Éramos quatro. Ainda somos na verdade, e muito unidas. Sempre fomos quatro irmãs: Mariana é a mais velha, sou Olívia, gêmea da Laila, e a Luiza, a mais nova. A diferença maior de idade entre nós é de quatro anos. Acho que então isso foi um dos fatores de proximidade entre nós, alem é claro de que somos família. Vou chamar essa série de Lírio do Povo, não só em homenagem a minha irmã, que ama lírios, mas também ao Carlos Drummond de Andrade, um dos meus escritores favoritos. Vou narrar cronologicamente os eventos, acho mais fácil assim. Talvez seja apenas uma maneira de racionalizar dois tabus que nós quatro enfrentamos: o incesto e a homossexualidade, mas a veracidade dos nossos sentimentos fala mais alto, de forma que nós já superamos o choque de nossos valores com o senso comum.
Enfim, comecemos então, com o que eu acho que foi o ponto de partida: Eu e Laila.
Parte I – Univitelinas
Somos irmãs gêmeas univitelinas. Somos idênticas, clones de nós mesmas. Minha pele alva, minhas tímidas sardas, meus olhos azuis, minha altura mediana, meu cabelo negro, o biótipo magro, a aparência frágil. Tudo isso compartilhamos. Assistimos e comparamos juntas a puberdade em nossos corpos: até nessa época éramos iguais. Hoje já adultas, desfrutamos de um corpo condizente com nossa estatura e peso. Nunca tivemos problemas com este, sempre fomos magras, um pouco demais até. Psicologicamente, se não somos iguais, somos no mínimo muito parecidas: dividimos juntas um amor por The Kinks, The Beatles, Rolling Stones, Beach Boys. Temos uma tara por café e livrarias no final de semana, ainda mais se rolar um cinema – Woody Allen, por favor – depois. Não é raro lermos juntas Carlos Drummond ou Mário Quintana. Enfim, praticamente vivemos uma com a outra, dividimos o mesmo quarto desde sempre, temos o mesmo gosto para roupas, e não temos um armário individual. Laila não é minha irmã, é mais uma extensão do meu espírito, e não tenho dúvida que também sou extensão dela.
Acho que rondávamos pelos 14 quando rolou. Era alguma festinha de alguém na nossa escola – não, não ficamos na festa, por Deus – mas o que passou foi que nessa época era normal, para a nossa turma pelo menos, ter aquelas rodinhas de ‘Verdade ou Desafio’. Não que isso seja uma surpresa: nessa idade é difícil os garotos terem coragem o suficiente para chegar em alguma menina, de forma que esse jogo era um puta artifício para formar casais.
Não era nada demais. Já tínhamos feito isso em outras festas, de forma que beijar outros garotos em si não era o grande atrativo da brincadeira: nunca tínhamos experimentado um beijo de verdade, desses que geravam polêmica por uma semana depois e todo mundo comentava. Sem mão bobas ou intenções mais sérias, era beijar na inocência, mas de verdade, a novidade.
E aconteceu. Hora ou outra, desafiaram Laila para um desses beijos teatrais. Eu vi a breve hesitação passar no rosto dela, contraído por uma dúvida rápida. Ela buscou meus olhos com o olhar, sorriu, sacana. O menino nem era tão bonito assim. Mas enfim , eles ficaram. Beijaram-se rapidamente, beijaram-se mesmo. Daí quando acabou foi aquela confusão. Queriam saber como era e tudo mais, coisa de gente da nossa idade. Eu confesso que também queria. Queria, e até estava com inveja. O jogo parou por lá mesmo, era hora do parabéns. Quando todo mundo cantava, ela cochichou no meu ouvido.
- Ele beija mal.
- E você beija bem ?
Laila riu junto comigo. Eu sabia que ela estava louca para falar o que ela tinha achado, mas queria fazer isso sob nossa privacidade.
A festa não durou muito mais. Chegamos a casa como se nada tivesse acontecido e começamos a rotina de banho. Acho que era uma sexta-feira, porque não lembro se tive aula no dia seguinte. Eu fui primeiro tomar banho. E tive lá minhas dúvidas. Quero dizer, até aquele momento, tínhamos sempre feito tudo juntas. Tudo. Sempre íamos juntas para os lugares. Vestíamos-nos juntas e às vezes iguais, para tirar sarro. Quando nós duas beijamos um menino pela primeira vez, havia sido na mesma festa. Acho que a até nossa menarca havia sido na mesma semana. Mas naquele momento, não mais. Ela estava à frente. Hoje eu sei que foi uma puta crise existencial baseada em paranóia de adolescente. Mas na hora, parecia sério.
Quando ela voltou do banho, começou a falar.
- Foi meio estranho, sabia? Ele não sabia o que fazer – Não que você soubesse – Ah, mas ainda assim, acho que dava ter sido muito mais legal.
- Qualquer primeira vez deve ser assim. É tudo muito over-rated hoje em dia. Com certeza foi uma bosta em relação a qualquer outro beijo que você chegue a dar.
