Quando as pessoas começam a discutir sobre assumir ou não publicamente a sua homossexualidade, em geral formam-se dois partidos quase em guerra:"Minha vida particular não diz respeito a ninguém". Os argumentos, em tom preocupado, são mais ou menos: "O que essa mulher faz na privacidade não precisa ser comentado aos quatro ventos"; "Seu chefe e colegas de trabalho irão prejudicá-la se souberem que ela tem uma 'amiga'"; "sua avó ou tia ou mãe vai morrer do coração se souber que a mulher com quem ela mora há sete anos é sua namorada!" versus "Temos todas de assumir para educar o mundo". Os argumentos, ditos em tom mais irritado, são mais ou menos: "Quando uma mulher diz que é lésbica, mostra ao mundo que lésbicas existem e são pessoas comuns"; "Todos os artistas e pessoas públicas que são homossexuais deveriam admiti-lo para dar exemplo e criar modelos para os jovens"; "Quanto mais visibilidade houver, tanto menor será o preconceito".
A briga pode ficar amarga, uma acusando a outra de que é covarde ou não respeita a liberdade da outra etc, etc.
Na minha opinião, o ponto central não é nenhum desses mas o seguinte:
"Quando assumo minha homossexualidade, minha vida melhora em 200%"
Dito em tom de satisfação. Você não acredita? Veja só.
Existem vários níveis de definição de identidade homossexual:
- Posso assumir para mim mesma que sou lésbica...Brrr. Não digo esta palavra alto para ninguém mais ouvir, mas para mim mesma, diante do espelho, digo que gosto de mulheres, só de mulheres. Isso não é uma fase, não sou bissexual, não sou pansexual, não vou talvez um dia casar com um homem e dar netos à minha mãe. Quero viver para sempre ao lado de uma outra mulher.Quando a gente assume para si, acaba-se aquela tortura de ficar tentando mudar, saindo com homens, transando com quem não dá tesão. Fim do horror de se achar um erro a ser corrigido. A gente passa a concentrar a energia em achar a mulher certa para nós.
- Posso assumir para meus amigos que sou lésbica. Não digo exatamente assim, mas dou a entender para os que estão mais próximos que gosto é de mulher. Quando a gente assume para os amigos, acaba a tortura de ficarem tentando arrumar um namorado para a gente, ou de fazerem um monte de perguntinhas indiscretas para descobrir com quem a gente passou o fim de semana. A gente pode mostrar as fotos das férias sem ter de inventar nada, contar as brigas e as reconciliações sem mudar o nome da parceira de Márcia para Márcio, enfim, dividir com os amigos as dores e alegrias de amar uma mulher. A gente pode ter amigos de verdade, que nos aceitam como somos.
- Posso assumir para os companheiros de trabalho que sou lésbica. Não preciso colocar um aviso no mural da empresa, mas posso ir deixando meus colegas saberem que namoro uma mulher, viajo com ela, divido uma casa com ela.Quando a gente assume no trabalho, além de não precisar mais se cansar com aquelas mentirinhas para encobrir que a parceira é uma mulher e de poder recusar as cantadas dos colegas don juans nas festas de fim de ano, a gente tira o poder de chantagem e fofoca das pessoas. Porque vamos admitir o seguinte: é impossível esconder por muito tempo que a gente não se interessa por homens. Ou a gente leva uma vida completamente mascarada, até pedindo para algum amigo atender o nosso telefone com voz de sono na esperança de alguém do trabalho ligar no fim de semana - o que é uma neura sem fim - ou a gente acaba dando dicas sem querer de que é lésbica. Só o fato de não falarmos sobre homens oito horas por dia já denuncia nossas inclinações. Portanto, admitir a verdade tira a graça dos fofoqueiros de plantão e deixa tudo bem às claras. Se a gente tem uma chefia tão homofóbica que vai deixar de nos promover ao saberem de nosso lesbianismo, nada impede que façam o mesmo ao ouvirem fofocas a respeito de nosso lesbianismo, ou da nossa falta de interesse em homens, ou do jeito esquisito com que falamos ao telefone com uma "amiga", ou sei lá pelo que mais. Prejudicada por prejudicada, é melhor agir com tranqüilidade e não com neurastenia. Além disso, se o trabalho onde a gente está é do tipo que tem preconceito, então é mais que hora de procurar outro emprego. Não, não digo isso do alto de uma renda pessoal imensa, mas de uma lógica simplíssima: nós, lésbicas, não somos mulheres heteros. A gente nunca vai agir como uma mulher hetero. A gente sempre vai fazer alguma coisa de diferente que, claro, não atrapalha em nada o serviço, mas é diferente. É ilusão nossa achar que podemos disfarçar a nossa orientação sexual porque, a longo prazo e com uma convivência diária, todo mundo sabe de tudo. Se vamos ser julgadas e condenadas pela nossa vida pessoal, ora, então para que perder tempo e energia tentando disfarçar? Melhor perder esse tempo e energia procurando um trabalho onde sejamos julgadas pela nossa competência e não pela falta de um namorado ou marido.
