Tudo ficou turvo, como se alguém tivesse apagado a luz do mundo e deixado só vultos borrados rodando ao meu redor. Eu não sabia mais onde terminava a bebida e começava a realidade. Lembro do barulho da porta batendo, repetidas vezes, alguém tentando entrar enquanto Matheus estava em cima de mim, aquela sensação sufocante, meu corpo pesado, incapaz de reagir. Eu piscava e cada piscada parecia me apagar um pouco mais. Quando consegui abrir os olhos por um segundo, vi sangue, vozes misturadas, vultos se empurrando, tudo distante. E então, numa última piscada, o cenário mudou. Matheus não estava mais ali. O mundo girou e de repente eu estava nos braços de alguém.
Eu pensei que fosse uma miragem, só podia ser. Eu já não diferenciava mais o real do delírio. Mas quando foquei, mesmo com dificuldade, reconheci aqueles olhos. O calor dos braços dele. O cheiro familiar. Era o Kaique. E antes que eu pudesse entender qualquer coisa, minha boca agiu sozinha, quase sem voz.
— Primo… cuida de mim.
Foi tudo o que consegui dizer. Depois disso, a escuridão me puxou de volta e eu desmaiei.
Quando acordei de novo, já estava em casa.A luz estava apagada e o cheiro misturado de limpeza e algo azedo me fez embrulhar o estômago. Mal tive tempo de pensar. Só virei para o lado, desesperado, e vomitei dentro de um balde que estava exatamente ali, como se alguém tivesse previsto. A bile quente subindo, minha testa suando frio. Eu tremia.
Senti a cama afundar do meu lado e então a toalha fria tocou minha testa. Envolveu meu rosto com carinho, deslizou pelo pescoço. O cheiro do sabonete do Caíque, aquele cheiro dele que eu conhecia tão bem, me envolveu.
— Tá tudo bem… vai ficar tudo bem — ele disse, com a voz baixa, firme, e ao mesmo tempo tão suave que quase doeu.
Eu vomitei mais um pouco, forcei o ar, tentei me apoiar no colchão. Depois só deixei meu corpo cair de volta, exausto. Meus olhos se fecharam sozinhos. Ele continuou passando a toalha gelada na minha testa, depois a mão no meu cabelo, com tanto cuidado que me deu vontade de chorar.
— Vou cuidar de você pra sempre — ele murmurou, como se estivesse prometendo algo que não deveria prometer.
Eu dormi de novo na mesma hora. Entreguei tudo, meu corpo, meu peso, meu medo, meu enjoo, toda minha vulnerabilidade. Ele ficou ali comigo.
A próxima coisa que lembro é a tarde seguinte. Meu olho abriu devagar e a luz do quarto parecia atravessar meu crânio. A dor de cabeça era tão forte que parecia que eu tinha dois corações, um batendo no peito e o outro batendo atrás dos meus olhos.
— Ai… ai… ai… — foi tudo o que consegui dizer, gemendo enquanto apertava as têmporas e fechava os olhos de novo.
O colchão mexeu e senti alguém se aproximando. Alguma coisa encostou nos meus lábios, e a voz dele veio de novo, calma, mas preocupada.
— Abre a boca, vai. Toma esse remédio.
Obedeci sem pensar. Ele colocou o comprimido na minha boca com o cuidado de alguém segurando algo frágil demais. Depois, encostou um copo nos meus lábios, me ajudando a beber água devagar, quase guiando minha respiração junto.
— Isso… devagar — ele sussurrou.
Quando terminei, ele se deitou ao meu lado, a cama afundando de novo, o calor do corpo dele chegando perto. Ele não disse mais nada, mas a presença dele preenchia todo o quarto. Era como se o silêncio dele cuidasse de mim também.
Eu fechei os olhos mais uma vez, ainda com a cabeça latejando, mas agora com a sensação de estar protegido. E antes de dormir de novo, a última coisa que senti foi a mão do Caíque descansando no meu cabelo, como se ele estivesse garantindo que eu não fosse a lugar nenhum, nem mesmo na dor.
E então, eu apaguei outra vez.
Quando eu finalmente comecei a acordar, não fazia ideia de que horas eram. Minha cabeça latejava como se estivesse tentando abrir caminho por dentro do meu crânio. Eu só senti o calor antes de entender onde eu estava. O calor… e o cheiro.
