Tudo começou com uma pesquisa que fizemos sobre as drogas.
Eu e meu grupo fomos a alguns centros de reabilitação para usuários de drogas. Haviam os
particulares com muitos recursos e os públicos que eram bastante carentes de qualquer tipo
de apoio, faltavam profissionais e médicos, as condições de higiene eram precárias,
realmente de assustar.
Houve um que me deixou realmente abalado, era público, tinham crianças, sempre acompanhei
pela televisão que crianças, adolescentes e pré-adolescentes e principalmente os moradores
de rua entravam no mundo das drogas e se prostituiam para conseguir comprar drogas, mas nunca
havia acompanhado aquela realidade de perto.
Eu me senti bastante comovido com aquela situação e resolvi me voluntariar naquele abrigo,
a princípio houveram algumas implicações burocráticas, pois eu tinha 17 para 18 anos naquela época
e enquanto menor eles fizeram uma certa resistência, mas contei muito com o apoio dos meus
pais na época, eles estavam receosos com o fato de eu ir fazer um serviço voluntário em
um lugar tão arriscado e me expor a certos perigos.
Comecei a trabalhar naquele centro de reabilitação , encarei a dura realidade daqueles jovens
e crianças , o descaso de algumas pessoas com a situação deles , de início eu apenas ajudava
na parte administrativa, organizava fichas e não podia ter muito contato com os internos.
Com o tempo comecei a ganhar um pouquinho de liberdade , já estava com dezoito anos. Comecei
a perceber as carências daquele lugar , sabia das más instalações , das condições irregulares
de higiene , mas nunca havia me inteirado dos métodos aplicados para promover a reabilitação
dos internos. Comecei a perceber que eles não investiam em atividades, apenas isolavam aquelas
crianças e jovens do mundo externo e das drogas por um muro alto e cercado, mas não faziam
nenhum tipo de trabalho efetivo , o máximo que havia alí dentro era uma televisão, aliás, com um
péssimo sinal.Sugeri a Sra. Sonia que era coordenadora que buscassemos algumas
atividades como esportes e outras ocupações para aqueles jovens. Ela me disse que a verba que
o núcleo recebia era insuficiente para arcar com as despesas mensais e que não havia recursos
para maiores investimentos. Achei aquilo um absurdo, mas não poderia deixar aquilo acontecer.
Me ofereci para fazer algumas atividades com as crianças , eu mandava muito bem no origami e
em arte com materiais recicláveis. Aquela iniciativa deu certo, conseguia trabalhar bem com
as crianças na faixa de 09 a 12 anos de idade , os adolescentes e os maiores não mostraram muito
interesse. Um dia chegando em casa eu esbarrei com o Dr.Carvalho , ele era psiquiatra e sempre
ouvi dizer que era uma pessoa muito boa. Conversei com ele sobre o núcleo e perguntei se ele
não poderia prestar algum tipo de ajuda voluntária. Ele me disse que admirava muito a minha iniciativa,
mas que ele fazia muitos congressos e quase não ficava na cidade ou no país,ele sentiu minha
tristeza e logo apresentou uma alternativa, disse que iria solicitar a algum médico recém formado
do hospital que tivesse disponibilidade para prestar apoio ao núcleo. Não demoraram algumas semanas
e logo estava lá a Dra.Catarina , médica, jovem , recém formada, mas com bastante conhecimento e
muito dedicada. Consegui reunir alguns outros voluntários , o professor Marcos , meu professor
de educação física na escola , Adriana sua esposa que é professora de ballet e jazz. As coisas começaram
a mudar por alí , senti que os internos respondiam muito melhor e apresentavam melhores resultados
no tratamento médico em conjunto com atividades físicas. Alguns professores também se voluntariaram
para trabalhar na alfabetização daquelas crianças e jovens, mas era um trabalho muito difícil, pois
as drogas afetam muito o sistema neurológico e causam problemas que precisam de tempo para
serem revertidos dependendo do grau. Obviamente que nem tudo foi flores , tivemos algumas perdas,
algumas fugas, situações que nos deixavam tristes, mas a parcela que tinha sucesso sempre era uma
grande motivação.
