❄️ O ANOITECER SOBRE GOLDEN
Eu sempre amei o silêncio antes da neve.
Aquele instante em que o ar parece suspenso, pesado, como se estivesse esperando que algo inevitável acontecesse. Ethan diz que eu romantizo demais as coisas, mas quando a estrada para Golden começou a desaparecer sob a primeira camada branca, eu soube que aquele fim de ano não seria apenas mais uma viagem… e eu não sabia se isso me acalmava ou assustava.
Kicking Horse Mountain Resort surgiu entre as árvores como um refúgio cuidadosamente esculpido, madeira quente, vidro refletindo montanhas afiadas como lâminas. Ethan dirigia com aquele foco tranquilo dele, maxilar firme, barba aparada, olhos azul-claro semicerrados enquanto examinava o mapa na tela do carro. O casaco de lã moldava os ombros largos, e as mãos — sempre tão seguras — descansavam no volante com a familiaridade de quem raramente perde o controle.
Cinco anos de casamento.
Sem filhos — por escolha dele, embora eu nunca admitisse o quanto parte de mim desejava ouvir risos dentro de casa. Ainda assim, éramos felizes. Estáveis. Previsíveis. Um casal tão coordenado que às vezes parecia coreografado.
E talvez fosse exatamente isso que me incomodava.
— Você está quieta — ele comentou, sem tirar os olhos da estrada.
— Só admirando — respondi, observando a paisagem que crescia em volta de nós como um mural gelado. — Faz tempo que não viajamos só nós dois.
— É. — Ele sorriu de lado, aquele sorriso pequeno que só aparece quando ele relaxa. — A gente merece.
Merecíamos mesmo.
Trabalhávamos demais.
Vivíamos cercados por metas, clientes, prazos, renovações.
E Ethan sempre dizia que adrenalina purificava o espírito, então escolhemos Golden para fechar o ano com algo mais intenso do que champanhe e fogos de artifício.
Quando estacionamos no resort, o vento carregou meu cabelo — longo, ondulado, castanho escuro — como se tentasse arrancá-lo do rosto. Reuni as mechas atrás da orelha, mas elas sempre encontravam caminho de volta.
As pessoas dizem que meus cabelos têm vida própria.
E às vezes sinto que têm realmente — como se guardassem memórias que eu não pedi para lembrar.
A recepção era quente, aconchegante, luz baixa refletida no piso de madeira. Ethan se aproximou do balcão com aquela postura impecável, e eu o segui observando o contraste entre nós: ele todo exatidão, linhas retas, previsibilidade; eu, mais suave, nuances, sombras ao redor dos olhos que deixavam meu olhar sempre um pouco mais profundo do que eu gostaria.
— Buscamos algo… fora do comum — Ethan disse à recepcionista, apoiando um dos braços no balcão. — Trilhas mais desafiadoras, descidas fora da rota.
Ela sorriu, e eu percebi o brilho de interesse imediato. Ethan sempre teve esse efeito sutil sobre as pessoas — presença sólida, educada, confiante sem precisar parecer arrogante.
— Temos um instrutor excelente para isso. Ele trabalha com áreas menos convencionais da montanha. — A mulher digitou algo na tela. — Picard. Caleb Picard.
O nome caiu como uma explosão silenciosa dentro de mim.
Senti o estômago se contrair, uma onda quente subindo pela garganta antes de eu entender por quê.
Picard.
A vida às vezes tem um senso de humor cruel.
— Zoe? — Ethan tocou meu cotovelo. — Tudo bem?
Eu sorri. Claro que sorri. O sorriso discreto que todo mundo conhece — aquele que faz meus lábios parecerem mais definidos, firmes, mas nunca exagerados.
O sorriso de quem aprendeu a esconder tempestades.
— Só lembrei de um nome parecido — menti.
Ethan não percebeu.
Ele nunca percebe quando algo é grande demais para caber dentro de palavras.
Recebemos o cartão do chalé e subimos a colina até a pequena casa de madeira envolta em pinheiros. Por dentro, o lugar era perfeito: lareira de pedra, tapetes felpudos, janelas amplas revelando a vastidão branca.
Ethan caminhou até a parede de vidro, empurrou a cortina, inspirou fundo.
Eu o observei em silêncio — a postura ereta, o pescoço forte, o cabelo castanho curto levemente iluminado pelas lâmpadas internas. Era bonito.
Era meu.
E naquele momento, parte de mim desejou que isso fosse suficiente para me manter em paz.
Mas há nomes que nunca morrem.
Há histórias que não são páginas viradas, mas feridas cobertas.
E quando ouvi alguém chamar “Zoe?” no saguão, alguns minutos mais tarde, minha pele inteira reagiu antes que minha mente processasse.
Virei-me devagar.
E lá estava ele.
Caleb.
Caleb com o mesmo porte firme de anos atrás, talvez ainda mais marcado; ombros amplos sob o casaco grosso, barba curta, olhos verdes com aquela intensidade quase animal que me prendia mesmo quando eu queria fugir.
O cabelo estava preso atrás da cabeça, como sempre ficava quando ele guiava grupos pela montanha.
E quando seu olhar encontrou o meu, senti o frio entrar e incendiar ao mesmo tempo.
A vida inteira coube em um segundo.
— Você? — minha voz saiu baixa, quase inaudível.
Caleb sorriu de um jeito que só ele sabia sorrir: como quem reconhece não um rosto… mas uma alma.