Meu rosto estava encostado no peito de Caíque. O braço dele passava por cima da minha cintura, firme, forte, quente. A respiração dele batia de leve no topo da minha cabeça. Ele dormia com o rosto enfiado no meu cabelo, o nariz afundado ali, como se estivesse respirando meu cheiro. E por um segundo eu nem soube se realmente tinha acordado ou se aquilo era mais um sonho estranho daquela ressaca que quase me matou.
Eu pisquei devagar. A claridade do quarto cortou meus olhos. Minha boca estava seca, a língua pastosa, e a garganta doía como se eu tivesse engolido areia. Tentei me mexer um pouco e senti o braço dele me apertar mais, como se o corpo reagisse sozinho, querendo me manter ali.
E então veio o primeiro flash.
A música alta.
A garrafa rodando.
O quarto girando.
O peso do Matheus em cima de mim.
Eu perdi o ar. Meu corpo gelou inteiro.
Outro flash.
As mãos segurando meus braços.
A cama.
A voz dele dizendo que eu ia “aprender”.
Meu estômago virou. Um enjoo subiu tão forte que eu achei que fosse vomitar de novo. Tirei lentamente o cobertor de cima de mim e, quando vi meu corpo, o pânico me atingiu como uma pancada: eu estava só de cueca.
Meu coração disparou. A respiração começou a falhar. Eu senti minha visão escurecer pelas bordas enquanto tentava entender o que aquilo significava. Senti as lágrimas subindo antes mesmo de conseguir impedir. Eu puxei ar, mas parecia que não tinha ar nenhum no quarto.
— Ele… — minha voz saiu falhada, quase sem som — o que que ele fez comigo?
Meu choro começou a escapar, primeiro baixinho, depois sem controle. Era como se todo o medo tivesse ficado preso no meu corpo desde a festa e agora estivesse saindo de uma vez.
O movimento do meu corpo acordou Caíque. Ele piscou algumas vezes, confuso, até focar em mim. E quando viu meu rosto molhado de lágrimas, ele se endireitou imediatamente, ainda com os olhos meio inchados de sono.
— Alec… ei, ei, olha pra mim — ele segurou meu rosto com as duas mãos, a voz firme, mas carinhosa — respira. Respira comigo. Tá tudo bem.
— Ele fez alguma coisa comigo? — eu soluçava — o que que ele fez comigo, Caíque… me fala, por favor…
— Nada. — Ele disse isso rápido, quase desesperado para que eu entendesse. — Nada aconteceu com você. Nada. Eu cheguei a tempo. Eu te juro.
Eu tentava respirar, mas parecia que o ar não vinha. Minha cabeça pulsava, minha visão embaralhava. Eu segurava os braços dele como se fossem a única coisa mantendo meu corpo inteiro.
— Eu falei que ia cuidar de você — Caíque continuou, aproximando a testa da minha — e eu cuidei. Enquanto eu estiver aqui, ninguém encosta um dedo em você. Você tá ouvindo? Ninguém.
Eu fechei os olhos com força, deixando mais lágrimas caírem, e o peito dele encostou no meu quando ele me puxou para um abraço. Ele me envolveu inteiro, como se quisesse cobrir cada pedaço meu que ainda tremia. Eu me afundei no ombro dele, sentindo o cheiro do sabonete, o calor da pele dele, o toque suave da mão dele nas minhas costas.
— Tá tudo bem… — ele repetia baixinho, como quem tenta desfazer um pesadelo com a própria voz — eu tô aqui. Eu tô aqui. Não aconteceu nada. Você tá seguro.
Eu chorei mais um pouco, mas aos poucos meu corpo começou a responder a presença dele. A respiração dele no meu pescoço, a mão dele fazendo um carinho lento, constante, quase hipnótico. Ele não me soltou em nenhum momento. Me segurou como se eu fosse algo precioso, frágil, que precisava ser protegido do mundo inteiro.
E ali, no meio daquele caos que ainda pulsava dentro de mim, a única coisa que me acalmava era exatamente isso: ele estava ali. E ele tinha cuidado de mim.
Eu ainda estava com o rosto escondido no pescoço de Caíque quando o choro começou a diminuir. A respiração ainda era curta, trêmula, mas pelo menos eu conseguia puxar ar. Ele continuava me segurando como se tivesse medo de eu desaparecer se ele afrouxasse um pouco. O peito dele subia e descia devagar, quase num ritmo calculado para que o meu corpo acompanhasse.
