Meu rosto está ardendo como se tivesse levado um soco. Instintivamente, redisco o número. Rafael, que até o momento estava calado, esbraveja:
- Não acredito que você tá retornando pra ele... para de ser idiota, esse cara quer me ver na cadeia! – grita ele, tentando tomar o celular da minha mão.
- Me solta! Ele é meu amigo caramba! – digo, levantando da cama e me afastando.
- Esse cara não é seu amigo! Pelo menos pro que tá parecendo, ele não tá satisfeito em ser apenas isso! – diz ele, se levantando da cama e vindo pra cima de mim.
- Sai Rafael, eu preciso falar com ele! – grito, empurrando-o de volta pra cama.
Ele cai no colchão, assustado. Merda, ele não atende o celular! Ligo de novo. Rafael desvia minha atenção pra ele.
- Vocês ficaram... né?! – indaga ele, num tom baixo e sombrio. Sua pergunta é como uma lâmina que corta meu esôfago e me sufoca por alguns instantes. Nunca tinha pensado no que aconteceu entre mim e Vinícius nesse ponto de vista.
- O quê? – respondo mais chocado e assustado do que tentando ser persuasivo.
Ele me fita por um instante... vários instantes... uma eternidade. Sinto um aperto no peito pelo que ele pode dizer e o que está pensando. Um barulho de toque de chamada rompe o silêncio. Durante a nossa briga, um de nós apertou no botão do “viva-voz” sem querer.
- Você tava ficando com ele antes de... disso aqui? - indaga ele, apontando para a cama.
Meus lábios estão trêmulos como duas castanholas. Não consigo formular uma resposta... não consigo porque estou sem a razão. Como se lesse minha mente, ele fecha os olhos e abaixa a cabeça. Vinícius atende o celular.
- O que é, Lippo? – pergunta ele, razoavelmente mais calmo. Continuo olhando para Rafael, que, ao ouvir a voz de Vinícius, levanta da cama e vai em direção as suas roupas úmidas espalhadas pelo canto do quarto. – Lippo? Esse idiota ainda tá aí? – pergunta ele.
Rapidamente, ele veste a calça e coloca os tênis de forma desajeitada. Continuo fitando-o, sem responder Vinícius. Estou sem coragem pra articular qualquer frase. Pendura a blusa no ombro e diz:
- Acho melhor você falar com ele... tchau! – diz ele, saindo do quarto em seguida. Vinícius volta a falar.
- Lippo! O que foi?
Fico bambo, prestes a desabar a qualquer momento. Um jogo de idas e voltas se instalou na minha vida em menos de uma hora e eu não fui ensaiado pra viver nada parecido com isso. Resolvo responder Vinícius:
- Oi... Vinícius... – digo, bravamente.
- Oi, Lippo... – diz ele, tornando sua voz fria de novo.
- Olha cara, a gente precisa conversar... a situação é muito complicada...
- Ele já foi embora? – pergunta ele, me interrompendo.
- Já... já sim. – respondo, saindo do quarto silenciosamente. Ele foi embora sem deixar rastros, como um pássaro.
- Ok... vou aí com você agora... e desculpa por ter falado daquele jeito com você, eu não queria... mas eu não entendi o que aquele cara tava fazendo aí, a primeira ideia que eu tive é que vocês tivessem... sei lá... – diz ele, de forma chorosa.
Um arrepio corre pela minha espinha pela última parte do seu discurso. Prendo-me apenas a primeira.
- Não Vinícius, não vem aqui agora, minha mãe tá dormindo e já são quase 4 da manhã... aparece aqui na hora do almoço, antes de eu ir trabalhar. – replico, rezando para que ele não mencione nada sobre suas suposições. Lembro que “amanhã” (hoje) é domingo e ainda tenho expediente até às 9 da noite na livraria.
- Tudo bem... eu vou sim... só queria te pedir uma coisa, Lippo.