— Que surpresa, Zoe.
Ethan se aproximou atrás de mim, oferecendo a mão a ele.
— Ethan Lockwood. E você deve ser o instrutor que o resort recomendou.
Caleb apertou sua mão.
— Sou Caleb Picard. — Depois, olhou para mim de um jeito que Ethan não soube decifrar. — Antigos conhecidos.
Meu coração martelou tão forte que senti o sangue vibrar nos lábios.
Ethan sorriu.
Eu sorri.
E Caleb… Caleb observou.
Observou como um predador observa dois animais que ainda não entenderam quem está realmente em desvantagem.
A neve caía lá fora.
Lenta.
Linda.
E cruel.
E eu soube, sem admitir em voz alta:
A viagem que deveria nos aproximar acabava de se tornar meu maior teste.
❄️ O RETORNO DE QUEM NUNCA FOI EMBORA
Eu tentei agir normalmente.
Juro que tentei.
Mas quando deixamos a recepção e seguimos para o chalé, minhas pernas ainda tremiam, e não era pelo frio. Era pela sensação estranha, quase proibida, de ver Caleb vivo, presente, sólido… depois de tantos anos tentando enterrar o que sentíamos.
E o que fizemos.
Ethan caminhava à minha frente pela trilha iluminada do resort. A neve recém-caída absorvia som, fazendo tudo parecer acolchoado, quieto demais. O casaco dele balançava em um ritmo firme, seguro; sua respiração criava pequenas nuvens regulares. Ele era a ordem do meu mundo. A estabilidade. O porto.
E eu nunca me senti tão instável.
Quando chegamos ao chalé, Ethan pendurou as luvas, tirou o gorro e sacudiu a neve do cabelo como se nada extraordinário tivesse acontecido nos últimos minutos.
— Ele parece gente boa — comentou casualmente, abrindo uma garrafa de vinho. — E conhece bem a região. Deve ser divertido ter um instrutor com experiência real.
Meu coração apertou.
Se ele soubesse.
Se ele tivesse visto o modo como Caleb me olhou.
Não como um instrutor.
Não como um conhecido.
Mas como alguém que reconhece uma marca que ele mesmo deixou.
— Zoe? — Ethan me ofereceu uma taça. — Você está realmente estranha desde que chegamos.
— Estou cansada — respondi, séria demais. — O voo, a estrada…
Ethan não insistiu.
Parte de mim amava isso nele.
Parte de mim odiava.
Depois do jantar leve, decidimos caminhar pela vila do resort. As luzes amareladas pendiam entre os telhados, criando um clima de filme natalino: famílias rindo, música suave, o cheiro de chocolate quente escapando das portas entreabertas.
E eu me sentia à beira de um penhasco emocional.
O bar estava lotado, mas aconchegante: madeira escura, lareiras, gente tirando a neve das botas. Ethan foi buscar drinks, e eu me sentei perto da janela.
Por um instante, fechei os olhos e tentei reencontrar meu centro.
Mas quando os abri…
Lá estava ele.
Caleb.
Encostado no balcão do bar, segurando um copo de whisky, olhando para mim como se o tempo tivesse parado só para que ele pudesse me estudar em silêncio.
Meu corpo respondeu antes da minha mente.
Um arrepio subiu pelas minhas costas, quente, traidor.
Ele não sorriu.
Não acenou.
Apenas me observou — de cima a baixo, depois direito para os meus olhos — como se estivesse confirmando algo que já sabia.
E naqueles poucos segundos, percebi:
Caleb percebeu que Ethan desconhece tudo.
E ele pretendia usar isso.
Quando Ethan voltou com os drinks, Caleb desviou o olhar — rápido, elegante, como se nunca tivesse me analisado.
— Saúde — Ethan disse, entregando-me o copo.
Eu forcei um sorriso.
No reflexo da janela, atrás do meu ombro, vi Caleb indo embora.
Mas antes de sair, ele olhou para trás.
Só uma vez.
Direto para mim.
E havia algo naquele olhar… algo antigo, afiado, como faca deslizando sob a pele: lembrança, saudade, posse, desafio.
E acima de tudo:
certeza de que eu não tinha o esquecido.
Mesmo que eu quisesse.
Fomos dormir cedo. Ethan estava alegre, leve, animado com as descidas do dia seguinte. Eu me enrolei nos lençóis, tentando domar a turbulência interna.
Mas a verdade pulsava quente no meu peito:
Caleb não era apenas uma pessoa do meu passado.
Caleb era o capítulo que eu nunca terminei de ler — e que agora estava sendo reescrito diante de mim.
❄️ NEVE, OLHARES E O PRIMEIRO CIÚME
Acordei com o som distante de passos no corredor do chalé. Ethan se movia silenciosamente, como sempre — ele nunca fazia barulho demais, nunca ocupava espaço além do que achava que devia.
Eu me levantei devagar, ainda sentindo o peso indistinto do que acontecera na noite anterior. Caleb no bar. O olhar. A lembrança. As memórias antigas surgindo como se tivessem hiberando sob minha pele e despertado com o primeiro toque do frio.
Quando saí do quarto, Ethan já preparava café. O vapor subia da caneca entre suas mãos grandes e firmes, e aquele cheiro forte, familiar, deveria ter me confortado. Mas meu corpo ainda estava inquieto, tenso, um pouco… eletrizado demais.
— Dormiu bem? — ele perguntou.