Um dia quando eu estava chegando ao núcleo fui surpreendido por alguém que se atirou em
cima de mim , pensei ser algum assalto ou coisa do tipo. Não reagi , mas logo aquela pessoa
caiu. Era um jovem , devia ter aproximadamente 21/22 anos , muito bonito ,moreno claro,
cabelos lisos e negros, tinha o corpo atlético mas muito maltratado , tinha feridas e micoses. ele estava quase
desacordado e pedia por ajuda. Chamei a Dra. Catarina e ela analisou, disse que era um caso
que ela não teria recursos de atender alí , chamamos a emergência e ele foi levado. Como eu
não era da família não poderia visita-lo, mas a Dra. Catarina poderia na qualidade de responsável
médica pelo núcleo. Algumas semanas depois o jovem teve alta, ele foi levado ao núcleo. Seu nome é Nicholas.
Ele foi levado para um dos quartos e necessitaria ficar alguns dias de repouso, ainda estava muito abatido.
Eu fui desejar boas vindas ao jovem.Ele estava deitado sobre a cama , quando me viu deu um
leve sorriso. Eu me aproximei e dei boas vindas a ele , ele me segurou pelas mãos e agradeceu,
disse que a última imagem que ele gravou foi a minha e que estava muito grato por estar alí e tendo
uma nova chance. Eu me retirei e continuei minhas atividades.
Com o passar do tempo eu comecei a conhecê-lo melhor, ele era bastante inteligente, parecia
ter estudado , me contou as coisas que ele havia passado, a maneira que havia entrado nas drogas (influência), os
prejuízos que ele havia causado aos seus pais que se divorciaram pelos problemas do filho. Contou sobre
a namorada que o largou e outras situações. Nos tornamos bastante amigos, apenas respeitava os
momentos aonde ele ficava fechado e tenso, pois sabia que eram reflexos da abstinência. Ele era
encantador , senti que estava me apaixonando por ele , mas jamais poderia demonstrar isso, pois
poderia ter problemas no núcleo. Estavam chegando as festas de final de ano, estavamos nos programando
desde o mês de novembro para fazer um natal para os internos. Nicholas me pediu que procurasse
sua mãe , me deu o endereço e fui em busca da Sra.Lucia , quando cheguei até sua casa ela abriu
a porta bastante aflita. Parecia que temia o tempo inteiro receber alguma notícia triste sobre
seu filho, mas graças a Deus eu era o mensageiro de uma boa notícia. Uma casa modesta, casa
de pessoas de classe média , estava um pouco deteriorada, senti a falta de alguns móveis. A Sra. Lucia
me contou que alguns móveis e aparelho haviam sido levados pelo filho para comprar drogas. Isso
de fato acontece em muitas famílias, mas contei para aquela mãe tão sofrida que seu filho estava
se recuperando , ela deu um suspiro e sorriu levemente, disse que não alimentava mais esperanças, mas que
qualquer boa notícia era bem vinda. Pedi a ela que fosse a comemoração de natal do núcleo para
que pudesse ver o filho. A comemoração de natal havia sido marcada para o dia 18 de dezembro. Estavamos todos
animados para a comemoração, haviamos recebido doações de roupas e brinquedos novos e de fábrica. O cardápio seria
cedido por um restaurante que ficava na redondeza , realmente o trabalho do núcleo havia reduzido um pouco o número
de usuários , principalmente moradores de rua da redondeza e recebemos bastante apoio. Neste dia eu saí de casa bastante
animado e avisei aos meus pais que logo após iria a festa de aniversário da Julinha, minha amiga desde a 5ª série e que a festa iria durar a noite toda.
Ao chegar no núcleo tive um grande baque. Nicholas havia fugido. Fiquei arrasado, sentia tristeza pelo fato de gostar dele
e querer sua recuperação e também me preocupava a forma com que eu iria dar a notícia a mãe dele que viria para ver o filho.
Comecei a ajudar nos preparativos, não queria demonstrar tristeza aos outros internos, afinal
era o dia em que eles iriam receber seus presentes e comemorar o natal e para alguns era o primeiro natal.
Na parte da tarde a mãe de Nicholas chegou, era o momento mais doloroso. Eu acenei para ela um pouco sem jeito, mas
sabia que mais cedo ou mais tarde teria que comunica-la sobre a fuga de seu filho. A comemoração corria , distribuimos os presentes
as comidas , observava o tempo todo a Sra.Sonia , ela procurava seu filho , dava dó ver aquela cena.
Ao término da comemoração eu tomei coragem e fui até ela , ela já me esperava com um olhar apreensivo. Eu contei a ela
sobre o ocorrido, ela apenas baixou a cabeça , não chorou , parecia que já esperava algo assim, parecia que aquilo não a surpreendeu.