- Muito obrigada – ele devolveu irônica. Eu estava na ponta da cama, enquanto ela estava de pernas cruzadas, secando o cabelo com a toalha.
Eu suspirei. Queria falar para ela o que eu pensava, mas não sabia como. Afinal, ela talvez não compreendesse minhas dúvidas. Sorte que temos essa ligação.
- Livs? – ela sempre me chamou assim, desde pequena – O que foi?
- Nada – respondi , provavelmente evitando olhar para ela. Fiquei brincando com algum fio solto no pijama.
- Nada nada – ela levantou, indo pendurar a toalha no banheiro da suíte – Fala para mim o que foi margaridinha do campo – É impossível não gargalhar nessas horas. Ela riu também, agachando na minha frente e segurando minha mão. Olhou para cima, achando meus olhos.
- Ah... – eu comecei, mas travei logo em seguida. É o tipo de conversa que não sai automaticamente – É que você passou na frente, né? A gente sempre fez tudo juntas, mas eu não sei mais se agora vai ser assim...
- Deixa de besteira – ela logo cortou – Não foi nada. Um beijo, nada demais.
É interessante reparar nessas coisas: quando eu me mostro mais insegura, ela sempre está lá para mim. Quando ela está em momentos frágeis, eu estou do lado dela, sempre. Nós alternamos entre rocha e areia, mas sempre conseguimos o equilíbrio. Deve ser o tipo de coisa que um casal busca, e pensar que tive isso sempre com minha gêmea.
- Eu sei – falei em um fio de voz. Estava em dúvida ainda, não queria perder minha irmãzinha três minutos mais velha para qualquer menino que provavelmente só iria olhar pros peitos dela.
- Quer saber de uma coisa? Vamos jurar uma para a outra que sempre estaremos aqui, para abraçar e chorar juntas – Eu juro! – Sabe por que eu também juro? Porque eu te amo – ela se inclinou e beijou minha bochecha, depois fixou os olhos em mim. Eu olhei para ela: ela mordia o lábio superior, a testa contraída em uma pergunta hesitante – Quer, quer saber como foi? – eu confirmei com a cabeça, tentando compreender.
Ela foi rápida demais. Mal murmurou ‘assim’ e completou os centímetros que separavam nossos lábios. Foi um verdadeiro choque elétrico, que amorteceu meus sentidos e disparou meu coração. Foi apenas um selinho, ela logo recuou o espaço.
- Mas demorou mais – eu recuperei a fala, incrivelmente, com uma indireta de quero mais. Ela simplesmente olhou para mim, e dessa vez eu tomei a iniciativa, me inclinando. Ela não fez objeções. Aproximei-me, olhos fechados, senti meu nariz resvalar no dela e meus lábios tocaram nos seus correspondentes. Inclinamos de leve nossa face, “encaixando” melhor o beijo. Este demorou um breve segundo a mais. Enquanto estava concentrada em sentir os lábios dela nos meus, simplesmente se tocando, ela enlaçou meu pescoço com sua mão esquerda. Levei minha mão para seu braço, e senti aquela leve penugem, que percorre as mulheres, totalmente arrepiada. Tentei me afastar um pouco, e ela prendeu, num misto de selvageria e ternura, meu lábio entre os dela. Descolamos afinal, e fui acompanhada por ela: a medida que recuava a cabeça, Laila vinha em minha direção, se levantando. “Espera” ela murmurou, sentando no meu colo e abraçando minhas costas com suas pernas.
Eu sentia meu coração latejando por toda minha face, e ela também. Arrumei a gola da camiseta do pijama dela, que estava meio torta. Depois minhas mãos desceram até nosso colo e seguraram firme as dela. Ela sorria. Nos aproximamos com vontade de beijar, o desejo agora intrínseco em nós. Isto foi um beijo. Aos poucos nós se soltávamos, e aprofundamos o beijo. Se em princípio não sabíamos direito como se portar, fomos pegando jeito e logo explorávamos a boca uma da outra. Eu subi minhas mãos: uma em sua nuca, seu pescoço, outra por entre seus cabelos. As dela passeavam por minha cintura. Queria conhecer cada pedacinho da boca dela, cada movimento de sua língua.
Se beijamos longamente nessa posição, nossas mãos tímidas não arriscaram maiores incursões, e nem podiam: estávamos extasiadas com o beijar. Quando enfim paramos, minha boca estava dormente, a dela ligeiramente roxa. Laila respirava ofegante. Suspirei, girei ela para a cama, sem violência. Ela recuou para o travesseiro, deitando. Eu fui até lá, engatinhando e retomei o beijo. Ficamos assim, se beijando por horas nesta noite. Não tínhamos noção do tempo. Estávamos conhecendo uma à outra, e por conseqüência a nós mesmas. Pausamos, pondo fim aquela experiência. Ficamos se encarando: palavras não podiam expressar o que queríamos dizer.
Dormimos abraçadas, vencidas apenas pelo cansaço e pelo sono. Nossas mãos, enfim entrelaçadas, como a pouco estavam nossos lábios.