— Ahã — menti, sentando à mesa.
Ele me observou por alguns segundos longos demais. Ethan sempre foi excelente em ler planilhas, contratos, números — mas emoções? As minhas, especialmente? Eram um idioma que ele sempre interpretou parcialmente. E talvez isso sempre tenha sido conveniente para mim.
Vestimos as camadas térmicas, os casacos, as botas, e caminhamos até o ponto de encontro. A neve fresca estalava sob nossos pés como se a montanha estivesse respirando sob nós.
E lá estava ele.
Caleb.
A alguns metros, encostado no corrimão da plataforma de esqui, braços cruzados sobre o peito largo, jaqueta aberta, revelando o tecido escuro colado ao torso definido. O cabelo preso para trás deixava o rosto mais marcado — a mandíbula forte, a barba curta, os olhos verdes intensos demais para o horário da manhã.
Ele me viu primeiro.
E o modo como me viu…
Deveria ser proibido.
Foi rápido, sutil, mas arrebatador — um reconhecimento que parecia tocar meu corpo inteiro antes de alcançar minha mente.
— Bom dia — Ethan disse, aproximando-se com simpatia controlada.
— Bom dia — Caleb respondeu, mas seus olhos… continuaram em mim.
Eu engoli seco.
— Preparados para a adrenalina? — ele perguntou.
— Com certeza — Ethan respondeu, animado. Ele adorava desafios; não via ameaça em nada. — Zoe também adora aventura.
Caleb sorriu de canto.
— Ah, eu sei.
Ethan não notou o tom.
Eu senti na espinha.
Seguimos para a primeira plataforma de subida. O vento gelado batia no meu rosto, fazendo meu cabelo ondulado chicotear pelas laterais do capuz. Caleb caminhava à minha direita, Ethan à minha esquerda — e, pela primeira vez em muito tempo, senti como se estivesse exatamente no centro de duas forças completamente diferentes.
Quando entramos no teleférico, Caleb sentou ao meu lado. Ethan ficou do outro lado do assento, mas o espaço entre nós parecia menor do que o silêncio que começava a se acumular.
A vista era hipnotizante: vales brancos, árvores embaladas em gelo, picos iluminados por um sol tímido. Mas eu não conseguia apreciar a paisagem; estava consciente demais do corpo de Caleb quase encostando no meu. Do calor que irradiava dele, quase imperceptível — mas presente.
— Como você tem estado, Zoe? — ele perguntou baixinho, sem olhar para Ethan.
— Bem — respondi, usando o tom mais neutro possível. — A vida segue.
— É — ele murmurou. — Mas algumas coisas não seguem tão fácil assim, né?
Meu coração disparou.
Ethan, distraído pelo mapa das trilhas, não ouviu.
Mas Caleb sabia exatamente onde mirar.
E como.
Quando descemos do teleférico, a neve estava perfeita para a primeira pista, mas Caleb nos guiou para além do caminho marcado. Era o que havíamos pedido — adrenalina, risco, algo incomum — e ele era excelente nisso.
Mas não era só isso.
Era a forma como ele falava:
— Cuidado aqui, Zoe — sua mão roçando a minha enquanto ajustava minha postura. — Seu centro de gravidade sempre foi um pouco mais… teimoso.
Ethan olhou na hora.
Não disse nada.
Mas seus olhos ficaram mais estreitos, mais atentos.
Descemos. A sensação era viciante — vento no rosto, velocidade absurda, o som cortante dos esquis rasgando a neve. Ethan estava animado, competitivo, quase adolescente. Eu deveria me sentir igualmente leve.
Mas cada vez que Caleb deslizou ao meu lado, cortando a pista com aquela precisão quase arrogante, algo antigo reacendeu dentro de mim.
No final da descida, paramos para respirar. Ethan ria, exausto. Eu sorri… mas não era leveza. Era tensão mascarada.
Então Caleb se aproximou de mim — perto demais, íntimo demais — e murmurou:
— Sua desenvoltura não mudou nada.
Um segundo. Um olhar. Um impacto direto entre nós.
Ethan percebeu. Eu senti.
Aquele foi o primeiro instante em que vi algo quebrar no meu marido: um microssegundo de insegurança atravessando sua postura perfeita.
E ali, na neve brilhante da manhã, um pensamento proibido atravessou minha mente como uma lâmina:
Será que Ethan está começando a entender que há coisas em mim que ele nunca tocou?
Porque Caleb… Caleb já tocou todas.
❄️ O OUTRO LADO DA MONTANHA
Se existe um lugar onde a verdade aparece, é na altitude.
O ar fica fino, a visão mais nítida, e todas as máscaras se tornam pesadas demais para carregar.
Caleb nos guiava pela lateral menos explorada da montanha, onde o vento assobiava entre as árvores tortas, e a neve parecia intocada — aquele branco que dá até vergonha de riscar com a lâmina dos esquis.
— Vocês vão gostar disso — ele disse, virando o rosto apenas o suficiente para que eu pegasse o sorriso enviesado. — É mais… intenso.
Intenso.
A palavra caiu direto no centro do meu peito.
Ethan, ao meu lado, não percebeu a ironia. Estava animado, competitivo, tirando fotos, traçando caminhos imaginários na neve com a ponta da luva.
— Pode mandar — ele disse. — A gente aguenta qualquer coisa.
Caleb arqueou uma sobrancelha.
Um gesto mínimo, mas cheio de significado — como se estivesse testando quanto “qualquer coisa” Ethan realmente aguentava.