Quando finalmente consegui levantar o rosto, os olhos dele estavam grudados em mim. Era aquele olhar dele… intenso, sério, protetor, mas com alguma coisa por trás que eu não entendia. Uma coisa que queimava, mas também parecia dócil.
— Alec, olha pra mim — ele disse, passando o polegar abaixo do meu olho para limpar alguma lágrima perdida — eu preciso que você acredite em mim. Nada aconteceu. Eu juro pela minha vida.
Eu respirei fundo, tentando processar as palavras, mas o medo ainda prendia meu peito.
— Eu só lembro… dele em cima de mim — minha voz falhou — eu lembro que eu não conseguia levantar, que eu tava tonto, que eu tava… eu tava muito mal… e aí eu acordei aqui sem roupa e…
— Eu que tirei — Caíque confessou, com a voz baixa — você tava passando muito mal. Vomitou no carro, apagou, tava suando frio. Eu te trouxe no colo até o quarto. Eu te limpei, te coloquei roupa limpa, te deitei. Nada mais que isso.
Eu fechei os olhos por um instante. A sinceridade dele sempre vinha como uma pancada no peito.
— Por que você fez tudo isso? — eu perguntei, quase num sussurro.
Ele demorou um segundo para responder. Um segundo que pareceu longo demais. Quando respondeu, foi de um jeito que me desmontou por dentro.
— Porque você é… meu.
A palavra veio pesada. Forte. Quase proibida.
O coração bateu tão rápido que doeu. Não sei se ele percebeu a reação, mas o olhar dele vacilou por um breve instante, como se tivesse dito alguma coisa que não devia. A mão dele ainda estava na minha nuca, quente, firme. Eu sentia o calor dos dedos dele irradiando pela minha pele.
— Eu sou… o quê? — perguntei, porque precisava ouvir de novo. Eu precisava entender o que ele queria dizer.
Ele respirou fundo, puxando o ar devagar, o maxilar contraído como se estivesse brigando com ele mesmo.
— Você é meu primo — ele disse, mas não era isso que ele queria dizer. Eu percebi na hora. — E eu… prometi cuidar de você.
Mas não foi “prometi”.
Foi outra coisa.
Uma coisa que ele não disse.
E eu senti.
A sala ficou silenciosa por um tempo. Só dava pra ouvir nossa respiração. Ele ainda estava perto demais. Eu ainda estava perto demais. E talvez eu estivesse imaginando, mas o olhar dele descia às vezes para a minha boca antes de voltar pros meus olhos.
— Eu fiquei com tanto medo de te perder — ele confessou baixo, quase inaudível — eu nunca senti isso antes.
Meu peito apertou. Não sei se foi medo. Ou se foi outra coisa.
— Eu… achei que fosse morrer lá — admiti — eu lembro de pensar isso.
O olhar dele ficou sombrio. O maxilar dele travou. Eu senti o braço dele apertar minha cintura sem nem perceber.
— Se eu tivesse demorado mais cinco segundos… — ele fechou os olhos, como se enxergasse a cena de novo — eu juro que eu matava ele. Eu teria matado aquele desgraçado.
Eu engoli seco. Ele falou com uma intensidade que me deixou sem ar. Não era só raiva. Era outra coisa. Uma fúria que vinha de um lugar muito mais profundo.
— Ei… olha pra mim — eu levantei a mão e toquei o rosto dele. Eu nunca tinha tocado assim antes. Na pele quente dele, na barba por fazer que arranhava meus dedos. — Eu tô aqui. Eu tô bem. Você me salvou.
Ele abriu os olhos e encarou a minha mão no rosto dele. E, devagar, como se estivesse com medo de quebrar alguma regra invisível, ele inclinou o rosto até encostar o nariz na minha palma. Fechou os olhos como se aquilo fosse alivio.
— Eu devia ter te protegido antes — ele disse, num sussurro. — Eu devia ter ido te buscar antes. Eu devia…
— Caíque, não é sua responsabilidade cuidar de tudo — eu tentei dizer, mas ele balançou a cabeça.
— É sim — ele insistiu, aproximando ainda mais o rosto — eu quero que seja.
