando a cabeça dele voltou a cair no meu ombro, não porque queria me seduzir, mas porque parecia exausto demais pra se sustentar… alguma coisa dentro de mim se desfez também.
— Ei… — murmurei, passando a mão na nuca dele, sentindo o cabelo quente, úmido. — Olha pra mim.
Ele não olhou.
O que só deixava tudo ainda mais difícil.
— Samuel… — insisti, tocando de leve o queixo dele com duas pontas de dedo.
Dessa vez, ele levantou o rosto. Devagar. Como se cada movimento machucasse. As lágrimas escorriam sem controle, riscavam o rosto dele, mas não apagavam nada — pelo contrário, só deixavam mais evidente aquele homem que escondia mais dores do que deixava transparecer.
— Eu não devia ter deixado você sozinho lá dentro — ele disse, finalmente. — Eu devia ter ficado com você o tempo todo. Eu devia… eu devia…
— Ei. — coloquei minha mão sobre a da dele antes que ele começasse a tremer de novo. — Você não tem culpa de nada.
Ele riu, um riso curto, amargo, completamente fora de lugar.
Era o tipo de riso de quem não acredita em si mesmo nem por um minuto.
— Claro que tenho. — Ele limpou o rosto com as costas da mão, mas as lágrimas continuaram caindo. — O Eduardo apareceu pra te atacar, te diminuir, te fazer mal, e eu… eu não fiz porra nenhuma.
— Você me tirou da festa — respondi, firme. — Você me tirou de lá antes de eu fazer besteira. Antes de eu brigar. Antes de eu beber mais. Antes de eu cair. Isso é fazer alguma coisa.
Ele balançou a cabeça, como se rejeitasse minha tentativa de consolo.
— Eu devia ter te defendido.
— Você me defendeu — respondi, aproximando meu rosto do dele. — Quando você me puxou pra perto, quando você me tirou dali, quando você falou pra eu entrar no carro como se aquilo fosse a coisa mais urgente do mundo… você me defendeu, Samuel.
Os olhos dele se arregalaram um pouco.
Pouco, mas perceptível — como se aquela ideia nunca tivesse passado pela cabeça dele.
Eu respirei fundo.
E disse o que meu peito estava pedindo pra dizer há minutos.
— A forma como você cuida de mim… — continuei, numa voz baixa, quase um sussurro. — É uma defesa. O tempo todo. Mesmo quando você acha que não é.
Ele fechou os olhos.
Outra lágrima caiu.
Mas dessa vez… não era uma lágrima desesperada.
Era alívio.
O pescoço dele curvou um pouco, como se o peso que carregava estivesse finalmente escorregando dos ombros. Eu toquei o rosto dele de leve, passando o polegar pelas lágrimas, e senti quando ele inclinou a testa na minha, respirando fundo.
— Eu não quero te perder — ele confessou, baixinho.
Tão baixinho que parecia proibido.
Meu coração parou por um segundo.
A mão dele escorregou pela lateral do meu rosto até minha nuca, me puxando para mais perto. O nariz dele encostou no meu e eu pude sentir o ar quente da respiração dele misturado à minha.
— Eu não vou embora — respondi, quase sem voz. — Para de achar que vai me perder antes mesmo de me ter.
Ele abriu os olhos bem devagar.
E eu juro… nunca vi alguém olhar para mim daquele jeito.
Com medo.
Com desejo.
Com culpa.
Com esperança.
Tudo misturado.
— Eu não sei amar direito, Yuri — ele admitiu, como se aquilo fosse uma confissão grave. — Eu estrago tudo. Tudo mesmo.
— Então deixa eu aprender com você — respondi. — E você aprende comigo. A gente faz errado junto até fazer certo.
A respiração dele falhou.
— Você fala como se fosse fácil — ele murmurou.
— Não é — sorri de canto. — E é exatamente por isso que vale a pena.
Samuel encostou a cabeça no encosto do banco e riu daquele jeito quase incrédulo, passando a mão pelos cabelos como se tentasse se recompor. Os olhos ainda brilhavam, mas o desespero tinha diminuído. A tempestade dentro dele não tinha passado… mas já não parecia tão violenta.
Aos poucos, muito lentamente, ele voltou a me olhar.
E dessa vez, não foi com culpa.
Nem com medo.
Foi com… decisão.
Ele se inclinou pra frente, colocando uma das mãos no volante e a outra no meu rosto. Não havia pressa agora. Não havia urgência. Não havia aquela explosão descontrolada de antes.
O que havia…
Era cuidado.
E quando os lábios dele tocaram os meus outra vez, foi completamente diferente.
Se o primeiro beijo foi fome…
Esse era fome e gentileza.
Era “eu quero você” misturado com “eu preciso te tratar direito dessa vez”.
Eu derreti.