Eu não sabia se queria descobrir.
A trilha fora da rota era mais inclinada do que eu esperava. Árvores densas, neve fofa demais, e aquela sensação constante de que a montanha observava cada movimento nosso.
Caleb estava sempre um pouco à frente — não por necessidade, mas por postura.
Ele liderava como quem sempre liderou: firme, decidido, perigoso.
— Cuidado nesse trecho — ele avisou, tocando levemente minha cintura para ajustar meu equilíbrio. — Você tende a abrir demais o quadril quando está nervosa.
Meu corpo respondeu antes da minha mente.
— Nervosa? — perguntei, tentando parecer firme.
— Claro — ele murmurou baixo, só para mim. — Eu estou aqui.
Meu estômago se revirou. Ethan, alguns metros atrás, tentou alcançar o ritmo — mas não viu a troca de olhares. Ouviu apenas minhas risadas nervosas, e isso já foi suficiente para plantar a primeira semente de dúvida.
Quando finalmente chegamos ao vale, a vista era absurda — picos azuis, nuvens cortando as encostas como véus, e uma descida que parecia despencar direto para o centro da Terra.
— Vamos descer por aqui? — Ethan perguntou, empolgado.
— Se tiver coragem — Caleb respondeu, dando um empurrão leve no chão com o bastão. — É a rota mais rápida… e a mais selvagem.
— Selvagem é bom — Ethan disse, abrindo um sorriso.
Caleb olhou para ele. Depois olhou para mim.
E naquele instante percebi: ele estava estudando o homem com quem casei. Medindo. Pesando. Comparando.
E tinham coisas que eu nunca quis que ele comparasse.
Descemos.
A velocidade era insana. O vento cortava meu rosto como facas geladas; a neve levantava atrás de nós em ondas brancas. Caleb deslizava com precisão animal, Ethan tentava acompanhar, e eu… eu flutuava entre os dois, consciente demais de cada centímetro de distância que nos separava.
Uma parte de mim adorava aquilo. A adrenalina. A liberdade. O perigo.
E outra parte sussurrava: você está cavando sua própria cova.
Paramos na base de um penhasco natural, onde a neve acumulada parecia profunda demais. Caleb ergueu o rosto para o céu.
Foi aí que a mudança aconteceu.
Uma rajada de vento violenta desceu pela montanha, trazendo consigo flocos densos, rápidos — neve pesada, agressiva.
Eu não percebi de imediato.
Mas Caleb percebeu.
— A tempestade chegou mais cedo — ele disse, sério. — Não era para começar agora.
Ethan ergueu o rosto.
— Dá pra voltar?
Caleb avaliou o céu, a luz mudando, o horizonte engolido por branco.
— Não por cima. Vamos precisar cortar pelo outro lado.
Eu senti o coração disparar.
Aquele outro lado — eu lembrava — era mais traiçoeiro. Mais isolado. E mais perigoso.
Mas não havia escolha.
Seguimos rápido, quase correndo sobre a neve. A visibilidade caiu pela metade em minutos. E então, através do vento cortante, Caleb apontou para uma estrutura de madeira escondida entre as árvores:
— Ali! Uma cabana. Vamos!
Corremos.
O frio parecia atravessar o casaco, entrando pelos ossos. Ethan segurou minha mão, apertando forte; Caleb abriu caminho à frente, empurrando galhos, abrindo trilha.
Quando finalmente entramos na cabana, a porta bateu atrás de nós com um estrondo.
Silêncio.
Respiração pesada.
E três pessoas presas num espaço pequeno demais para a história que carregavam.
A cabana tinha cheiro de madeira úmida e poeira. Havia uma lareira antiga, coberta por fuligem acumulada, e móveis velhos empilhados num canto. Ethan foi direto para a lareira, tentando reacender a vida dentro das pedras negras.
Eu tirei as luvas, esfregando as mãos para recuperar o calor.
E foi então que aconteceu.
Caleb se aproximou por trás — lento, inevitável — e sem tocar minha pele, sem encostar um dedo, aproximou a boca do meu ouvido e sussurrou:
— Você ainda lembra como enlouquecia comigo.
Meu corpo inteiro se contraiu.
Não de medo. E não apenas de desejo.
Mas de recordação.
Eu lembrava. De tudo.
Eu engoli em seco, incapaz de responder. Caleb deu um sorriso quase imperceptível e se afastou — mas seus olhos ficaram nos meus por tempo demais.
Atrás de nós, Ethan ainda lutava com a lareira. Mas eu senti — no modo como ele virou o rosto, no modo como ele nos observou rapidamente — que algo dentro dele começou a desconfiar.
A cabana estava ficando quente. Mas não pela lareira.
— Vamos ter que passar a noite aqui — Caleb anunciou. — A tempestade não vai ceder tão cedo.
Ethan suspirou, frustrado, mas assentiu.
Eu apenas fiquei ali, sentindo o ar pesado da cabana, o som do vento batendo nas paredes, e o peso de dois homens que conheciam partes diferentes de mim.
E a verdade inevitável apertou meu peito:
Eu não deveria estar tão consciente de Caleb. E Caleb não deveria estar tão consciente de mim.
Mas estávamos. E não havia mais retorno.
🌑 A CABANA E A PRIMEIRA FISSURA
A nevasca rugia do lado de fora como se a montanha estivesse viva, respirando pesado contra as paredes frágeis da cabana. A madeira tremia com o vento, e por um instante me perguntei se aquilo era mesmo proteção — ou apenas outra armadilha.