Meu coração bateu tão forte que eu achei que ele pudesse ouvir.
Ele abriu os olhos, lentamente, e me olhou. Aquele olhar… aquele olhar nunca tinha me olhado daquele jeito antes. Não era coisa de primo. Não era coisa de amigo. Era outra coisa. Uma coisa que eu não tinha palavras.
— Quando você acordou chorando… — ele disse, quase sussurrando — eu achei que tinha acontecido algo.
Eu respirei fundo. Ele também. E, naquele momento, cada centímetro entre nós parecia proibido. Perigoso. Necessário.
— Eu fiquei com medo que… que eu tivesse feito alguma coisa que eu não lembrava, ou que tivesse acontecido algo lá naquela festa, sei la. — eu confessei, a voz falhando.
Ele se aproximou ainda mais, apoiando a testa na minha.
— A única coisa que aconteceu na festa foi eu quebrando a cara daquele menino. E aqui você não fez nada, fica tranquilo. Eu jamais deixaria você fazer qualquer coisa no estado que você estava.
O jeito que ele falou mexeu em alguma coisa dentro de mim. Meu corpo respondeu antes da minha cabeça. Eu senti minhas mãos descerem para os braços dele. Senti ele arrepiar.
— Eu confio em você — eu disse.
Ele fechou os olhos. Como se ouvir aquilo machucasse e curasse ao mesmo tempo.
— Então não chora assim de novo — ele pediu baixinho — eu não sei lidar com você chorando. Não sei… o que isso faz comigo.
O quarto estava quente. A respiração dele batia na minha boca. As mãos dele seguravam minha cintura como se estivessem com medo de eu sumir. Meu corpo inteiro parecia queimar sob o toque dele.
E então ele fez algo simples.
Mas que mudou tudo.
Ele encostou o nariz no meu, de leve. Um toque suave, lento, que me arrepiou inteiro. Ele nem precisou me beijar. Só aquilo já fez meu peito tremer.
Eu fechei os olhos. Ele também.
E nós ficamos assim.
Perigosamente perto.
Quase ali.
Quase quebrando uma linha que ninguém nunca imaginou que existia entre nós.
— Eu tô aqui — ele repetiu, baixinho, com a boca quase encostando na minha — e vou cuidar de você… sempre.
Meu corpo inteiro acreditou nele.
Quando o silêncio finalmente se assentou entre nós dois, depois de eu ter chorado até sentir os olhos queimando, ainda dava pra sentir o calor do abraço dele grudado na minha pele. Ficamos um tempo assim, quietos, respirando devagar, como se qualquer movimento mais brusco pudesse quebrar alguma coisa frágil que tinha se formado ali. Eu não sei quanto tempo passou, mas em algum momento percebi que precisava levantar, precisava lavar o rosto, precisava tomar de volta um mínimo de controle depois de tudo que tinha acontecido. Disse, meio baixo, que ia tomar banho. Caíque só balançou a cabeça em concordância e levantou junto comigo, como se tivesse medo de me deixar sozinho por muito tempo. Fiquei com a sensação de que o olhar dele me seguia até a porta.
O banho foi longo, deixei a água quente cair sobre meu corpo, escovei meus dentes e fiquei perdido em meus pensamentos. Minha cabeça pulsava como se estivesse batendo contra as paredes do crânio, mas a água morna ajudou a organizar um pouco o caos.
Quando voltei pro quarto, já vestido, ele estava arrumando a cama, esticando o cobertor com um cuidado quase exagerado, como se isso pudesse me trazer algum tipo de calma. Acho que trouxe.
— Vamos comer alguma coisa — ele disse, com aquela voz firme, mas suave, que sempre me estabilizava mais do que ele imaginava. Eu só concordei, ainda meio lento, e nós descemos juntos.
No corredor encontramos Helena e o meu tio Jorge. Eles vinham conversando sobre alguma coisa, mas pararam assim que nos viram. Jorge abriu um sorriso sincero, daquele jeito de adulto que tenta demonstrar acolhimento sem ser invasivo.
— Alec, meu rapaz. Como você tá? Tá gostando daqui?
Eu respondi que sim, que estava sendo muito bem tratado. Ele riu, pousou a mão no meu ombro e comentou sobre o quarto de hóspedes que ainda não estava pronto.
