Uns diziam que era um demônio quase igual a um lobisomem, o que era mais fácil de ser imaginado. Quase igual, porque não matava suas vítimas. Só no sentido figurado. Matava de prazer. Outros, mais letrados, afirmavam que se tratava de um fauno, coisa que ninguém sabia ao certo o que era, mas metia medo também.
Talvez mais.
Fauno ou lobisomem, uma coisa em comum: era um bicho medonho que nas noites de lua-cheia entrava no quarto das meninas virgens para fazê-las sangrar pela primeira vez, e depois também. Primeiro lambia-lhes as coxas. Lambidas longas, molhadas e tão intensas que elas, perdidas da realidade pelo sono, não sabiam se era pesadelo ou sonho, porque, mesmo sem querer ou querendo, e quem há de saber, abriam as pernas em êxtase. Meticuloso, usava as longas unhas afastar os lábios da concha virginal para nela vibrar sua língua úmida e quente, áspera como uma lixa, até que elas lhe oferecessem o sangue da primeira menstruação. Inebriadas pelas primícias, ofegavam e gemiam; muitas, confusas pelos efeitos medonhos do pavor e do prazer até então desconhecidos, gritavam, mas ninguém as ouvia nem socorria e, abandonadas sob o efeitos da mais inelutável das resignações, abandonavam-se de si mesmas, até que a exaustão do gozo primal lhes devolvesse o sono. E acordavam “moças”, com os rubros vestígios das suas primeiras “regras” nos lençóis.
Ele não as penetrava, afirmavam, o que era difícil de acreditar.
Só depois, quando já estavam casadas ou passado da idade de casar. Havia controvérsias com relação às mulheres já velhas. Uns afirmavam que ele as abandonava; outros diziam o contrário, porque só ele dava sentido às suas existências em extinção, fazendo-as agarrarem-se à vida.
Com as casadas, era perverso.
Encantava os maridos para que continuassem em sono profundo e calava o grito da mulher com seu membro descomunal, de cabeça azul-arroxeada ou negra, de formato tal que mais parecia uma pêra invertida, não se sabe ao certo, porque a imaginação das pessoas não tem limites, pois também diziam que era vermelha como um morango ou uma cereja. Em seguida, fazia fluir por suas gargantas uma espécie de pré-gozo abundante, que não era transparente, como o dos mortais. De consistência oleosa, tinha cor de âmbar, recendia levemente a almíscar. Repugnadas, mas sedadas por uma luxúria que nenhum humano seria capaz provocar-lhes, principalmente o inerte marido ao lado, elas sorviam o caldo com nojo e estranho fervor.
E aí, decaídas e motivadas pelas delícias do despudor com o qual não podiam lutar, abriam as pernas e se ofereciam ao sacrifício. E o fauno, sem a menor contemplação, enterrava-se nelas de uma vez só, mas bem devagar, para que sentissem, não apenas suas carnes se esgarçarem até os dolorosos limites do rompimento, mas também as ásperas e pontudas verrugas que recobriam seu pênis colossal. Diziam que essas deformações as faziam enlouquecer de prazer e mergulhar, sem volta, na mais sublime das lassidões: a da entrega absoluta.
Insaciável, copulava sem parar e tinha gozos sucessivos e abundantes, ferventes, aos quais elas correspondiam com orgasmos, igualmente intensos e sucessivos, profundos, até que, esgotadas pelo prazer jamais sentido, desmaiavam.
Em seguida, desaparecia levando com ele os vestígios da sua visita. Quase todos. Certos rastros ele não tinha como evitar. E todo mundo sabia quando ele fazia sua aparição. Diziam que as meninas virgens botavam corpo e perdiam o olhar de inocência. Já as casadas, ficavam mais viçosas, com cara de felicidade. Os homens, envergonhados, emudeciam, ficavam melancólicos ou agressivos. Afirmava-se que, mesmo profundamente adormecidos, o fauno os fazia sentir sua presença infame através de pesadelos horríveis, dos quais eles não conseguiam sair, aprisionados pelo sono profundo.
Já as velhinhas, passavam a ir com mais freqüência ao confessionário, para horror do senhor vigário, que não acreditava na maluquice, e recusava-se, indignado, a dar-lhes a penitência e o perdão. Algumas resignavam-se. Outras, nem ligavam. O que se tem. À conta da certeza, é que mesmo afundando no lamaçal de misérias da velhice, todas morriam felizes.
Havia apenas um jeito de impedi-lo: Deus. Pegar-se a Ele de corpo e alma e clamar, todas as noites, por sua proteção e piedade, até a dor nos joelhos tornar-se insuportável.
Nunca cheguei a escutar realmente, mas também diziam que à certa hora daquelas noites temerosas, era possível ouvir o coro murmuroso das virgens, das casadas, das passadas, das velhas e, o que não duvido, de alguns dos maridos, todos rezando. A maioria, acredito, para não serem visitados. Muitos, porém, clamando por sua presença.
Esta é a versão mais ou menos “completa” da estorinha que escutávamos desde criança. Coisa de cidade pequena, povo cheio de inventividade supersticiosa, humor negro e muita hipocrisia.