A lareira finalmente acendeu depois de vários minutos de esforço obstinado de Ethan. O fogo estalou, lançando um brilho quente sobre seu rosto — e por um instante, ele pareceu aliviado.
Parte de mim queria abraçar esse alívio. A outra parte… não conseguia chegar perto dele.
Tirei as botas molhadas, pendurei as luvas e me sentei perto do fogo, sentindo o calor começar a descongelar meus ossos. Ethan aproximou-se e apertou meu ombro carinhosamente, sem perceber quão rígida eu estava.
— Vamos conseguir passar a noite — ele disse com a voz firme, estável. — Amanhã cedo, voltamos para o resort.
Eu forcei um sorriso.
Caleb, do outro lado da cabana, encostado na mesa velha, me observava em silêncio. Não era um olhar invasivo. Era pior. Era conhecido.
Aquele olhar que atravessou anos.
Aquele olhar que me desarmava antes que eu percebesse a armadilha.
— Zoe — ele chamou, baixo, rouco. — Você está tremendo.
Eu não estava.
Ou talvez estivesse.
Não de frio.
Ethan não notou o tom. Não percebeu a tensão que cabia entre nós três com folga. Apenas mexeu na lenha, alimentando o fogo. Ele confiava. Ele sempre confiou demais.
E a confiança dele pesava sobre mim como gelo no peito.
Quando o calor finalmente tomou conta da cabana, Ethan arrastou dois colchões improvisados para perto da lareira. Ele estendeu mantas grossas por cima e me chamou com um sorriso gentil.
— Vamos ficar juntos aqui, amor. Vai ser mais quente assim.
Eu me deitei ao lado dele, sentindo seu braço envolver minha cintura, o corpo dele pressionando o meu com familiaridade.
Era aconchegante.
Era seguro.
Mas meus nervos estavam despertos por causa de outra presença.
Caleb permaneceu sentado perto da janela, de costas para nós, olhando o branco absoluto lá fora. A luz do fogo desenhava sombras densas em suas costas largas, no contorno firme dos ombros. Ele parecia feito de pedra — mas com uma tensão natural, como se estivesse sempre prestes a agir.
O silêncio se arrastou por longos minutos.
Então Ethan adormeceu.
E eu…
Eu não consegui.
O calor ao meu lado não apagava o calor errado, incômodo, perigoso que queimava no centro do meu peito.
Virei-me discretamente e encontrei Caleb ainda desperto. Me olhando.
Não de maneira explícita — mas com uma consciência absoluta de mim.
Meu coração falhou um batimento.
Ele fez um gesto com a cabeça, chamando-me em silêncio.
E eu, movida por algo que eu não queria conceber, levantei-me devagar para não acordar Ethan.
As tábuas rangiam sob meus pés. O vento gritava lá fora. O fogo crepitava, testemunha silenciosa.
Me aproximei de Caleb, que não se moveu até eu estar perto o bastante para sentir seu calor, seu perfume de pinho e neve, sua respiração tranquila demais para alguém que estava prestes a destruir um casamento.
— Não consegue dormir? — ele perguntou, voz baixa, grave.
— Não — respondi, quase num sussurro. — A cabeça está… cheia.
— A minha também. — Seus olhos percorreram meu rosto com uma calma que me desmontou. — Principalmente desde ontem.
Engoli em seco.
— Caleb, por favor…
— Você acha que eu voltei por acaso? — ele cortou, direto, preciso, cruel. — Zoe… eu nunca te superei.
Fechei os olhos por um segundo longo demais.
A confissão me acertou como um impacto físico. Eu deveria recuar. Eu sabia. Eu sabia.
Mas meu corpo — traidor — deu um passo à frente.
Caleb inclinou-se ligeiramente, o suficiente para a sombra do seu rosto cobrir parte do meu. Sua voz saiu suave, mas com uma força que me dissolveu:
— Você também lembra. Eu vi hoje. Nos seus olhos. No seu corpo. — Pausa curta. Quente. — Você lembra de tudo.
Minhas mãos tremeram.
Eu lembrava. Deus, eu lembrava de cada detalhe. De como ele me beijava como se o mundo estivesse acabando. De como ele segurava minha cintura como se fosse me perder a qualquer segundo. Da intensidade que me consumia e me deixava viva de um jeito que me assustava.
Tentei respirar.
— Caleb, eu… sou casada.
— E eu não te toquei — ele respondeu, baixo, firme. — Ainda assim… olha pra mim.
Eu olhei.
E senti o chão desaparecer.
A proximidade era um campo magnético do qual eu não conseguia escapar. Não houve toque. Não houve beijo. Não houve nada que pudesse ser chamado de traição física.
Mas a traição emocional… essa já ardia inteira na minha pele.
— Diga que não sente nada — ele pediu, suave como veneno. — Diga que me esqueceu.
Eu abri a boca. Mas nenhuma palavra saiu.
Nenhuma.
Caleb sorriu. Não de arrogância — mas de alguém que acabou de encontrar algo que achou que estava perdido.
— É isso. — Sua voz era quase um carinho. — Você ainda me sente.
E então…
Ethan se mexeu no colchão.
Eu recuei tão rápido que quase tropecei.
O coração saiu pela boca. Caleb apenas me observou. Em silêncio. Com aquele olhar que dizia tudo o que eu não podia admitir.