Senti muita pena por aquela mãe. Ela se levantou e me deu um abraço, não disse nada, apenas me abraçou e se retirou. Eu saí do núcleo
já eram cerca de 21:00hs , liguei para a Julinha, estava quase desistindo de ir a sua festa, mas preferi ir e distrair um pouco minha mente para tirar o foco da
situação do Nicholas. Peguei um taxi , o motorista era muito irresponsável, corria muito, fiquei com receio, andamos alguns metros e aquela situação estava
me deixando com medo, tinha a sensação de que iriamos bater. Desci do taxi, paguei ao motorista. Ele me disse que era preferível que eu descesse na avenida principal,pois
aquela área era perigosa. Eu optei por não continuar a viagem , ele sacudiu os ombros e foi embora. Realmente aquela rua era muito estranha, dava medo, andei alguns metros,
cheguei perto de um viaduto com pouco movimento, o cheiro de fezes e urina humana era intenso e dava enjôo. Comecei a ouvir alguns assobios e algumas vozes.
Logo fui cercado por um grupo de garotos , alguns pareciam bem novos e outros mais velhos , eram moradores de rua. Eles diziam:
-Até que da pra fazer uma gracinha com o cara aí . Um deles se aproximou de mim e disse:
- cabeludinho, cheiroso. Ele me agarrou , eu não conseguia reagir , não sabia o que iria me acontecer naquele momento. Logo eles começaram a se afastar, Nicholas estava lá
mandou que me largassem. Eles me soltaram e caí no chão, Nicholas estava sob o efeito de drogas, transtornado, mas me retirou daquele lugar , ouvimos algumas sirenes que pareciam
ser de polícia. Nicholas me puxou pelo braço e corremos , os demais também correram. Fomos até a entrada de uma reserva florestal, os portões estavam entre-abertos , entramos, Nicholas me
orientou que não olhasse e nem falasse com ninguém. Subimos por uma grande ponte de concreto que fazia travessia para os dois lados da reserva. Ao subirmos eu percebi que alí ficavam alguns usuários, era
um forte cheiro daquela erva infeliz.
Andamos pela ponte, ele me puxava o tempo inteiro e machucava um pouco o meu braço.
Depois de alguns metros nós paramos e nos sentamos. Ele se recostou, ficou muito tempo em silêncio, eu sempre respeitei o silêncio dos
internos. Meu celular começou a tocar, ele me pediu que desligasse depressa, não podiamos chamar atenção de ninguém ali. desliguei o telefone, era a Julinha
eu peguei o telefone e mandei um SMS dizendo que não poderia ir, mas que estava tudo bem e que depois conversaria com ela.
Depois de algum tempo ele começou a falar. Disse que era um fracassado, que jamais iria conseguir sair daquela vida, que nunca iria conseguir se redimir com sua mãe.
Eu o ouvi , disse a ele que não desistisse , que ele poderia contar com o meu apoio e que estava ao lado dele. Ele me olhou, parecia ter lágrimas nos olhos, me abraçou e agradecia, ele chorava feito
criança. Eu apenas fiquei alí , dando apoio a ele e me sentindo cada vez mais sensibilizado e apaixonado por aquele garoto.
Algum tempo depois ele disse que eu poderia dormir e descansar que ele tomaria conta, eu deitei sobre o peito dele e ele me envolveu com os braços. Eu dormi , as vezes acordava com algum barulhinho da mata, pássaros e insetos que
fazem barulho. Ele se manteve acordado,sabia que aquilo era resultado da droga, que dava insonia, mas ele me aquecia o tempo inteiro.
Por volta de umas 05:30hs eu acordei, já começava a clarear o dia. Eu olhei para ele, estava abatido, já havia passado o efeito dos entorpecentes e ele estava cansado, passei a mão sobre seu rosto e cabelo, ele sorriu. Nos levantamos
e fomos embora. Ele estava disposto a retornar ao núcleo, paramos em uma padaria , tomamos café , logo após pegamos um ônibus que nos deixaria perto do abrigo. Quando descemos do ônibus ele puxou do bolso de sua jaqueta um cigarro amassado
eu pensei se tratar de "erva" , mas ele logo me acalmou dizendo que era cigarro comum , um outro grande mau, mas naquela situação era o menor deles.
