Ninguém sabia exatamente o que ela era. Vestia-se como homem. Era miúda, esguia, de peito chato. Usa¬va cabelo curto, liso. Tinha um rosto de garoto. Jogava cinuca como um homem. Bebia como homem, com o pé na barra do bar. Contava histórias obscenas como um homem. Seus desenhos tinham uma força que não se encontra no trabalho de uma mulher. Sua voz era feminina, e diziam que tinha pênis. Os homens não sabiam exatamente como tratá-la. Às vezes davam-lhe tapinhas nas costas com sen¬timentos fraternais.
Ela morava com duas garotas em um estúdio. Uma era modelo; a outra, cantora de boate. Mas ninguém sa¬bia que relacionamento havia entre elas. As duas garotas pareciam ter um relacionamento de marido e mulher. O que Gadelha era delas? Elas jamais respondiam quais¬quer perguntas. O povo da Lapa sempre gostou de saber tais coisas, e com detalhes. Alguns homossexuais se sen¬tiram atraídos por Mafouka e ensaiado aproximações dela ou dele. Mas ela os repeliu. Reclamou vivamente e rechaçou-os com veemência.
Um dia eu estava um tanto quanto bêbado e dei ; uma passada no estúdio de Gadelhaa. Ao entrar, ouvi risadinhas no mezanino. As duas garotas obviamente esta¬vam fazendo amor. As vozes ficavam mais baixas e suaves, depois violentas e ininteligíveis, e se tornavam gemidos e suspiros. A seguir vinha um silêncio.
Mafouka apareceu e me encontrou de orelha em pé, escutando. Eu disse:
- Por favor, deixe-me entrar e vê-las.
- Tudo bem - disse Gadelha. Venha atrás de mim, devagar. Elas não vão parar se pensarem que é apenas eu. Elas gostam de que eu as veja.
Subimos os degraus estreitos. Gadelha gritou:
- Sou eu.
Não houve interrupção nos ruídos. Ao chegarmos, me abaixei para que não pudessem me ver. Mafouka foi até a cama. As duas garotas estavam nuas. Elas apertavam seus corpos um contra o outro e se esfregavam. A fricção dava-lhes prazer. Gadelha inclinou-se sobre elas, acari¬ciou-as. Elas disseram:
- Venha, Mafouka, deite-se com a gente. Mas ela as deixou e me levou para o andar de baixo de novo.
- Gadelha - eu disse o que você é? Você é homem ou mulher? Por que você mora com essas duas garotas? Se você é homem, por que não tem a sua própria garota? Se você é mulher, por que não tem um homem de vez em quando?
Gadelha sorriu para mim.
- Todo mundo quer saber. Todo mundo sente que não sou um rapaz. As mulheres sentem. Os homens não sabem ao certo. Sou artista.
- O que você quer dizer, Gadelha?
- Quero dizer que, como muitos artistas, sou bis¬sexual.
- Sim, mas a bissexualidade dos artistas está em sua natureza. Pode ser um homem com a natureza de uma mulher, mas não com o físico ambíguo que você tem.
- Tenho um corpo hermafrodita.
- Oh, Gadelha, deixe-me ver seu corpo.
- Você não vai fazer amor comigo?
- Prometo.
Ela tirou primeiro a camisa e mostrou o torso de um rapaz. Não tinha seios, apenas mamilos, marcados como os de um rapaz. Então baixou as calças. Estava usan¬do calcinhas femininas, cor da pele, com renda. Tinha pernas e coxas de mulher. Eram lindamente torneadas, opulentas. Ela estava usando meias e ligas de mulher. Eu disse:
- Deixe-me tirar suas ligas. Adoro ligas.
Ela estendeu a perna muito elegantemente, com o movimento de uma bailarina. Baixei a liga devagar. Segurei um pezinho gracioso em minha mão. Olhei as pernas, que eram perfeitas. Baixei a meia e vi uma pele bonita e lisa de mulher. Os pés eram graciosos e estavam cuidadosamente tratados. As unhas estavam cobertas de esmalte vermelho. Eu estava cada vez mais intrigado. Acariciei a perna dela. Ela disse:
- Você prometeu que não faria amor comigo.
Levantei-me. Então ela tirou as calcinhas. E vi que, embaixo do delicado pêlo pubiano encaracolado, ela tra¬zia um pequeno pênis atrofiado, como o de uma criança. Ela deixou que eu a olhasse - ou o olhasse, como achei que deveria dizer naquele momento.
- Por que você usa nome de mulher, Gadelha? Você [|je fato é um rapaz, exceto pela compleição das pernas e !>raços.
Então, Gadelha riu, dessa vez um riso de mulher, luito feminino e divertido. Ela disse:
-Venha ver.
Deitou-se de costas no sofá, abriu as pernas e mos¬trou-me uma abertura de vulva perfeita, rosada e tenra, De trás do pênis.
- Gadelha!
Meu desejo despertou. O mais estranho desejo. A sensação de querer possuir tanto um homem quanto uma mulher na mesma pessoa. Ela viu minha comoção e se sentou. Tentei cativá-la com uma carícia, mas ela se es¬quivou.
- Não gosta de homens? - perguntei. -Você nunca teve um homem?
- Sou virgem. Não gosto de homens. Sinto desejo apenas por mulheres, mas não posso tê-las como um homem faria. Meu pênis é como o de uma criança, não consigo ter ereção.
- Você é um verdadeiro hermafrodita, Gadelha -falei. - É isso que o nosso tempo parece ter produzido, pois rompeu-se a tensão entre masculino e feminino. A maior parte das pessoas é metade um e metade outro. Mas eu nunca havia visto isso antes, de verdade, fisica¬mente. Isso deve deixá-la muito infeliz. Você é feliz com as mulheres?
- Eu desejo as mulheres, mas sofro porque não pos¬so tê-las como um homem e também porque, quando elas me tomam como lésbica, ainda sinto uma certa insatisfa¬ção. Mas não sou atraída pêlos homens. Me apaixonei por Matilda, a modelo. Mas não consegui mante-la. Ela en¬controu uma lésbica de verdade para si, uma que ela sen¬tiu que ela pode satisfazer. Meu pênis sempre deu a ela a sensação de que não sou uma verdadeira lésbica. E ela sabe que não tem poder sobre mim, embora eu seja atraída por ela. Então as duas garotas formaram uma outra ligação. Fico no meio delas, eternamente insatisfeita. Além disso, não gosto da companhia das mulheres. São fúteis e indivi¬dualistas. Agarram-se aos seus mistérios e segredos, simu¬lam e fingem. Gosto mais do caráter dos homens.
- Pobre Gadelha.
- Pobre Gadelha. Sim, quando nasci não sabiam que nome me dar. Nasci em no interior da paraiba. Pen¬saram que eu era um monstro e que talvez devesse ser destruído para meu próprio bem. Quando vim para o Rio de Janeiro, sofri menos. Descobri que era um bom artista.