Voltei para perto de Ethan, deitando lentamente, controlando a respiração.
Mas o calor ao meu lado não apagava o incêndio que Caleb reacendeu.
A cabana estava quente demais. E eu, fria demais por dentro.
Porque pela primeira vez desde que reencontrei Caleb, eu entendi a profundidade do abismo:
Eu ainda amava meu marido. Mas parte de mim… parte de mim nunca deixou Caleb partir.
E agora, tudo isso ia colidir.
E eu estava no centro.
❄️ A MANHÃ DO SILÊNCIO QUE MACHUCA
Acordei antes de Ethan.
Ou talvez eu nem tivesse dormido. A madrugada inteira se arrastou num estado febril entre culpa, lembrança e algo que eu não tinha coragem de nomear. O céu ainda estava em tons azulados quando abri os olhos e senti o corpo de Ethan encostado ao meu, cálido, tranquilo… inocente.
E aquela inocência doía.
Saber o que eu carregava agora — saber que meu silêncio já tinha peso suficiente para quebrar ossos — me arrancou o ar do peito.
Desviei devagar, para não acordá-lo, e sentei perto da lareira apagada. A brasa final ainda emitia um calor fraco, quase suplicante. Coloquei as mãos sobre os joelhos e respirei fundo.
Foi quando ouvi passos lentos atrás de mim.
Olhei por cima do ombro.
Caleb estava acordado.
Em pé. Me olhando.
Não com desejo explícito, nem com provocação. Mas com aquela maldita familiaridade perigosa, como se ele soubesse exatamente o que estava acontecendo dentro de mim — porque acontecia dentro dele também.
— Dormiu? — ele perguntou, a voz baixa, arranhada de cansaço.
— Não muito — respondi.
— Eu também não.
Silêncio.
Ele se aproximou alguns passos, mas manteve distância. Caleb sabia brincar com limites.
Sabia quando avançar e quando recuar. E é por isso que ele sempre foi tão perigoso.
— Zoe — ele disse, e meu nome saiu como uma confissão — aquilo de ontem…
— Não vai acontecer de novo — respondi antes que ele terminasse.
Caleb inclinou a cabeça, e seus olhos verdes se estreitaram, não em irritação, mas em leitura profunda. Ele sempre soube me enxergar demais.
— Você acha que aconteceu? — ele perguntou, um canto da boca arqueando. — Porque, pra mim, a gente só… lembrou.
Meu coração bateu forte.
Eu abri a boca para retrucar, para negar, para erguer um muro que me protegesse de mim mesma — mas foi nesse instante que Ethan começou a se mexer.
Caleb deu um passo para trás. E silêncio caiu como neve espessa entre nós.
Quando Ethan acordou, seu sorriso estava mais curto. Sua voz, mais baixa. Seus olhos… diferentes.
— Dormiu bem? — perguntei, sabendo a resposta antes dela vir.
— Acho que sim — ele disse, mas a expressão contradizia a frase. — Tive sonhos estranhos.
O olhar dele passou rápido por Caleb, como uma sombra investigativa, discreta… mas presente.
Eu senti o estômago torcer.
Caleb apenas cruzou os braços e ficou olhando pela janela, oferecendo zero informações, zero emoções, zero brechas. Ele sabia controlar suas armas.
Ethan não.
Quando começamos a recolher nossas coisas para deixar a cabana, percebi que Ethan evitava me olhar por mais de dois segundos. Não era raiva. Não era ciúme. Era algo muito mais assustador: dúvida.
Uma dúvida que eu não sabia como tirar.
A caminhada de volta ao resort foi silenciosa. A tempestade tinha passado, mas o mundo ainda parecia apagado sob a luz branca da neve recente. Caleb liderava. Ethan ficava entre nós dois. Eu caminhava atrás, carregando o peso de dois homens e dois passados que de repente tinham se encontrado no presente.
A cada passo, a neve afundava sob minhas botas, e eu sentia a vida afundando junto.
Quando finalmente chegamos ao resort, Ethan mal esperou para tirar os esquis. Ele bateu nas botas para soltar a neve e disse sem olhar para mim:
— Eu vou tomar um banho quente. A noite foi longa.
— Eu também — respondi, delicada.
Mas ele já estava subindo as escadas do chalé.
Caleb ficou parado ao meu lado, quieto, respirando fundo o ar frio.
— Ele sabe — ele disse simplesmente.
— Não — eu respondi rápido demais. — Ele não ouviu nada. Ele estava dormindo.
Caleb deu um meio sorriso, cético.
— Zoe… você não precisa falar nada para ele sentir.
Meu peito apertou.
E então ele concluiu:
— E você também sabe que isso não acabou.
Eu fechei os olhos, desejando que o vento levasse aquela frase embora. Mas nenhuma tempestade é forte o suficiente para apagar verdades que queimam.
Caleb virou-se, caminhou alguns passos para longe e, antes de desaparecer na curva do caminho, disse:
— Mais tarde… me procure se quiser falar como adulta. Não como esposa assustada.
Meu corpo gelou.
Meu coração ferveu.
E no caminho de volta para o chalé, senti que uma rachadura real, profunda, irreversível havia nascido.
Não em Ethan. Em mim.
Porque eu não conseguia mais negar:
Eu ainda era duas versões de mim mesma. A que amava Ethan. E a que queimava por Caleb.
E agora… as duas tinham voltado a existir.
