Michelle e eu

Um conto erótico de Catherine Lanou
Categoria: Homossexual
Contém 1770 palavras
Data: 08/08/2009 17:02:55

“Eu sou uma homossexual, Heitor José! Sou lésbica, sou entendida, ou sei lá como quiser me rotular! E não se importe muito em saber quem é o homem, quem é a mulher na relação. Isso não existe. É uma grande bobagem...” Acho que será assim que irei contar ao meu marido que estou amando outra mulher. No susto, bem assim, sem nem ao menos pestanejar. De hoje não passa. Hoje à noite vou contar, quando voltar para casa. Não aguento mais este dilema a me corroer por dentro. Uma angústia que me consome e me deixa deprimida. Quem sabe Heitor José não morre de infarto ao saber da notícia e me facilita as coisas? Seria tudo tão mais fácil. Depois de uma certa idade, todo mundo pode morrer do coração. Por que não o Heitor José? Mas eu devo contar, tenho que contar a ele. Estas coisas não se devem esconder por muito tempo. Acho que é o melhor para todos os envolvidos. Eu, Heitor José e Michelle. Tudo assim, preto no branco, como dizem. Muito bem esclarecido, para que não pairem mais dúvidas. Provavelmente, Heitor José terá um acesso de raiva. Deixar-se-á possuir pelo ser grotesco e pré-histórico que lhe habita. Serei, então, tachada de “sa-pa-tão”, pejorativamente, com o único e exclusivo intuito de me menosprezar, denegrir, rebaixar. Será uma previsível e típica ação bem masculina, conservadora, preconceituosa. Mas acho que será de pura inveja mesmo. Aquele momento em que ele se descobrirá incapaz, impotente, sem poder mais se esconder atrás dos costumeiros gestos, tão grosseiros. Ou então, não descartei esta hipótese, ele irá ficar todo eufórico, excitadíssimo, imaginando-se um garanhão. E talvez queira fazer amor conosco. Duas mulheres ao seu dispor. Seria, sem dúvida, uma coisa horrorosa. É impressionante, mas acho que todo o homem tem esta fantasia de transar com duas mulheres. Ser dono de um pequeno harém. Naquela postura instintiva, animalesca, de procriar, para encher o mundo de filhos. A preservação da espécie, dizem os insanos com a boca cheia. Aquela idéia machista de cobrir as fêmeas, como fazem os bichos. A quase totalidade dos homens mal consegue dar conta de apenas uma mulher, quem dirá duas. Mas não e não. Com Michelle não, pois eu e ela jamais permitiríamos. A sociedade evoluiu. Nós evoluímos. Somos fruto da modernidade, dos dias atuais. Descobrimos que somos donas dos nossos próprios narizes. Descobrimos que podemos fazer qualquer atividade, até aquelas que outrora estavam restritas à capacidade máscula do homem, característica, a meu ver, de uma estagnação evolutiva. O poder dos mais fortes. Vivemos num mundo onde deve prevalecer os mais inteligentes e não os mais fortes. Nós, mulheres, já não nos sujeitamos à ignorância e ao preconceito retrógrado. Nós somos, a cada dia que passa, mais cultas, mais inteligentes, mais hábeis, mais, mais... Pois nem tudo é uma questão de força e sim de jeito. Muitas vezes, apenas de um pouco de malícia. E isso as mulheres têm de sobra. Para a força existem as máquinas, as alavancas, os computadores, a nossa inteligência. Os homens, na maioria das vezes, ao perderem a razão, partem para a ignorância, socorrendo-se da violência, da brutalidade. Ação característica de um brucutu. Talvez eu esteja me preocupando à toa, mas convém que eu me previna e faça minhas cogitações. Tudo é possível. Heitor José é um homem vivido, mas antiquado e cheio de manias, um velho aos 50 anos. Para dizer bem a verdade, não sei qual será sua reação. Ele ainda