— Essa semana termina. A gente queria deixar tudo arrumado antes de você chegar.
Disse que não precisava ter pressa, que dividir o quarto com o Caíque não era problema nenhum, que ele era uma ótima companhia. Helena sorriu, e Jorge concordou, falando que o Caique sempre foi carinhoso.
Caíque desviou o olhar, como se não estivesse acostumado a ouvir esse tipo de elogio vindo dos pais.
Foi aí que lembrei do que ele tinha me contado. Da falta de atenção. Da ausência. Do silêncio dentro daquela casa grande. E antes que eu pensasse demais, falei:
— A gente podia comer todo mundo junto, né? Eu cheguei agora, a gente ainda nem parou pra conversar. Podia ser legal ter um jantar em família.
Helena e Jorge se olharam rápido, numa troca silenciosa difícil de decifrar, e depois concordaram.
— Seria muito bom — ela disse.
Descemos todos pra cozinha. A Olga apareceu oferecendo ajuda, mas eu falei que não precisava, que a gente podia fazer tudo junto. Ela pareceu gostar da ideia e nos deixou ali. Caíque pegou pratos, Helena separou copos, Jorge perguntou o que eu preferia comer e eu ajudei a montar uns sanduíches quentes que acabaram agradando todo mundo. A mesa foi sendo arrumada aos poucos, com aquela simplicidade que torna tudo mais aconchegante.
Sentamos e começamos a conversar sobre a fazenda, sobre a escola nova, sobre como eu estava me adaptando. Eles perguntaram sobre meus gostos, meus planos, e depois passaram naturalmente a conversar com o Caíque também. Ele respondeu tímido no começo, mas aos poucos foi se soltando. Falou das aulas de judô, das competições que queria participar, das matérias da escola. Cada vez que os pais perguntavam algo mais pessoal, eu via o olhar dele acender, como se estivesse finalmente sendo visto.
O jantar foi leve, cheio de risadas pequenas, histórias simples, comentários espontâneos. Uma sensação diferente tomou conta da casa. Não era aquela frieza que senti no primeiro dia. Parecia mesmo… família.
Em um momento, enquanto o Jorge contava uma história sobre uma viagem antiga com o meu pai, senti o olhar de Caíque pousar em mim. Virei o rosto, e ele sussurrou baixo, quase sem abrir os lábios:
— Obrigado.
Saiu trêmulo, pesado, como se ele estivesse agradecendo por algo muito maior do que um jantar. Como se fosse por ter dado a ele um pedaço de afeto que faltava há muito tempo. Eu só sorri de volta, com o peito quente, porque no fundo era mesmo o mínimo que eu podia fazer por alguém que, desde que eu cheguei naquela casa, fez tudo para cuidar de mim.
O jantar terminou devagar, com aquela sensação boa que fica depois de uma conversa sincera. A mesa estava quase vazia, só uns farelos de pão e os copos ainda com um restinho de suco. A tia Helena levantou primeiro, dizendo que ia guardar umas coisas na cozinha, e meu tio Jorge a acompanhou. Eu e Caíque ficamos ali um pouco, recolhendo os pratos, e por um instante eu percebi aquele silêncio confortável que só existe quando duas pessoas estão claramente conectadas.
A casa tinha um cheiro leve de manteiga tostada, misturado com o perfume amadeirado do Jorge e o perfume mais suave da Helena que ficou no ar depois que ela passou atrás de mim. Era estranho… mas bom. Pela primeira vez desde que eu cheguei, aquela casa parecia viva, parecia lar.
Quando nos despedimos deles, foi com sorrisos de verdade. Tia Helena me deu um beijo na testa, como se eu tivesse sempre pertencido ali. Jorge apertou meu ombro com força.
— Foi muito bom ter você com a gente hoje, Alec.
Eu só consegui responder que também tinha sido especial pra mim. E era verdade.
Quando as vozes deles se afastaram pelo corredor e subiram as escadas para o quarto deles, eu senti Caíque me olhando. Ele sorriu daquele jeito pequeno, de canto de boca, o sorriso que ele só dá quando tá realmente feliz.
