Show de Pernas
Tenho que contar essa história, embora já faça algum tempo que ele tenha acontecido. Eu trabalhava para a Companhia de Saneamento e exercia a função técnica, para não dizer braçal da coisa. Um dia, junto com outro colega, fomos designados para trocar um hidrômetro que servia para medir a água de um grupo de pessoas. Era um equipamento comunitário e seu consumo pago pela prefeitura. Ao chegarmos lá, notamos que o equipamento precisava ser substituído e não tínhamos na Kombi outro que coubesse naquele espaço, com a vazão necessária. Meu colega de serviço, que adorava e adora dirigir uma Kombi, se prontificou a buscar outro equipamento mas não permitiu que eu fosse junto (até hoje não sei o por quê dele não permitir que eu fosse com ele. Vale lembrar que ele estava separado recentemente). Muito bem, a Kombi fez um poeirão e seguiu pelo caminho de ruas malcuidadas e esburacadas. Eu fiquei lá, em meio ao matagal onde estava instalado o hidrômetro.
Eu não tinha me dado conta de que estava prestes a despencar água. Tão logo a Kombi desapareceu da minha vista, uma chuva de pingos grossos começou. Começou e se intensificou. Um casal de idosos que morava (e ainda mora) em uma casinha ao lado e que também usava água do hidrômetro que eu fazia manutenção, me chamou para lá. Fui e, sem querer incomodar o casal de ancião, decidi ficar na pequena varanda até a chuva passar.
Enquanto conversava coisas aleatórias com o casal, um barulho ensurdecedor vindo da rua me chamou a atenção. Eu, mesmo com a chuva, espichei-me para fora do telhado e fiquei a observar. Era a polícia que fazia uma batida a um grupo de jovens que desde minha chegada, conversava animadamente e até gritava. Muitos, encostados nas paredes das casas, protegendo-se da chuva, se renderam à batida policial. Eram dois homens fardados e barrigudos que estavam de serviço naquele momento. Em poucos instantes, como que em um raio, uma pessoa passou por detrás da casa em disparada. Passou, atravessou a rua e entrou em meio a uma plantação de mandioca. Percebi de imediato que os policiais não estavam interessados em revistar aquelas pessoas, eles queriam interrogar sobre o homem relâmpago que tinha ganhado o mandiocal.
Querendo ser rápidos, os dois policiais entraram no carro. Patinando e jogando pedras e poeira que àquelas alturas ainda não tinha virado barro, eles derem início a uma perseguição.
Caros leitores, nunca vi cena tão ridícula por parte dos policiais e nunca fiquei tão encantado com o verdadeiro show de pernas que o perseguido dava nos homens. Eles cercavam de um lado com o carro e o rapaz saltava todos os obstáculos do outro. Em poucos instantes, ele já tinha praticado várias modalidades do atletismo. Salto em altura, salto em distância e outras que nem sei como descrever.
Os policiais se cansaram. Mesmo sem saírem de dentro do carro, percebi que estavam de língua de fora. A chuva tinha parado e um aglomerado de pessoas se formou na rua e todos, em uma torcida organizada, gritavam e aplaudiam o corredor. Mais dois carros da polícia chegaram. Desta vez, policiais vestidos com grossos coletes e demonstrando ainda mais grosserias que seus equipamentos vieram em auxílio dos dois gorduchos. E o rapaz, como um coelho, continuava dando um verdadeiro show de pernas. Os policiais se espalharam e, de armas empunho, caçavam o corredor. Mais uma vez, como em um relâmpago, o fugitivo deu um salto, atravessou um córrego e ganhou um campo aberto que em outros tempos, fôra um depósito de serragem de uma madeireira decadente.
Sem terem como atirar ou tomar qualquer outra atitude, uma vez que se não saltassem por sobre o córrego, jamais conseguiriam chegar até o outro lado, os policiais simplesmente ficaram observando rapaz negro e de pernas longas desaparecer por entre os outros barracos que ficavam na outra margem do córrego.
Querendo descontar seu insucesso nos moradores, eles voltaram e, aos gritos, diziam: bando de vagabundos, voltem para suas casas, vão achar o que fazer porque senão, vão levar na cara.
Com risos sarcásticos, vi as pessoas se dispersarem. E os policiais despreparados e humilhados, também se retiraram, entraram em suas viaturas e se foram. Os últimos a deixarem o local, foram os dois gorduchos que primeiro haviam chagado no local. Antes de saírem, eu percebi que um deles, o que dirigia, disse para o colega: cara, eu tenho que parar de comer carne, não agüento mais correr. Eu ainda vou matar esse negro, ah! se vou. Neste instante, meu colega chegava com a peça. Enquanto ele trocava o equipamento, decidi perguntar para a vizinhança que voltava a se aglomerar ao nosso lado o que tinha acontecido. O por quê daquela correria toda!? Um menino de uns quinze anos, com um ar sem-vergonha, me explicou: cara, o negócio é o seguinte. O negão anda pegando a mulher daquele policial gordo que dirigia e ele descobriu. No começo ele não fez nada, acho que até gostava, pois poupava seu esforço, mas depois, os outros colegas passaram a tirar muito sarro dele e agora ele quer prender o negão. Só que ele é corredor e sempre dá um suador nos homens. Ele foi classificado pra correr fora da cidade e vai embora na semana que vem. Mas disse que antes de viajar, vai dar mais uma pegadinha na mulher do gordo. E vai mesmo, ele é maluco.
Não consegui conter o riso e este foi seguido por todos ali. Era realmente engraçado o que estava acontecendo. Meu colega que acabara de substituir o equipamento, também ria a não poder mais. Aproximando-se de mim em tom confidencial, o menino disse: esse teu amigo aí também tá enrolado. O negão tá pegando a mulher dele também. Ele se separou faz pouco e o negão não dá mole.
Entramos na Kombi e voltamos para a sede. Eu não conseguia esquecer da cena, mas nada falei para o meu colega. Tempos depois, fiquei sabendo que o rapaz realmente tinha ido embora e que fazia parte de uma grande equipe de corredores. Em uma manhã de domingo, vi pela televisão o Negão liderar uma maratona de ponta a ponta e mais uma vez, não contive o riso. Na frente do corredor, um policial gorducho, sobre uma moto, fazia a proteção do atleta. Meu colega, que tinha voltado com a mulher, tomava cerveja e, aos berros, gritava: vai Negão, vai Negão. Sou fã desse cara. E eu também, disse a mulher enquanto pegava mais uma cerveja na geladeira e ria um riso sem-vergonha.
Jossan Karsten
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