🌘 O HOMEM QUE BEBE, A MULHER QUE ARDE
Depois da volta silenciosa ao chalé, eu esperava que Ethan me chamasse para conversar. Que pedisse uma explicação. Que expressasse qualquer emoção — raiva, medo, dúvida, algo que eu pudesse segurar com as mãos e tentar consertar.
Mas ele fez o contrário.
Tomou banho. Trocou de roupa. E sem olhar para mim, anunciou:
— Eu… vou descer até o bar. Preciso esfriar a cabeça.
O sangue gelou nas minhas veias.
Ethan nunca “esfriava a cabeça”. Ele sempre a mantinha fria.
Eu dei um passo em sua direção.
— Ethan… você está chateado comigo?
Ele hesitou na porta. Ombros tensos. Mandíbula travada.
— Não sei — respondeu finalmente. — Eu só… preciso pensar. — Virou o rosto para o lado. — A gente conversa mais tarde.
E então saiu.
Assim. Fechando a porta devagar, como se tivesse medo de que qualquer movimento brusco quebrasse algo entre nós.
Mas aquilo já estava quebrado.
Eu fiquei parada no meio da sala, sentindo o silêncio do chalé pressionar meu peito, até que o peso se tornasse insuportável. Sentei-me no sofá e enterrei o rosto nas mãos.
Eu o amava. Eu sabia disso. Mas amar não impede rachaduras. E cada vez que eu tentava negar o que acontecera naquela cabana, mais real aquilo parecia.
Algum tempo depois, o frio lá fora pareceu me chamar. O céu estava claro, quase transparente, e as estrelas faiscavam sobre Golden como pontas de vidro.
Coloquei o casaco e as botas e desci até o deck externo do resort.
A vista dali era absurda — um vale inteiro inundado de neve, silhuetas de montanhas erguidas como catedrais escuras. O vento tocou meu rosto com gentileza; não era cruel como o vento da montanha. Era quase… acolhedor.
E mesmo assim, eu tremia.
Talvez fosse culpa. Talvez fosse medo. Talvez fosse… outra coisa.
A porta do deck rangeu.
E eu soube quem havia chegado antes de virar o rosto.
Caleb.
Ele caminhou até mim com passos lentos, seguros, o peso do casaco moldando ainda mais seus ombros largos. A barba curta capturava pequenos cristais de gelo. Os olhos… ah, os olhos… me capturaram antes mesmo de eu conseguir evitar.
— Sozinha? — ele perguntou.
Eu queria responder com algo duro, objetivo, que criasse distância. Mas a verdade escapou sem que eu conseguisse segurar:
— Ethan foi beber.
Caleb respirou fundo, como se saboreasse a informação.
— Imaginei que ele não estivesse bem.
Meu peito se apertou.
— Não é culpa sua — murmurei, quase num pedido.
Caleb deu um sorriso lento, um sorriso que conhecia meus medos mais profundos.
— Zoe… você ainda não entendeu, né?
Ele deu um passo à frente. O deck inteiro pareceu menor.
— Isso não é “culpa”. Isso é destino cobrando o que ficou pendente.
Eu fechei os olhos, pressionando os dedos contra o corrimão gelado.
— Por favor… para.
— Eu parei por anos — ele respondeu, a voz mais baixa, mais quente. — Parei porque achei que você tinha conseguido me esquecer.
Outro passo.
— Mas ontem, naquela cabana…
Sua respiração roçou meu pescoço.
— Ontem eu vi que você ainda sente.
— Caleb…
— Você tremeu — ele disse, como se estivesse relatando um fato científico. — Você tremeu como antes.
Abri os olhos, encarando seu rosto a poucos centímetros do meu. Sombras, gelo, desejo, história — tudo misturado.
— Isso não significa nada — sussurrei.
— Então me diga com os olhos. — Ele inclinou o rosto, buscando minha verdade. — Diga que não sente nada. Que não quer saber o que poderia ter sido entre nós.
Minha garganta se fechou. Meu corpo congelou. Meu coração… queimou.
Eu não consegui dizer.
E ele viu.
Caleb baixou o olhar para minha boca. E por um segundo eterno, eu tive certeza de que ele iria me beijar. Tive certeza de que eu deixaria.
Mas não. Ele recuou apenas dois dedos de distância, o suficiente para me manter inteira e despedaçada ao mesmo tempo.
— Zoe… — sua voz era quase um lamento — você está lutando contra algo que já venceu.
Eu respirei fundo, tentando me ancorar.
— Eu sou casada.
— E eu não estou pedindo seu corpo — ele respondeu. — Estou pedindo sua verdade.
E então… a frase:
— Se você pudesse escolher hoje, sem consequências… quem você escolheria?
O mundo pareceu parar. O ar ficou imóvel.
Meu coração disparou tanto que eu ouvi. O vento cessou. A montanha silenciou.
Eu abri a boca, sentindo lágrimas queimarem atrás dos olhos. Eu ia responder. Eu precisava responder.
Mas antes que qualquer palavra acontecesse…
O céu se abriu.
Uma faixa verde rasgou a escuridão. Depois outra. E outra.
A aurora boreal dançou sobre nós como fogo líquido, iluminando tudo — o vale, as encostas, meu rosto, o dele.
A beleza era devastadora. Romântica demais. Oportuna demais.
Eu senti o calor dele atrás de mim, o brilho das luzes refletindo nos olhos de Caleb… e entendi que aquele momento não era coincidência.