Chegamos ao núcleo , o porteiro nos recebeu , pediu que entrassemos , Nicholas foi tomar um banho e dormir. Eu contei o ocorrido a coordenadora, ela me dispensou das atividades naquele dia. Fui para casa e dormi o dia inteiro. Na semana seguinte
retornei ao núcleo e conforme passavam os dias eu ia percebendo o esforço do Nicholas, ele se dedicava a todas as atividades esportivas, controlava o horário dos remédios e ficava lendo colunas esportivas de jornais e alguns livros também.
Ele sempre conversava comigo , começou a me ajudar nas atividades com as crianças , passou a jogar futebol com os meninos menores , estava cada vez melhor, ele passou o ano novo dentro do núcleo e mantinha-se firme na sua proposta de recuperação.
Eu teria que fazer uma viagem e me ausentar uns 15 dias , mas antes tinha que cumprir um desejo de Nicholas, ele me pediu que o levasse até a casa de sua mãe, queria mostrar a ela que dessa vez ele iria melhorar. Fomos até a casa de sua mãe. Os primeiros
momentos foram difíceis , ela me olhava com simpatia, mas a presença do filho a deixava tensa, depois de alguns minutos eles se abraçaram e choraram, a D.Lucia me abraçou e agradeceu pelo que eu estava fazendo pelo filho. A minha dedicação a Nicholas era
da mesma maneira com que era para os demais internos meninos e meninas , mas não podia negar que havia me apaixonado por ele e que fazia um voto muito especial pela sua recuperação. Saímos da casa de sua mãe e retornamos ao núcleo. Quando chegou a noite eu fui me despedir de todos,
avisei que passaria alguns dias fora. Senti que as crianças ficaram um pouco tristes, mas eu disse que voltaria logo. Quando estava quase no portão Nicholas me pediu que o acompanhasse, eu o segui , ele me levou até a parte do terreno aonde seria no futuro construída uma pscina. A área ainda tinha um gramado
e algumas árvores que cercavam , as luzes da rua iluminava somente no alto, mas o restante era escuro. Ele me abraçou e novamente agradeceu por tudo que estava fazendo por ele. Ele disse que ficaria louco se eu demorasse mais do que quinze dias, eu fiquei preocupado, pois era de certa forma arriscado um interno
assumir vínculo afetivo com algum funcionário, me afastei um pouco. Ele disse: por favor não me evite, eu sei que você tem medo de ir contra as normas daqui, mas se eu não te disser uma coisa eu não vou ficar sossegado. Ele declarou seu sentimento por mim , fiquei com medo, mas ao mesmo tempo feliz, eu também o amo, mas tinha medo de aquele relacionamento ter consequencias negativas para ele e para mim.
Ele me beijou , parece que todo aquele momento foi mágico , ninguem apareceu , tudo conspirou, ele me abraçou , acariciava meu rosto enquanto dizia que aguardaria ansioso o meu retorno.
Saímos daquele lugar mágico, apesar de ser um terreno em construção, tudo ali parecia mágico. Viajei e todos os dias ele me ligava , pedia autorização para me comunicar sobre o andamento da sua recuperação e também ficou distraindo as crianças com futebol e outros esportes junto com o professor Marcos.
Quando voltei tive que conduzir as coisas com bastante calma para que nada ficasse aparente e mais da minha parte, ele sempre me olhava e até hoje é assim, apenas sorri, eu que tinha medo de dar bandeira, pois estava completamente apaixonado por ele.
Apesar de sempre ter sido muito discreto , quando estamos apaixonados é muito comum denunciar isto.
Dois anos se passaram, estamos juntos, eu sempre o acompanhei nas visitas a sua mãe, ele irá ter alta daqui a umas semanas , estamos com alguns planos, mas só o tempo irá dizer.
Sabem de uma coisa , hoje aprendi , não só com o Nicholas , mas com todas aquelas crianças e jovens, aprendi que é possível transformar as coisas, eles tem vontade de mudar , muitas vezes se mostram resistentes por serem muito mau tratados e banidos, mas se você der uma chance, se várias pessoas se unirem, podemos mudar esse cenário , devagar mais podemos.
Basta que as pessoas do asfalto, as mais favorecidas , doarem um pouco do seu tempo e boa vontade, que parem de olhar para o próprio umbigo e de agirem como hipócritas manifestando pela
paz e o fim das drogas quando muitas delas sustentam essa situação.