- O quê? – pergunto, sentindo meu sangue congelar.
- Quero que você não minta pra mim... antes de tudo... de todos... eu sou seu amigo, não esquece disso.
- Tudo bem Vinícius. – sou incapaz de argumentar... talvez seja o sono.
- Boa noite então... até amanhã.
- Boa noite.
De repente, estou com os olhos ardendo... de sono... de agonia. Tudo aconteceu muito rápido e eu nem tive tempo pra tentar mudar ou atenuar alguma coisa. A verdade foi exposta da maneira mais grosseira possível pro Rafael enquanto para o Vinícius, ainda luto por uma saída, onde a realidade não pareça tão dolorosa quando for dita por mim. Ao final disso tudo, percebo que já é tarde demais para eu fazer uma escolha sem que a outra não seja rejeitada, como dois poemas lindos escritos a mão onde um deve ser jogado no lixo. Ainda sinto o cheiro de Rafael sobrevoando o quarto. Aromatizante. Vou ao banheiro. Tomo um banho demorado, e por incrível que pareça sem fantasmas autoritários me cobrando decisões. Depois durmo, num sono pesado... assim como o corpo de Rafael... assim como os lábios de Vinícius.
***
O despertador toca 6 horas depois. Não dormi nada. Meu corpo parece ter sido colocado dentro de um processador durante a noite-madrugada. “Efeito colateral de uma grande noite”, penso. Um cheiro de café que vem da cozinha me dá náusea e quando percebo, estou transbordando mal humor. Isso não devia acontecer depois do que tive ontem... quer dizer... se não fosse pelo fato de ter dado tudo errado depois.
- Oi. - diz minha mãe, coando o café.
- Oi. – digo, num tom hostil.
- Nossa, que cara horrível essa? – pergunta ela, fazendo careta.
- Nada, só dormi mal. – digo, abrindo a geladeira e pegando uma banana. “Hábitos alimentares saudáveis”.
- Hum... que pena... eu dormi muitíssimo bem... eu e o pessoal da assessoria fomos pra um barzinho ontem, um tal de “Physis”, hahaha, nos divertimos muito.
“Tá explicado o motivo de você não ter acordado com a gritaria ontem”, penso.
- Ah... que legal.
- E você? - indaga
- Ah, saí com o Vinícius, depois voltei pra casa.
- Hum... você tava assistindo algum filme ontem? Ouvi umas vozes estranhas, será que eu tava sonhando? – pergunta ela, sorrindo. “Nem queira saber mãe”.
- Ah... sim... – respondo, descascando a banana com toda a atenção.
- Ah... eu pensei em mandar você diminuir o volume, mas tava fraca demais haha – diz ela, colocando um pouco de café dentro de um copo de requeijão e se virando pra mim. “Droga, ela quer saber se estou mentindo ou não”.
- Desculpa mãe. – respondo, abaixando a cabeça.
- Que isso Lippo, você não é de ficar pedindo desculpa! Vou aproveitar que hoje não vou trabalhar e fazer uma hidratação no meu cabelo. Já fiz o almoço, tá ali no fogão! Vê se come pra não passar mal no trabalho, menino! Tchau! – diz ela, tomando um gole de café e saindo.
- Tchau mãe!
Ouço meu celular tocando no quarto e corro pra ver. É Vinícius. Atendo.
- Oi?
- Já acordou?! – diz ele, num tom sério. Há uns dias atrás eu responderia “não, sou sonâmbulo” ou algo do tipo. Nossa relação não está permitindo que haja esse tipo de brincadeira.
- Sim.
- Ok. Já tô indo aí, tchau.
- Tchau.
Está chegando a hora da conversa que pode mudar a minha vida... e a deles também.
***
Ele toca a campainha 20 minutos depois. Olho o meu rosto no espelho e o lavo, tentando mascarar a cara que fiquei depois da última noite voraz de sexo. Respiro fundo e vou em direção à porta.