- Posso assumir para a minha família que sou lésbica. Posso dar a entender que a Márcia é minha mulher, não uma amiga que divide o aluguel comigo. Explico que não vou nunca me casar com o primo João, que é bonzinho mas tem o defeito de ser homem. Vou contando para uma tia aqui, um irmão ali, até a notícia se espalhar pela família e pararem de me encher a paciência sobre casamento.Quando a gente assume nosso lesbianismo para a família, termina a tortura peculiar que é as pessoas verem e não verem, fingirem que entendem depois voltarem atrás, sobre nosso relacionamento com mulheres. Fica tudo aberto, os pais reclamam um monte, choram um monte mas ninguém morre do coração (é incrível mas comprovado: lesbianismo não mata os parentes do coração. É 0% de incidência!). A gente pode ir nas festas de Natal com a namorada, ou ter uma ótima desculpa para fugir delas. A gente passa a conviver apenas com os parentes que nos aceitam e assim tem relacionamentos familiares baseados no amor e na tolerância. Ou não tem relacionamentos familiares. Mas termina o fingimento e a pressão para que a gente siga os moldes que alguém inventou sem nos levar em consideração. Claro que só dá para colocar em prática essa opção quando a gente tem renda própria e uma casa onde morar. Mas essas são ótimas metas de vida, não vai atrapalhar nenhuma mulher ter de correr atrás de trabalho ou um lugar para morar antes de mandar a mamãe calar a boca.
- Posso assumir para todo mundo que sou lésbica. Posso dizer a quem me perguntar que sou lés-bi-ca, assim mesmo, enchendo a boca. Dar entrevistas se alguém quiser minha opinião, ser fotografada se for para uma matéria interessante. Ser vista em público carregando uma bandeira do arco-íris ou beijando minha namorada. Quando a gente assume para todo mundo que é lésbica, realmente acabam-se os problemas de gastar energia tentando disfarçar para quem quer que seja. Ou as pessoas em volta nos aceitam, ou não. Ninguém precisa imaginar nada, fofocar, deduzir porque já dissemos em alto e bom som o que somos. Quando nos empregam, já sabem, ou deveriam saber, que somos lésbicas. Quando namoram conosco, já sabem que somos assumidas. Mamãe se desespera ou sente orgulho, mas não tem como esconder a filha. Portanto, sobra energia para procurar trabalhos legais, cuidar da casa e namorar uma mulher maravilhosa.
Resumindo
- Quando assumimos para nós mesmas, não perdemos mais tempo tentando mudar nossa natureza e podemos investir em encontrar um verdadeiro amor;
- Quando assumimos para os amigos, ficamos só com os que gostam de nós e nos aceitam, e podemos comentar nossa verdadeira vida com eles;
- Quando assumimos no trabalho, passamos a ser reconhecidas pela nossa competência (ou gastamos energia encontrando um emprego onde isso seja verdade) e paramos de perder tempo tentando disfarçar;
- Quando assumimos para a família, transformamos a convivência numa relação honesta de amor e tolerância. Ou acabamos com a convivência, mas paramos de perder energia tentando disfarçar o que não pode ser mudado;
- Quando assumimos para todo mundo, fazemos com que as pessoas nos vejam como pessoas e não como estereótipos. Estamos ali, na frente delas. Ou nos aceitam ou não, mas são obrigadas a nos verem. Paramos de perder tempo e energia em bobagens e podemos nos concentrar no que é importante para nós.