Seguimos juntos para a escada. Eu fiquei um degrau na frente, ele um atrás, e nossos braços se tocaram de leve quando viramos no corredor. A mão dele estava perto da minha, tão perto que dava pra sentir o calor dela. A cada passo, parecia que os dedos iam se encontrar sem querer, e por um momento eu desejei que encontrassem. A luz amarelada do corredor deixava o cabelo dele dourado nas pontas. A camisa azul que ele usava estava meio amarrotada do dia inteiro, e ainda assim, nele, tudo parecia bonito.
Quando entramos no quarto, ele se sentou na beira da cama, mas quem pegou o celular fui eu. A tela acendeu mostrando algumas mensagens dos meus pais, perguntando como tinha sido o meu dia, se eu estava me adaptando, se estava tudo bem depois da noite difícil.
Caíque levantou o rosto quando percebeu. Ele não disse nada, só ficou me observando com uma atenção suave, gentil. Eu respirei fundo, sentei ao lado dele e comecei a gravar um áudio.
— Mãe, pai… tá tudo bem aqui. Desculpa não ter respondido antes. Eu dormi bastante hoje. — Minha voz saiu um pouco rouca, mas sincera. — Eu jantei com primo e meus tios hoje! O jantar foi muito bom. A gente conversou, riu um pouco… foi uma noite leve. Amanhã eu ligo pra vocês com calma, tá? Amo vocês. Boa noite.
Enviei o áudio e deixei o celular virado pra baixo ao meu lado.
Quando levantei os olhos, meu primo estava me olhando de um jeito… diferente. Doce. Quase vulnerável. Como se estivesse enxergando algo além das palavras que eu tinha dito.
— Alec… — ele começou, passando a mão pelo próprio cabelo, nervoso. — Eu queria te agradecer. Pelo jantar. Pelo jeito que você falou com eles. Eu nunca… eu nunca tinha tido um momento assim com meus pais. Não daquele jeito.
Ele abaixou o olhar, como se estivesse tentando esconder a emoção que vinha subindo.
— Eles sempre foram ocupados, sempre distantes. Mas hoje pareceu… família. E eu sei que isso só aconteceu porque você estava ali. Então… obrigado.
Aquilo me acertou fundo. Eu senti o peito esquentar, e precisei de alguns segundos antes de conseguir responder.
— Caíque… foi o mínimo — murmurei, me aproximando um pouco. — Depois de tudo que você fez por mim… de cuidar de mim ontem, de ficar comigo, de não me soltar quando eu tava mal… eu queria te devolver um pouco disso. Você merece. Merece muito mais do que imagina.
Ele ergueu o rosto devagar. Quando nossos olhos se encontraram, o silêncio entre nós ganhou peso. Não era desconforto; era expectativa. Era como se alguma coisa estivesse prestes a acontecer havia tempo demais.
Caíque levantou da cama com calma, deu três passos na minha direção e parou tão perto que eu senti o perfume dele antes mesmo de tocar. Meu coração acelerou, batendo alto demais dentro do peito.
Ele levantou a mão devagar, hesitante, como se estivesse pedindo permissão. Tocou minha bochecha com a ponta dos dedos, quente, suave.
— Alec… — sussurrou, e só meu nome na voz dele fez meu corpo inteiro estremecer.
O toque dele desceu até o meu queixo, leve, quase tímido. Depois subiu de novo, alcançando minha armação de óculos. Ele segurou com cuidado, como se aquilo fosse delicado demais, e tirou devagar. A minha visão ficou um pouco embaçada sem as lentes, mas o rosto dele continuava nítido, tão perto que eu sentia o calor da pele dele irradiando.
Caíque colocou meus óculos em cima da cômoda, sem quebrar o contato visual por nenhum segundo.
Quando voltou a me olhar, parecia que o quarto inteiro tinha diminuído ao redor de nós.
Ele aproximou o rosto. Primeiro, o nariz dele encostou no meu. Depois, a testa. A respiração dele batia na minha boca, quente, descompassada.
Ele inclinou levemente a cabeça para o lado.
Meu corpo congelou e queimou ao mesmo tempo.
Os lábios dele roçaram nos meus. Suave. Lento. Quase uma pergunta.
E eu respondi sem precisar falar nada.
Encostei minha boca na dele, sentindo um arrepio disparar pela minha coluna inteira. Foi só um selinho… mas havia tanta coisa naquele toque que parecia que o chão tinha desaparecido. O mundo ficou pequeno, reduzido ao espaço entre as nossas bocas.