Porque esse beijo…
Esse sim…
Era o tipo de beijo que cria um problema.
E eu percebi, no exato momento em que nossos lábios se separaram por um segundo para respirar:
Nós dois já estávamos completamente perdidos um no outro.
E não tinha mais volta.
O beijo terminou devagar, como se nenhum dos dois tivesse coragem de soltar o outro de verdade. A boca dele ainda roçava a minha, macia, quente, trêmula — e eu senti… senti o exato segundo em que o corpo dele percebeu o que tinha acabado de fazer.
Samuel respirou fundo.
Depois respirou de novo.
Dessa vez mais rápido.
Mais curto.
Ele afastou a testa da minha, mas só alguns centímetros. O suficiente para me olhar diretamente, como se quisesse confirmar que eu ainda estava ali, que não tinha fugido, que não tinha me arrependido.
— Isso… — ele começou, tentando achar ar, voz, equilíbrio. — Isso vai dar merda, Yuri.
— Provavelmente — respondi, sem conseguir evitar o sorriso. — Mas eu não tô correndo.
Os olhos dele se apertaram de leve, como se aquele pequeno sorriso fosse perigoso demais, como se fosse acender nele algo que ele tentava segurar com as duas mãos.
Então ele falou, quase num sussurro:
— Você não sabe quem eu sou quando eu gosto… de verdade.
A frase me atravessou.
Não como ameaça.
Não como aviso.
Mas como confissão.
Ele passou a mão pelos cabelos, apoiou o cotovelo no volante, deixou o rosto enterrado na palma por alguns segundos. Eu fiquei olhando — a curva do ombro dele subindo e descendo rápido, a tensão da mandíbula, o peito arfando num ritmo irregular.
— Eu não sei se consigo te dar o que você merece — admitiu, sem olhar pra mim. — Eu não sei se consigo ser esse cara que você imagina.
Eu encostei minha mão no braço dele.
Bem devagar.
Quase pedindo permissão.
— Eu não quero o cara perfeito — respondi. — Eu quero você. Do jeito que você é.
Ele escorregou a mão pelo rosto, respirou com mais força e finalmente me encarou. Os olhos estavam vermelhos, mas firmes. O choro tinha secado, mas o que ficou… era mais honesto do que tudo que vimos antes.
— Eu tenho medo de te machucar — ele disse.
E não desviou os olhos.
Aquilo mexeu comigo de um jeito que eu não esperava.
— Eu sei — respondi. — Mas você já percebeu que, desde o começo, você é a única pessoa que tenta não me machucar?
Ele abriu a boca pra dizer alguma coisa, mas nenhuma palavra saiu.
Eu continuei:
— Todo mundo fala comigo como se eu fosse descartável. Você não. Você sempre me puxa quando acha que eu vou cair, sempre me tira do lugar quando vê que tô prestes a fazer besteira, sempre presta atenção no meu estado… até quando eu finjo que tá tudo bem.
Ele piscou devagar, com um ar de quem estava absorvendo cada palavra como se fossem coisas que ele nunca imaginou ouvir.
— Eu faço isso porque eu… — ele parou, como se a frase tivesse batido em uma parede interna. — Porque eu não consigo ver você se ferrando.
— Então continua — murmurei. — Continua fazendo o que você já faz.
Silêncio.
Um silêncio tão forte que parecia ter forma.
E aí… algo mudou no olhar dele.
Como se uma ficha tivesse caído.
Como se ele estivesse, pela primeira vez, acreditando que não ia destruir tudo só por existir.
Ele se aproximou de novo.
Dessa vez, não pra me beijar.
Mas pra encostar a testa na minha, bem leve, bem suave.
Os olhos dele fechados.
A respiração quente encostando na minha boca sem tocar.
— Eu preciso tentar fazer isso direito — ele sussurrou, tão baixo que eu quase não ouvi. — Se for pra ter você… eu preciso tentar fazer tudo… diferente.
Aquela frase me desmontou.
Eu senti meu peito ficar pequeno demais pra segurar o que crescia dentro de mim. Samuel não estava dizendo que ia me amar. Não estava prometendo nada impossível. Não estava pintando futuro.
Ele só estava prometendo tentar.
E era exatamente isso que eu queria.
Ele abriu os olhos devagar.
— Me promete uma coisa — pediu. — Se eu fizer merda… você me fala. Na hora. Me puxa de volta. Me dá um soco, se precisar. Mas não some.
Eu sorri, mesmo com o coração acelerado.
— Eu não vou sumir.
— Promete? — ele insistiu, aproximando a mão da minha, os dedos quase tocando os meus, como se estivesse pedindo algo maior do que parecia.
— Prometo.
