Fazendo arte

Um conto erótico de Heloísa
Categoria: Homossexual
Contém 1665 palavras
Data: 13/02/2010 02:09:03

A vida e a arte muitas vezes se confundem. Há quem diga que a arte é uma imitação da vida, mas quando já não se sabe mais onde exatamente começa a arte e onde exatamente começa a vida, é sinal de que as coisas estão bastante confusas. Pode parecer particularmente confuso a princípio, mas logo vocês entenderão minha visão sobre este questionamento. Penso que embora seja difícil perceber a distinção neste momento, sinto que onde termina a arte, a vida já não existe mais.

O teatro foi onde eu me criei, a princípio na pré-escola, se não antes. Aulas e mais aulas. Peças e mais peças. A canastrisse era pecado. Enganação, ofício. Isto, claro, em termos populares e desairosos, pois um enganador de verdade, precisa manter tal característica para ser talentoso. O ator, por sua vez, para ser considerado talentoso, precisa que seu público saiba que é mentira, por mais que não pareça.

Como não poderia deixar de ser neste meio, onde as liberdades são maiores, haviam os mais diversos tipos de orientações psicológicas em todos os aspectos. Eu, no entanto, ainda não tinha opiniões muito precisas a este respeito, pois não cheguei a experimentar até então esta diversidade. As coisas passaram a tomar um rumo diferente de uma forma bastante improvável, que poderia levar a mais incrédula transsexual a crer no Divino.

Um grande amigo meu, da escola, sempre teve dificuldades de socialização. Não era antipático, nem burro, tampouco feio, mas terrivelmente tímido. Ele simplesmente era incapaz de criar assuntos, mas desenvolvia muito bem se alguém iniciasse e ele sentisse segurança para dar seqüência. Isso acabou gerando entre nós uma amizade singular, pois entre todas as características já associadas a mim, não lembro nunca de ter visto o adjetivo "tímido".

Entre outras liberdades tão acessíveis aos artistas estavam os remédios sem receita, além dos entorpecentes legais e ilegais. Como muitos companheiros de palco, eu fumava e não apenas tabaco. O álcool também era uma constante em meu cotidiano. Desta forma, às vezes eu criava alguns problemas, me endividando com gente de índole não muito boa e era sempre ele quem me salvava, mas não sem antes me censurar e depois, ao receber minha mesada, eu sempre devolvia, embora nem sempre no imediato mês seguinte. Isto, vale dizer, desde o início de nossas adolescências.

Durante alguns dias, porém, eu vi meu amigo angustiado. O Raul não falava, mas era visível para mim, que conhecia suas intimidades. Depois das aulas, em certo dia, intimei a conversar e após alguma resistência, ele acabou desabafando enquanto tomávamos um suco na escadaria da escola. No começo, ele estava cheio de rodeios, explicando coisas que eu já sabia, como o fato de que freqüentava uma igreja protestante, próxima à sua casa, aos domingos e participava do grupo de jovens. Dizia também que tinha dificuldades em se relacionar por ser muito tímido, entre muitas outras obviedades...

Aguardei pacientemente que ele finalmente entrasse no assunto real, pois pressionando, certamente acabaria sem saber do que se tratava. Como o leitor não tem a menor obrigação de ler tanta ladainha, segue-se o resumo. O grupo de jovens organizaria uma espécie de festa para arrecadar fundos que seriam utilizados na comunidade carente próxima ao bairro. Ocorre que meu amigo era o único solteiro e sempre assim o fora. Por mais que tivessem um forte senso de moral, até influenciado pela religião, acabava ocorrendo algo semelhante ao bullyng.

Os rapazes, particularmente, sempre faziam chacota por Raul nunca ter conhecido uma moça e ele, pressionado, acabou mentindo. Há meses jurava ter uma namorada e agora, na confraternização, se não levasse a famosa, colocaria tudo a perder. Estava com vergonha de seu ato, mas o que fazer agora, se não conhecia nenhuma moça? Ele estava sem graça de pedir, mas precisava agora da minha ajuda. Para encontrar uma namorada? Não... Para fingir sê-la.

Os argumentos eram vários. O primeiro é por nossa intimidade, o que facilitaria na interação com seus amigos. Facilitaria também para que ele conseguisse comprir seu papel na farsa. Além disso, ele sabia que nos palcos, eu já tinha atuado como mulher e ademais, era só uma atuação sem mais dificuldades, já que ninguém acharia estranho o jovem casal religioso não demonstrar em público seu afeto mútuo.

Ele já me salvou a pele um sem número de vezes anteriormente, sem pedir nada em troca. Não havia condição de recusar. Isso, claro, sem considerar que para mim seria divertido atuar em meio àqueles desconhecidos, os quais eu tinha a missão de fazer acreditarem estar diante de uma graciosa e recatada menina.