Era o universo prendendo a respiração.
— Escolha, Zoe — ele sussurrou, quase tocando minha pele. — Só isso. Sem mentir.
E eu… eu não sabia mais como fugir da verdade.
A aurora boreal explodia sobre nós, uma cortina viva de verde e violeta que parecia descer tão perto que quase tocava minha pele. Mas nada, absolutamente nada, era tão quente quanto o corpo atrás de mim.
Caleb não encostou. Ele nunca precisa encostar para incendiar.
A respiração dele roçava meu pescoço como se cada exalação fosse um convite. Eu mantinha os dedos no corrimão… até que ele colocou a mão sobre a minha.
Não pressionou. Não puxou. Apenas pousou — morna, firme, grande demais para ser inocente, lenta demais para ser acidental.
E meu corpo cedeu antes mesmo que eu tivesse tempo de dizer não.
Seu polegar roçou a lateral do meu indicador. Depois, o calor se espalhou quando nossos dedos — instintivos, teimosos, famintos — começaram a se enroscar.
Primeiro um toque leve. Depois um entrelaçar tímido. E por fim… minha mão inteira se entregou à dele.
Caleb deu um meio suspiro, como se aquela pequena rendição fosse uma confirmação há muito esperada.
— Zoe… — minha mão sumiu dentro da dele — isso já passou do ponto onde você pode dizer que não sente nada.
A luz verde da aurora desenhava sombras no rosto dele. Eu me virei devagar — muito devagar — e nossos corpos se alinharam quase naturalmente, como se lembrassem de um encaixe antigo, perfeito, queimado em alguma memória do meu corpo que eu nunca consegui apagar.
Ele estava perto demais.
Seu peito quase tocava o meu casaco. O calor dele atravessava as camadas de lã e gelo. Meu coração batia tão forte que eu tinha certeza que ele conseguia sentir a vibração.
Caleb trouxe a outra mão até minha cintura — sem tocar — apenas posicionando as pontas dos dedos no ar a milímetros do tecido. Um quase-toque que percorreu minha espinha inteira.
— Você está tremendo de novo — ele murmurou.
— É frio — menti.
— É medo — ele corrigiu.
Os olhos verdes mergulharam nos meus.
— Medo de admitir que ainda me quer.
Minha respiração se perdeu.
E então… o inevitável aconteceu.
Caleb se inclinou.
Não muito. Não o suficiente para nos perdermos. Mas o suficiente para nossos lábios ficarem separados por uma linha fina de ar quente.
Aquela distância mínima, dolorosa, proibida.
Eu sentia o calor da boca dele. O hálito. O ritmo controlado da respiração. O magnetismo antigo, poderoso, que eu achava enterrado.
— Diz que não — ele sussurrou, a voz quebrada de desejo contido. — Só diz.
Eu não disse. Meu corpo não conseguia.
Meu nariz roçou o dele. Meu queixo inclinou por reflexo. Meu peito encostou levemente no dele — um toque tão pequeno, tão rápido, tão inevitável… que eu não sabia mais onde terminava a intenção e começava o impulso.
Caleb fechou os olhos por um instante — como se estivesse lutando consigo mesmo — e quando abriu, havia fogo ali. Fogo antigo. Fogo familiar. Fogo meu.
— Você não devia estar assim comigo — ele murmurou, sem afastar o rosto. — Mas está.
Seu polegar acariciou o dorso da minha mão entrelaçada à dele.
— E eu vou te dizer a verdade…
Sua testa encostou na minha.
— Eu também não devia querer você assim.
A respiração dele falhou contra minha boca.
— Mas quero.
O mundo podia ruir. O vento podia arrancar o deck inteiro. A montanha podia desmoronar.
E eu continuaria ali, presa naquele instante que era grande demais para caber no peito.
Eu virei o rosto apenas o suficiente para quebrar a linha invisível que quase unia nossas bocas, mas não conseguia soltar a mão dele.
— Caleb… — minha voz saiu tremida — por favor…
— Me diga que você não está pensando em mim.
— Eu…
— Me diga que você não imaginou, nem por um segundo, o que teria acontecido se eu tivesse te beijado ontem.
Meu coração virou lava.
Eu puxei o ar com dificuldade. Mas ele não me deu tempo de responder.
Caleb aproximou o rosto outra vez, roçando minha boca sem tocar, provocando cada nervo do meu corpo, me deixando dividida entre desespero e desejo.
— Porque, Zoe… — ele segurou minha mão com mais força, prendendo meus dedos entre os dele — eu pensei.
Seus lábios quase tocaram os meus. Quase.
— Eu penso nisso desde que te vi na neve.
Eu estava perdida. E tão, tão perto de atravessar uma linha que nunca poderia desfazer.
O mundo inteiro cabia naquele milímetro de distância entre nossas bocas.
O vento gelado. A luz da aurora. O calor dos nossos corpos. O arrepio que queimava mais do que o fogo da cabana.
E então…
Caleb sussurrou a pergunta que arrancou meu chão:
— Se você tivesse que me escolher agora… me escolheria?
E antes que eu pudesse responder — antes que qualquer palavra ousasse nascer — alguém abriu a porta do resort atrás de nós.
Um som seco. Um passo. Um arranhar de bota na madeira.
E eu soube.
Ethan estava ali.
E tinha visto o suficiente para que nada, absolutamente nada, voltasse a ser como antes.