Os dedos dele finalmente encostaram nos meus. Uma ligação pequena, mas tão significativa que quase me tirou o ar. Ele entrelaçou nossas mãos devagar, como se estivesse experimentando a ideia de me segurar de um jeito novo.
Samuel respirou fundo.
E disse, com a voz mais sincera da noite:
— Então eu vou tentar. Por nós dois.
E antes que eu pudesse responder, ele apertou minha mão com força, como se aquele gesto fosse a primeira pedra de algo que nenhum dos dois sabia como construir.
Mas pela primeira vez…
não parecia impossível.
A chuva batia fraquinha no vidro do carro. A rua estava quase silenciosa e assim decidimos passar para o banco de trás e de forma apertada, deitamos abraçados.
Samuel estava me abraçando enquanto eu enterrava meu rosto em seu peito sentindo seu calor.
Ele dormiu, e aos poucos, sem perceber, o cansaço foi me vencendo também. A última coisa que lembro foi o barulho da respiração dele, o som calmo de alguém que, por alguns minutos, parecia em paz.
Quando abri os olhos de novo, tudo estava meio embaçado. A cabeça latejava.
Levei um segundo pra perceber onde eu tava. Samuel ainda dormia, encostado em mim, e foi aí que alguém bateu no vidro, me fazendo pular no banco.
— Acorda, casalzinho! — a voz da Mônica soou do outro lado, debochada, divertida.
Samuel abriu os olhos assustado, ainda meio perdido. Eu pisquei, tentando entender o que estava acontecendo, até ver o rosto dela rindo pela janela.
— Safadinhos, hein? — ela continuou, abrindo um sorrisão. — Já estão começando o relacionamento no banco de trás do carro?
Samuel se apressou em abrir a porta, rindo sem graça, o rosto corado.
— A gente só dormiu, Mônica… — ele disse, a voz ainda rouca.
Mônica riu, ela estava rindo da nossa cara, enquanto Samuel tentava se recompor do susto de ter acordado no carro. Eu senti o corpo dele se mexendo devagar, como se o cérebro tivesse acordado antes do resto.
Ele piscava, ainda meio torto de sono, e eu ainda estava com a marca quente do rosto dele na minha perna.
— Vocês dois são uma figura… — Mônica disse, com aquele ar sapeca. — Dormir no carro? No frio? Grudados assim? Pelo amor de Deus, vocês querem que eu anuncie casamento também?
Eu fiquei sem graça.
Samuel arregalou os olhos.
— A gente só… — ele começou.
— Dormiram — ela completou, balançando a cabeça com ar malicioso. — Claro. Eu vi.
Samuel riu, sem graça nenhuma.
Mas antes que eu pudesse entrar na conversa, aconteceu aquilo.
O braço dela encostou em Samuel.
O arrepio que percorreu o rosto dela.
O olhar que sumiu por um segundo.
E como se o mundo tivesse se desligado por um momento, ela disse:
— Às vezes… certas almas se encontram pra curar feridas antigas. Mas… nem todas aprendem a tempo o que vieram fazer aqui.
Foi rápido.
Foi estranho.
Foi profundo demais.
E totalmente fora do tom da brincadeira.
Fiquei olhando pra ela sem entender.
Samuel franziu a testa, confuso.
Mas então ela piscou rápido, respirou fundo e voltou a sorrir, como se nada tivesse acontecido.
— Bom, agora chega de papo cabeça, né? — ela brincou, voltando ao tom alegre. — Vai descansar, menino. E cuida bem desse médico aí.
— Pode deixar, Mônica — Samuel respondeu, ainda com um sorriso meio forçado.
Nos despedimos e seguimos até o carro.
Samuel ainda segurava minha mão quando deu partida no carro.
O som do motor preencheu o silêncio que existia entre nós, mas de um jeito diferente agora — não era um silêncio desconfortável, nem pesado. Era um silêncio... vivo. Cheio de algo novo que nenhum dos dois ousava nomear.
A rua estava quase vazia, apenas alguns postes iluminando a madrugada. A luz amarela vinha pela janela e batia no rosto dele enquanto dirigia.
Eu observava isso em silêncio — a forma como a mandíbula dele relaxava, como o olhar dele parecia mais focado, menos perdido.
Ele ainda pensava.
Muito.
Eu via isso no movimento sutil do dedo polegar passando no meu, num ritmo quase inconsciente, como se manter contato fosse a única coisa que o mantinha ancorado.
— Você tá bem? — perguntei, quebrando devagar o silêncio.
Ele respirou fundo, sem soltar minha mão.
— Tô… tentando — respondeu. — Tentando não deixar a cabeça ferrar tudo.
Eu sorri de canto.
— Você fala como se amar alguém fosse um crime.
Ele não desviou os olhos da rua, mas respondeu na mesma hora:
— Do jeito que eu sinto… às vezes parece mesmo.