Primeiro, ensinavam só fragmentos, claro. Como um quebra-cabeça maniqueísta.
Com os anos e as inevitáveis fragilidades da inocência, chegávamos aos detalhes mais sórdidos. E mais interessantes, porque povoavam nossas mentes com pensamentos que nos levavam a extremos de pavor, de curiosidade, angústia e doce agonia.
Mas traziam pesadelos. No meu caso, então, louca por mistérios, pesadelos desgraçadamente recorrentes.
Desses de se acordar gritando no meio da noite. Mas nunca me lembrava direito o que de tão apavorante tinha ocorrido.. Lembranças confusas, flashes sem muita nitidez. E uma certeza: eram com o fauno.
Até que, embora ainda pesadelos, eu já não acordava gritando. Nem acordava, porque já não eram pesadelos, mas sonhos dos quais eu , mesmo apavorada, não queria sair.
Se me faltasse um pouquinho de racionalidade, eu juraria de pés juntos que ele me visitou no dia em que menstruei pela primeira vez.
Mas que é quase uma certeza, é.
Viemos para a cidade grande e a história ficou meio dependurada no estranho varal que junta distância e passado, mas permanece ali no quintal da alma, a nos espreitar. E quando voltava ao presente em família, surgia carregada do ridículo e do patético Motivo de gargalhadas.
Menos para mim.
Eles não sabiam.
Eu pensava no maldito quase todos os dias, mais ainda naqueles que precediam à minha menstruação, quando os nervos ficam à flor da pele, aguçados.
Ele tá vindo me lamber, vai me lamber todinha.
E o “todinha” era pensado em câmera lenta. To...di...nha.
Eu chegava a suspirar.
Não, não estava maluca para achar possível a pavorosa visita, embora ela, ao final das contas, para todos os efeitos, ocorresse.
Assim são os delírios, admito.
Ele só vem chupar, só chupar, me chupar to...di...nha. E as imagens iam se construindo na minha cabeça ao sabor do medo e da languidez, e as dormências esgarçando os limites da minha imaginação. Sou virgem, ele não vai se atrever a meter aquele troço em mim, me machucar. Só vai me lamber toda, to...di...nha. Não, não posso confiar. E se ele muda de idéia? Ai, meu deus! Não. Ele não vai fazer isso comigo, só vem chupar, chupar e lamber. Sou virgem. Não vai enfiar aquilo na minha boca nem me obrigar a beber o óleo que ela vomita, não. Quem vai vomitar sou eu. E via a coisa pavorosa, verruguenta. Que cheiro terá meu Deus? Almíscar ou enxofre? E chegava a senti-los, sem saber se eram horríveis ou devastadoramente excitante, e quanto mais os “sentia”’ e em dúvida ficava, mais as dormências me envolviam.
E ele vem, e ele vem, vem hoje, de hoje não passa, eu sei que vem, mas só me chupar, só me chupar até meu sangue descer, só isso, não vai me fazer mal, não, num vai, sou pura, mas se ele quiser minha pureza? Eu vou ter que deixar, que deixar...eu vou deixar. Ele tá vindo, tô sentindo, ele tá vindo, tá vindo, meu deus, tá vindo...e se ele me foder, me foder...
E ele aparecia, vertiginoso, e não me chupava, mas fazia eu sentir suas unhas horrorosas, ponteagudas, me abrindo, a aspereza de sua língua infame, mas não metia nem obrigava a chupar. Graças a Deus, meu bom Deus. O que era uma ilusão dentro de outra, porque ele não enfiava o pavoroso falo na minha boca, mas eu o sentia forçando minha língua e o céu da boca, tocando na minha garganta e expelindo seu óleo repugnante; não metia em mim, mas eu sentia ele entrando, rompendo meu cabaço, do sangue espirrar nas paredes, juro, nas paredes, e ensopar o colchão; e, as verrugas pontiagudas arranhando minhas entranhas, causando-me dor, muita dor, uma dor insuportável mas deliciosa, e quanto mais intenso era o ir-se e vir-se, daquela coisa que não parava de ejacular, lavando-me por dentro com seu catarro fervente, que vazava com abundância quando ele tirava mais um pouco, a dor crescia, e ele sem parar de gozar, a me lavar por dentro, e a pressão na cabeça, paralisando meu pensamento e minha respiração, por que a dor deliciosa chegava ao limite do suportável, que era, na verdade o gozo, e acabava de súbito, trazendo um cansaço mortal, e mesmo sem forças, num rasgo de razão, abatida pelo êxtase profundo, procurava por ele mas já não o via, porque nunca o via nem o tinha visto, mas o tinha sentido, que tinha tinha, porque assim são os delírios, pelo menos os meus, e tudo se acalmou, menos meu coração ainda acelerado, e sinto o meu melado nos dedos, mas está escuro, não dá para ver se minha menstruação veio, ou se é apenas meu gozo, e tomara que seja apenas meu gozo, porque aí ele vem amanhã, fazer meu sangue descer, se Deus quiser, pois se não quisesse ele não teria vindo.
E o cansaço me leva até o dia seguinte, num sono pesado, completo, mas com um medo verdadeiro: a impressão de que jamais conseguirei alguém tão real como ele, para me fazer gozar tanto.