- Oi. – diz ele, virando-se pra mim.
- Oi. Entra. – digo. Estou vestindo por acidente a bermuda que Rafael usou ontem. “Concentre-se, Lippo”, penso.
- E aí? Você tá bem? – pergunta, sentando no sofá.
- Sim... – digo, tentando resgatar o Rei Artur que ainda possa existir em mim.
- Tá com uma cara péssima... dormiu mal? – seu tom de sério passa a ser irônico. Estou com medo e aflito.
- Dormi... – digo, sentando no braço do sofá sem olhar pra ele.
Seus olhos fitam a sala de uma forma descrente. Por um momento lembro-me de Rafael, que também consegue arrancar respostas de mim com uma palavra.
- Vocês... dormiram juntos? – sua pergunta sai como um soluço e de repente, percebo que uma lágrima cai de seu olho. Meu coração aperta com aquela imagem e sinto meus olhos se encherem de lágrimas também. Me sinto um monstro.
- Sim... – respondo, abaixando a cabeça e abraçando os joelhos.
Ele se levanta e vai em direção à mesa, apoia-se com as pontas dos dedos das mãos, observando um ponto fixo.
- Eu sempre soube que isso ia acontecer... desde o dia que você foi se encontrar com ele... do dia da briga... do hospital... da delegacia. – diz ele, calmamente.
- Como você soube? – pergunto, assustado. Eu contei pra ele que nós não tínhamos nos encontrado e nem toquei no assunto da delegacia.
- Você disse que ia me contar sobre a delegacia ontem, lembra?!... percebi que quando ficávamos em silêncio você tentava puxar um assunto nada a ver... quando eu ficava perto da sua mãe você fazia o possível pra estar perto só pra eu não ficar sabendo do que aconteceu no hospital... apenas pensei um pouco... não sou tão burro quanto você pensa, Lippo! – suas palavras me chicoteiam, mostrando o quão mentiroso sou. Estou desabando internamente, como um prédio sem utilidade.
- Eu sei... desculpa... eu sou um idiota. Eu não devia ter... mentido pra você... – digo, minha voz sai embargada, quase fanha.
Ele pensa. Anda de um lado para o outro na cozinha. Incrivelmente, minha mente parece estar leve... mais tranquila. Um peso nebuloso que me acompanhava parece ter se dissipado. Reúno minhas últimas gotas de coragem e pergunto:
- E agora?
Ele se apoia na quina da mesa. Está lindo, usando uma bermuda jeans e camiseta. Culpo-me por estar prestes a perder um grande amigo... um homem deslumbrante.
- Eu preciso ter certeza de que você nunca mais vai ver esse cara... – diz ele, virando-se pra mim rapidamente.
- Como assim? – pergunto, feliz e espantado com a sua reação.
- Eu te perdoo, estou disposto a... esquecer isso... sei lá... só não quero que você veja ele... não porque tenho ciúmes... tudo bem... eu tenho... mas ele é perigoso, é bandido e pode te levar pra um caminho ruim, sem volta... por favor, me promete! – diz ele, sentando no sofá, bem próximo de mim. Lágrimas caem de seu rosto. Meu estômago está se revirando de aflição e não consigo mais largar meus joelhos.
- Promete Lippo! Promete que não vai mais encontrar com esse bandido! – diz ele, berrando.
Nesse momento, alguém fecha o portão com força... com raiva... Ouço um barulho de sapatos se aproximando... ela para na porta... É minha mãe. Vinícius se vira para lado, tentando esconder seu rosto molhado de lágrimas. Largo meus joelhos, instintivamente. Ela está parada na porta com o rosto em chamas. Seus lábios tremem, até pronunciar algumas palavras... que mais saem como marteladas.
- Aquele... bandido... você viu ele... de novo? – diz ela, balbuciando.
De repente, estou num tribunal... com um advogado corrupto e uma juíza implacável. O ar me falta.