Sua sinceridade me arrepiou.
Samuel não era covarde. Não era alguém que fugia. Mas quando se tratava de sentimentos… ele parecia pisar em um campo minado dentro dele mesmo.
— O que você sente? — perguntei, baixinho.
Ele engoliu seco.
O aperto na minha mão ficou um pouco mais firme.
— Tudo — respondeu. — Rápido demais. Forte demais. Intenso demais.
Pausa.
— E eu tenho medo de isso… me engolir. Ou pior… engolir você.
A rua estava silenciosa, mas dentro de mim tudo gritava.
— Ei… — falei, desviando minha mão apenas para tocar o rosto dele. — Não é você que vai me engolir, Samuel. Eu corro atrás de problema desde que nasci. Eu consigo lidar com você.
Ele soltou uma risada curta, meio incrédula, meio emocionada.
— É a coisa mais idiota e mais bonita que eu já ouvi…
— Bem-vindo ao combo Yuri.
Ele riu de novo. Dessa vez, com a respiração quente, mais leve, mais sincera. Aquele som me atravessou inteiro.
— Só tenta uma coisa — pedi. — Não foge de mim quando sentir demais.
Samuel desviou o olhar da pista por um instante e me encarou.
— Eu não vou fugir — prometeu. — Nem se eu quiser.
O jeito que ele disse aquilo…
não era promessa vazia.
Era tipo um voto.
Algo que saiu do fundo dele, quase sem controle.
E aquilo mexeu comigo.
Muito.
Chegamos na minha casa.
Ele pediu pra dormir comigo — não com o tom de quem quer sexo, mas com o tom de quem precisa não ficar sozinho.
Eu disse sim.
O banho foi lento, silencioso, íntimo.
Ele encostava a testa no meu ombro enquanto eu lavava o cabelo dele.
O corpo dele relaxava toda vez que eu tocava.
A cueca que dei pra ele ficou meio larga, e ele riu, dizendo que eu comprava tudo grande demais.
Quando deitamos, ele encostou o rosto no meu peito, respirando ali como se o mundo estivesse finalmente calmo.
Samuel deitou de lado, puxando a coberta até a cintura.
Eu também me ajeitei, mas antes que eu pudesse me afastar para dar espaço pra ele se acomodar, o braço dele veio por cima da minha cintura — espontâneo, rápido, como um reflexo.
— Não vai pra longe — ele murmurou.
A voz estava baixa, arrastada, quase no sono.
Mas verdadeira.
Eu sorri de leve e aproximei minha testa da dele, sentindo o toque quente, suave. Ele suspirou fundo, como se só aquilo já acalmasse alguma tormenta interna.
— Você tá tremendo — comentei.
— Eu sempre tremo… quando alguma coisa importa.
A sinceridade dele me desmontou.
Coloquei minha mão sobre o peito dele.
O coração batia rápido, mas não de ansiedade — era outra coisa.
Era afeto.
Era entrega.
Era medo misturado com vontade.
— Samuel… — comecei.
— Shh… — ele pediu, abrindo os olhos só um pouquinho. — Só fica. Me deixa dormir assim… um pouquinho só… desse jeito.
O braço dele me puxou mais, encaixando minha cabeça no peito dele.
O cheiro dele — sabonete, chuva e perfume — ficou gravado na minha pele.
A respiração dele foi desacelerando.
Primeiro um pouco.
Depois mais.
Até que eu senti…
o corpo dele finalmente soltar.
Foi como se ele tivesse passado a vida inteira dormindo com o corpo em alerta — e só ali, pela primeira vez, fosse permitido relaxar.
Os dedos dele escorregaram devagar pelo meu braço, como se ele estivesse desenhando linhas de memória na minha pele.
Depois pararam.
A mão dele caiu na minha cintura.
O corpo dele pesou.
E eu percebi que ele tinha dormido.
Dormido mesmo.
Profundamente.
Confiando em mim de um jeito que nenhuma palavra descrevia.
Eu fiquei algum tempo só observando.
O peito dele subindo e descendo.
A boca entreaberta.
O cenho relaxado — sem medo, sem raiva, sem dor.
Pela primeira vez, Samuel parecia… em paz.
E aquilo me pegou num lugar que eu não esperava.
Passei a mão devagar pelos cabelos dele.
Ele não acordou.
Só murmurou algo baixinho, quase inaudível:
— Não foge…
Meu coração apertou.
— Eu tô aqui — sussurrei. — Eu não vou lugar nenhum.
E dormi também.
Abraçado nele.
Sentindo o peso quente do corpo dele grudado no meu.
A chuva lá fora.
O cheiro dele no meu travesseiro.
E a certeza de que nada naquela noite tinha sido exagero:
Samuel só precisava de alguém que não soltasse a mão dele quando ele tremesse.