Assim, fui ensaiando durante o mês e no final dele, só tive o trabalho de ir ao camarim do teatro onde estudava para me preparar. Já estava previamente depilada e as unhas em um rosa tão claro que dificilmente alguém se daria conta delas. Meu corpo muito magro precisava de alguns ajustes, que tomei o cuidado de adotar. Da cintura para baixo, eu usava uma saia lápis creme, com zíper atrás, pouco acima do joelho; justa mas ainda com espaço e conforto pra movimentar e assim evitar a vulgaridade. Por baixo a calcinha branca já era bem mais vulgar, mas ninguém se daria conta dela e de seus babados, até porque, quase toda ela estava escondida entre minhas nádegas... O restante se ocupava de esconder o meu pênis, o qual amarrei para trás após um banho de água gelada na bainheira de casa.

Na parte de cima, um sutiã com um pequeno bojo por baixo de uma blusa de malha chumbo, com gola rolê bem grossa. Assim eu logo estava com agradáveis "seios visíveis", uma cintura finíssima e após subir no salto alto, um bumbum irretocável. Os cabelos loiros, cortados pouco abaixo da altura do pescoço, foram fáceis de dar um tom feminino, saindo da habitual androginia. Brincos discretos, tratando-se de uma bolinha de brilhante cravado na orelha, completavam o visual, junto com a maquiagem comportada e discreta.

De táxi, segui para a residência do meu namorado postiço e comecei a representar, dando um selinho nele, na porta de sua casa, onde fui recebida. Para mim, aquilo não significava nada, como já expliquei anteriormente, mas o Raul ficou em choque por um tempo, até perceber que era melhor me levar logo para dentro e me apresentar aos pais, que me receberam calorosamente.

Já estava na hora de irmos, então não houve tempo para longas conversas, mas sua mãe não se privou de censurar meu cabelo, que deveria ser longo, conforme a vontade de Deus. Nunca entendi muito bem o porque de Deus querer que as mulheres tenham o cabelo cumprido, mas nem entrei no mérito da questão, pois pela lógica dela, o meu deveria ser muito mais curto do que aparentava e definitivamente o filho dela não deveria estar excitado como denunciava sua calça enquanto seguiamos de mãos dadas, no banco de trás do carro.

Passei a noite me divertindo, conversando com as meninas enquanto ajudava na organização e entretia quem se aproximasse, com minha conversa. Enquanto as meninas cuidavam comigo das barraquinhas de alimentos, os rapazes tratavam de carregar peso. Vale dizer que nesse aspecto, dado meu desenvolvimento muscular, meu papel ali só poderia ser o de menina, mesmo... Vez por outra o Raul, se aproximava e ficávamos abraçados enquanto conversávamos com seus amigos, que em determinado momento já eram amigos meus também. As vendas foram boas, a comida farta, a encenação perfeita e a limpeza árdua, na minha opinião. Nesta última parte, fiz corpo mole, pois confesso que não estava com o espírito preparado para bancar a gata borralheira.

Enquanto os demais se ocupavam da limpeza ficamos sozinhos num canto visível, mas inaudível, conversando como dois namorados. Ele, encostado na parede, me abraçava por trás, com as mãos em minha barriga e falava comigo roçando sua barba em meu pescoço, penso que sem perceber, mas como eu percebia, sentia um enorme desconforto com meu membro preso como estava. E esta sensação era inédita para mim, mas tentei disfarçar.

Raul me dizia que eu não deveria tê-lo beijado e que isto não tinha sido combinado. Ficou falando sobre isso e eu mal conseguia me concentrar, devaneando se ele não sentia o mesmo desejo que eu e, se sentia, como conseguia pensar tanto e ponderar suas palavras. Outra coisa que me passava pela cabeça era a provável razão de sua timidez. Seus pais eram extremamente repressores. Raul não tinha direito a opinião, nem a gestos, nem a nada que ferisse o conceito de certo imposto por eles.

Voltei a prestar atenção quando senti seus lábios em meu lóbulo da orelha. Olhei para ele atordoada e recebi neste momento seu sorriso, perguntando se agora eu prestaria atenção. Antes que eu pudesse responder, tinha seus lábios nos meus. E não só os lábios, como também a língua. Tudo isso, sem que nos virássemos um para o outro. Realmente não havia mais nada a se pensar.

Passado o beijo, Raul foi para junto dos demais ajudar a desmontar as barracas e finalizar o serviço, enquanto eu fiquei sentada num banquinho tentando racionalizar o que acontecera, com o mesmo sucesso que tive na tentativa de disfarçar a alegria que eu sentia. Sucesso tamanho, que logo as meninas vieram me perguntar se tinha acontecido alguma coisa.

Logo estavamos indo embora, novamente de mãos dadas, que agora pareciam liberar mais calor. Me deixaram na porta de casa, onde aguardei sumirem de vista para então voltar de táxi ao camarim e me tornar novamente um menino. Entrei em casa e dormi, com a cabeça confusa, pois nunca me considerei homossexual até então, mas agora não conseguia me desvencilhar totalmente da representação. Mais do que isso, sonhei estar abraçada com ele, como estive horas antes, mas em meu sonho não usavamos roupas.

Na segunda-feira, voltamos a nos ver na escola. Esperava encontrar um ar de cumplicidade, mas agora Raul estava mais pesaroso do que nunca. Mal me olhava nos olhos e desta vez não cedeu aos meus interrogatórios. Ao menos por duas semanas...

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