Quando ele se afastou, ainda estávamos colados, respirando o mesmo ar, como se ninguém tivesse coragem de quebrar aquilo.
Caíque sorriu. Pequeno, tímido, lindo.
E eu soube, naquele instante, que alguma coisa tinha mudado.
E que não existia volta.
O selinho mal tinha terminado e eu ainda estava com a boca encostada na dele, respirando devagar, quando senti a mão dele deslizar pela lateral do meu rosto, como se ele tivesse medo que eu simplesmente sumisse dali. Ele manteve a testa colada na minha, os olhos semicerrados, e suspirou baixinho — um suspiro quente, quase um pedido silencioso pra que eu não me afastasse.
E eu não conseguia me afastar.
Ele abriu os olhos, e neles tinha uma mistura de nervosismo e coragem. Uma luz macia. Uma vontade.
— Alec… — ele murmurou, bem baixinho, quase sem mover os lábios.
Meu nome na voz dele parecia um convite.
Eu senti a mão dele descer devagar até minha nuca, os dedos se enroscando no meu cabelo. O toque era tão cuidadoso que me deu vontade de fechar os olhos. Senti meu coração bater tão forte que parecia que o ar ao redor da gente tinha mudado de temperatura.
E então, antes mesmo que eu pudesse pensar em qualquer coisa, ele voltou.
O nariz dele roçou no meu de novo, mas dessa vez o movimento continuou, lento, firme, até que os lábios dele encontraram os meus uma segunda vez… só que dessa vez não foi selinho.
Caíque me beijou.
Suave no começo, quase um carinho. Depois, um pouco mais firme, como se estivesse descobrindo aos poucos o que podia fazer. Os lábios dele tinham um calor doce, um gosto leve de suco que ele tinha bebido no jantar, misturado com algo só dele.
Eu respondi sem medo. A mão dele desceu pra minha cintura, me puxando um pouco mais perto, e eu senti meu corpo inteiro reagir, como se ele fosse o único ponto seguro em todo o quarto. Meus dedos subiram automaticamente pelo peito dele, deslizando pelo tecido morno da camisa, até parar no ombro. Eu precisava tocar, confirmar que aquilo era real.
O beijo foi lento, sem pressa, bonito de um jeito que eu nunca tinha sentido antes.
Nada urgente. Nada exagerado. Só dois garotos se encontrando no tempo certo.
Quando finalmente nos afastamos, ainda estávamos colados. Eu abri os olhos devagar e encontrei os dele, que já estavam me encarando como se eu fosse algo importante demais pra desviar o olhar.
E aí nós dois rimos.
Um riso curto, baixo, meio bobo… mas tão sincero que eu senti meu peito aquecer.
— Isso… acabou de acontecer? — ele perguntou, sorrindo como se estivesse com medo de quebrar o encanto.
— Eu acho que sim — respondi, sentindo minhas bochechas queimarem. — Acho que aconteceu.
Ele mordeu o lábio inferior, tentando segurar outro sorriso, mas falhando completamente. E Deus… ele ficava tão bonito assim.
Ele então tocou minha mão, entrelaçando os dedos devagar, como se tivesse medo de apertar forte demais.
— Vem — ele murmurou, puxando minha mão com cuidado.
Nós fomos até a cama, ainda meio atordoados pelo que tinha acabado de acontecer. Deitamos de lado, um de frente pro outro, e ele passou o braço por cima de mim com tanta naturalidade que parecia que ele sempre tinha dormido comigo daquele jeito.
Eu encostei a cabeça no peito dele, sentindo o ritmo sereno da respiração. O coração dele batia rápido — tão rápido quanto o meu. O calor do corpo dele me envolvia, e eu senti uma paz estranha, nova, bonita.
Ele afagou meu cabelo devagar, como se estivesse tentando guardar aquele momento no corpo.
— Alec… — ele murmurou pela terceira vez naquela noite, mas dessa vez foi diferente. Foi suave, carinhoso, quase uma promessa.
Eu fechei os olhos, sentindo o abraço apertar um pouco mais, firme, seguro, cheio de algo que eu nem sabia nomear.
E assim, sem conversar mais nada, sem ter coragem de quebrar o encanto, nós adormecemos abraçados.
Com a sensação clara, tranquila e quase inevitável…
de que algo muito bom estava começando.
(imagem ilustrativa no Wattpad)