é uma incógnita. Pensando melhor, tenho um pouco de pena de Heitor José. Sabe? Dó, compaixão. Mas também não posso ficar presa a um homem que já não gosto mais. Ficar com ele apenas por gratidão, por ter me sustentado todos estes anos e por ter pago a minha faculdade, é uma insensatez, um absurdo. Compará-lo com Michelle, então, é uma injustiça, mas é inevitável. Michelle é jovem, meiga, carinhosa, sensível. Possui um fôlego de causar inveja, típico de quem tem apenas vinte e poucos anos. Conhecemo-nos na academia de ginástica. Ela me abordou, puxou conversa, convidou-me para sair. Muitos assuntos interessantes, ene coisas em comum, empatia em cada detalhe. Só poderia dar no que deu. Rolou aquele clima e eu me encantei. Quando me dei conta, estava completamente apaixonada. E ela por mim, desde o princípio, admitiu. Não pude, ou melhor, não pudemos evitar. Já o Heitor José, o que dizer? Está insuportável. Foi criado por uma mãe superprotetora. Quando casou comigo, ele não queria uma mulher e sim outra mãe. Admito que contribuí um pouco. Mas não dá mais. Não dá. Não dá. Quando faço amor com Michelle, ela me diz “eu-te-amo” depois do gozo. Assim, sussurrando no meu ouvido. Maravilhosa e inesquecivelmente. E a gente percebe um eu-te-amo sincero. Michelle me fez conhecer finalmente o que é um verdadeiro e prazeroso sexo oral. Ser tocada na intimidade de um jeito todo especial, suavemente, com delicadeza feminina. Ver estrelinhas no orgasmo. Só Michelle conseguiu fazer isso comigo. Por outro lado, nas últimas, poucas e raras vezes em que fui obrigada a fazer amor com Heitor José, nem sequer houve palavras. Apenas aqueles gemidos surdos, abafados. Aquela coisa maquinal. E depois ele, como sempre, satisfeito, caiu pro seu lado da cama, em frangalhos, exausto e todo suado, dormiu e roncou. Já não sinto prazer algum. Ajo como uma prostituta, que se submete por mera obrigação conjugal. Algo muito triste e melancólico. Mas, quando estou com Michelle, pareço ser outra pessoa. Rejuvenesço. Esqueço dos meus problemas e me dedico inteiramente ao momento. A nós duas apenas. Ali, curtindo cada segundo com Michelle. Michelle me completa. Michelle me fez conhecer o amor que há, e que pode haver, muito além da carne. Michelle gosta de andar nua e de me ver nua. Michelle diz que adora meu corpo, meus seios, meu bumbum, apesar das minhas estrias, das celulites, dos pneuzinhos. Michelle disse que minha vagina é linda, que tenho um gostinho bom. Michelle me dá segurança. Michelle lê poemas para mim. Michelle é professora de balé. Já morou na França. Fala francês fluentemente. Michelle quer me levar para Paris para conhecer seus pais. E Heitor José, em contrapartida, mal sabe falar o português, só ouve música sertaneja, gosta de baile de galpão e nem sequer lê um jornal. Heitor José tem pouco tato com as mulheres, gosta de coisas rústicas e de me levar para visitar seus parentes no Natal, ou nos feriados ou fins de semana prolongados, num sítio num fim de mundo no interior de Presidente Prudente. Michelle é como um anjo, tem um corpo esguio, é magra, é delicada, gesticula com suavidade e mantém sempre um sorriso lindo nos lábios quando fala comigo. Michelle tem um cabelo curtinho, liso, escorrido, castanho-escuro, no estilo chanel. Michelle me faz lembrar da atriz portuguesa Maria Medeiros, quando encenou Anaïs Nin, no filme Delta de Vênus. Comentei isso com ela e Michelle apenas achou engraçada a comparação. Michelle gosta de gatas. Ela tem duas, uma persa e outra siamesa. O Heitor José gosta de boi, cavalo, porco. Ele