Eva
Acho que ela tinha doze anos na época.
Eu a olhava, ela sempre retribuía com um sorriso.
Então lhe disse: Serei o seu primeiro.
Nada falou. Apenas sorriu.
Era pequena ainda, mas já possuía um corpo pleno.
Sorriu e continuou andando.
Mas não fui o seu primeiro. O pai foi.
O pai era muito forte e mal afamado.
Os vizinhos não gostavam dele.
Dizem que metade das meninas deste mundo é violentada pelos pais. E que as mães normalmente sabem, mas nada dizem. O pai de Eva a violentou muitas vezes com a anuência da mãe. O que faria no meu lugar... disse ela à delegada mais tarde. O que faria no meu lugar se vivesse um mês inteiro com um salário mínimo, tendo de sustentar três filhos pequenos? Por esta razão não podia dizer nada contra ele.
Eva se revoltou.
Fugiu de casa.
Um amigo ofereceu um lugar. E comida. E drogas... e mais sexo... muito sexo. Era preciso pagar de alguma forma...
Guria, tá pensando que pode ficar aqui de graça? Tá muito enganada, meu benzinho. Vai ter que fazer algo pro papai...
Eva se desgraçou nesse comportamento fútil e viu sua vida ruir. A mãe a abandonou em nome do pai. O pai a abandonou em nome da violência. Ela os abandonou em seu próprio nome. Não precisaria do consentimento de ninguém. Nem mesmo de Deus, julgava precisar, para deixá-los. Aliás, Deus já a havia deixado também. E foi no mesmo dia em que viu o pai às turras com a mãe: Estes teus filhos são uns imprestáveis. Essa menina só serve para atiçar a libido dos meninos da rua. Anda quase nua. Você não cuida dos teus filhos. Você também é uma imprestável... Num torpor alcoólico, abusos foram cometidos, enquanto a mãe chorava, miserável e incapaz. A mãe também era uma vítima. Você isso, você aquilo, e a desgraça divina recaiu nos seus frágeis ombros de menina. Recaiu de uma forma tão dura que não deu pra agüentar. Nunca mais ficaria em paz com o Criador, que não sabe o motivo de ainda lhe garantir uma inicial maiúscula. Ele brinca comigo e escarnece de mim...
Seu espírito luzente abordava as diferenças entre o ser e a questão maior da vida. Ia e vinha sem nenhum constrangimento e nunca se detinha em lugar algum porque sempre procurava respostas.
Não as encontrava.
Que não havia nenhuma, não onde procurava...
Drogada, prostituída e só, se entregava a qualquer um, a qualquer um mesmo, que lhe pudesse dizer meia dúzia de palavras agradáveis.
E isso também era raro. Os homens, quase sempre, são brutos e infelizes.
Não sabem chorar nem sabem como dizê-lo.
É uma fraqueza, sem dúvida...
Ao pai rogava as pragas mais fortes.
Que sabe Deus de mim?
Quem sabe Deus não lhe pague com uma morte irremediável...
Era uma ilusão, na certa. Que homens como eles costumam perdurar e ninguém sabe por quais razoes o permite Deus.
Parece que a ira lhes alimenta. Parece que a morte lhes têm pavor. Seja como for, eles vivem para além do que deveriam...
Sustentava passos obtusos numa vereda incerta. Dormia onde dava e se alojava como podia. Comia quando tinha. Emagrecera muito. Mas sempre tinha pó. E pó será tua desgraça. Será possível mais desgraça na vida de uma mesma pessoa?
Muitos janeiros passaram. Cresceu. E um dia, depois de muitas doses, o veneno lhe serviu de passagem. Eva adormeceu, espumando pela venta como um cão. Seu corpo enrijeceu. Seus olhos esbugalharam. Não havia mais vida...
A mãe chorava arrependida. A gente põe filho no mundo para depois enterrá-los... Isto não está certo. Eu deveria ter ido primeiro, não ela... Tão jovem ainda. Pára de se lamentar, sua imprestável... disse o marido. Era isso que ela procurava... Mesmo assim seu coração, mais que seu cérebro, sentiria o pesar eterno de ver um passamento prematuro de alguém que lhe saíra das entranhas. E, chorando, jogou ao túmulo suas últimas palavras, que, sem perfeita distinção, parece que foram estas: Recaia sobre mim toda a desgraça que sobreveio a ela...