[Sussurrando] Cândice, chama-se. Muito embora predisposta a frequentes surtos depressivos, mantém-se sempre fiel a sua principal característica: é metódica, em quase tudo que faz. E assim, agora, neste momento, como se fosse uma espécie de ritual, ela dispõe, paralelamente, na cabeceira da cama o que utilizará: uma sacola plástica comum de supermercado, uma gilete, um vibrador em formato fálico, um plug de dilatação anal, um tubo de gel lubrificante. Despe-se, vagarosamente, dobrando as peças de roupa com costumeiro cuidado. Empilha-as, uniformemente, sobre o pufe. Suprime uma pequena irritação ao queimar a língua em alguns goles de chá de morango, ainda quente, quase em ebulição. O aroma artificial se espalha pelo quarto. Deixa xícara e pires sobre o criado mudo, não sem aquele som característico. Coloca para tocar, num aparelho de cd player, uma música de meditação: som de ondas do mar, no volume bem alto. Sobe na cama. Seu corpo é de uma mulher de 30 e poucos anos. Desnecessária a sua descrição em detalhes. Talvez a aparência do seu corpo não seja tão agradável para muitos. Ela já disse que não gosta muito do seu corpo. Em movimentos ágeis, mas muito comedidos, ela lubrifica o plug anal e o introduz onde acha que deve. Em seguida, repetindo tudo mecanicamente, é a vez do vibrador, o qual é introduzido na vagina. Não contém um prazer com o gesto. Suspira para não gemer. Deita-se de costas sobre a cama. Apanha a sacola plástica e, com ela, cobre sua cabeça, aproveitando-se das alças para prendê-la fixamente sob o queixo. Com uma das mãos, força o vibrador para mantê-lo bem preso no local. Quase o tem por completo. Fecha os olhos. Deixa-se levar pelo som das ondas do mar. E, em segundos, começam os efeitos. Dez, vinte, quarenta segundos, um minuto ou um pouco mais. Controla como pode o movimento do corpo e a respiração. E, prestes a sufocar, arranca com força a sacola plástica da cabeça, no exato instante em que tem um orgasmo. Goza, geme forte, com sofreguidão. Abre bem a boca para encher os pulmões de ar puro. Recuperar o fôlego. Visivelmente exausta, permanece respirando, em acelerado. Os batimentos cardíacos vão se amainando. [De marionnettes pour les enfants]. É a vez do choro. Ele vem. Vem intenso. Um choro convulsivo, automático, incontrolável. É sempre assim que ela reage ao seu gozo. Fruto de uma insensata vergonha de si mesmo. Distorção de auto-piedade. Visão equivocada de auto-flagelação. Ingênuo complexo de culpa. E, sem parar de chorar, livra-se dos brinquedinhos que lhe preenchiam. Senta-se na cama e apanha a gilete. As mãos trêmulas retratam ainda indecisão, mais que imperícia. Com uma das mãos aproxima a lâmina de um dos pulsos. O corte terá de ser profundo. Mas não haverá necessidade de força. Parece que não irá desistir. Ainda chora. Olhos vermelhos, embaçados. Funga em vão com o nariz congestionado. Começa o corte. Sente a dor. Mas... o ato é interrompido. Suspende o movimento. É a campainha da porta que soa. É impedida de continuar. Parece haver alguém na porta da frente. (?) [Ainda sussurrando] Na verdade, quem chega neste exato instante? Ninguém. Ou melhor, eu (excuse-moi!). Apenas para alertá-la. Fazê-la despertar. Mas não pense que sou alguma salvadora. Não! Eu não existo. Não para Cândice. Sou o que se pode chamar de um tipo meio esdrúxulo de anjo da guarda. Nada daquelas tão famosas roupas brancas, nem asas de penas brancas, tampouco auréola luminosa sobre a cabeça. Isso não existe. Acredite! É pura lenda. Mito. Marketing vulgar para enganar trouxas e vender quinquilharias inúteis. Pura exploração da boa fé das pessoas. Eu apenas havia concedido a ela um pouco de privacidade (se bem que é quase impossível isso!). Nada mais. Ela precisava. Então, dei. Só isso! Sabia como agiria e até quando ela levaria esta sua mania. Jamais a permitiria concluir tamanha insanidade. Percebo quando ela está prestes a fazê-lo, pelo simples movimento quase imperceptível das micro-engrenagens do seu pescoço. Num simples movimento seu de cabeça. Sabe, quando gira a cabeça, assim, pro lado? Como um atrito de pastilhas em minúsculos discos de freios, de um amortecimento hidráulico, de um pequeno jato de ar comprimido, tudo em perfeita sincronia? Mas não é bem assim que as coisas funcionam. Não por aqui. É o grande equívoco de muitas pessoas que costumam dar ouvidos a boatos. A crendices populares. Nossa função primordial aqui é manter tudo em perfeito equilíbrio. Quando algo dá errado, ou era para ser assim, ou alguém, que deveria levar todas as coisas nos conformes, deu mancada. Alguém cagou (desculpem-me o linguajar!). Cagou feio. E é aí que a coisa pega. Processos são abertos. Somos convocados para explicação, testemunhar, fazer relatórios circunstanciados. O diabo a quatro (Ah! Ele adora esta posição!). Uma verdadeira “M”. Conselhos são formados para decidir sobre o caso. Um monte de gente é envolvida. Um transtorno do cão (precisam ver a cara Dele, quando acontece!). Investigam tudo e todos. Por isso, temos que sempre estar atentos, sempre muito atentos. Senão, é o inferno. É o Inferno (o qual não é tão quente como dizem e, muitas vezes, chega à nevar)! [Falando naturalmente] Quanto à minha pupila? Minha doce e meiga Cândice? Nada de grave. Ela costuma fazer isso de vez em quando. Chega a ficar até mais atraente depois dessas tentativas frustradas. Mas já desistiu da idéia. Por hora, por hora. Deixou, sobre a pia do banheiro, a gilete bem ao lado do vibrador. Agora está na banheira. Ensaboa-se com glicerinado, em excesso, que chega a recender. Recupera-se aos poucos. Seu rosto parece mais bonito e jovial até, mas está pensativa. Muito pensativa. Mas eu sei, eu sei. Logo, logo ela irá tentar novamente. Ó, ó! Ela sorri, movimenta a cabeça, olha em direção da pia e ameaça se levantar. Não disse? Não disse? Será a gilete? Ou o vibrador? [Deux instants dans l'enfer]
catherine.lanou@gmail.com