já está meio calvo e o pouco cabelo que lhe resta é grisalho e duro. Ele cultivou uma barriga horrível, enorme, de quem é fã de cerveja e sedentário. Michelle adora falar de moda, das tendências, de filmes, de livros, e sobre culinária. Michelle gosta de arte, ama falar de Juan Miró, de Kandinsky, do Juarez Machado e do Romero Brito. Michelle toca violoncelo. Michelle toca só para mim. Michelle me ensinou a gostar de música erudita, de jazz e de teatro. Michelle adora tomar banho de banheira. Adora ficar horas de molho e me convida, sempre que pode, para desfrutarmos uma da outra, na banheira cheia de sais aromáticos e espuma. Michelle tem dentes lindos, muito brancos e costuma escová-los, andando pelo apartamento, trajando apenas corpete e calcinha. Fica quase quinze minutos escovando os dentes. Cronometrei um dia. Impressionante. Heitor José tem o péssimo hábito de assoar o nariz sob o chuveiro, como se fosse uma corneta. A vizinhança toda é capaz de ouvir. Foi em vão eu pedir que parasse de fazer aquilo. Heitor José escova os dentes em meio-minuto. Heitor José tem poucos dentes e usa uma ponte móvel. Eu, várias vezes, dei de cara com sua ponte, de molho num copo dágua sobre a pia do banheiro. É uma cena asquerosa, assustadora, como de filmes de terror. Michelle adora me dar flores. Sempre rosas vermelhas. Adoro ver o seu rosto quando me presenteia. Outro dia, presenteou-me com um pequeno vibradorzinho em forma de batom, lindo, discretíssimo. Para eu pensar nela, quando utilizá-lo sozinha, dissera. Mas hoje só tenho olhos para Michelle. Heitor José, num dia das mães, uma vez, deu-me de presente um liquidificador. Como não tivemos filhos, brincou me chamando de mãe. Odiei aquilo. Mas, enfim, não vejo outra saída. Devo tomar fôlego e contar. Passa das onze horas da noite. Chego em casa. Evito fazer alarde. Ouço a tevê ligada no quarto. Heitor José já está dormindo. Ronca que chega a fazer espuma entre os lábios inchados. Quatro latas vazias de cerveja sobre o criado-mudo. Paro para pensar mais um pouco. Talvez, é!, talvez eu diga tudo para ele amanhã. Amanhã de manhã. Mas... reflito mais um pouco, admirando tristemente a cena grotesca. Heitor José deitado, seminu sobre a cama. Sua enorme pança, peluda, subindo e descendo. O ronco ensurdecedor. Apnéias espasmódicas. A baba escorrendo no canto da boca. Parece-se com um animal. Solta um pum automático, barulhento e fedido. É a gota dágua. Não desligo a tevê. E apenas fecho bem as janelas. Estrategicamente, arrumo tudo. Surpreende-me a minha frieza. Deixo abertas apenas a porta do quarto e a porta da cozinha. Estão muito próximas uma peça da outra. Encho uma caneca de água até a borda e, numa das bocas dianteiras do fogão, coloco-a com dois ovos, como se fosse cozinhá-los. Derramo um pouco de água sobre a base das bocas do fogão. Ligo o gás, queimo um palito de fósforo, mas não acendo a chama. Deixo o palito queimado sobre a pia. Uma simulação perfeita do descuido. Sinto o cheiro forte do gás nas narinas. Rapidamente, fecho a porta do corredor que divide os quartos da sala. Ambiente perfeitamente vedado lá dentro. Pego a minha bolsa, meu casaco, saio e tranco a porta da frente com duas voltas na chave, tudo como estava quando chegara. Em meus pensamentos? Michelle, apenas Michelle... Ela disse que Paris é a cidade das luzes, capital do amor. Alcanço a rua em minutos, e, por instantes, penso, questionando-me: não seria melhor ter desligado a tevê? (...) E-mails para catherine.lanou@gmail.com

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