{ÚLTIMA PARTE}
Parei diante de uma enorme porta de madeira, com a certeza de que depois de passar por ela, eu jamais seria a mesma pessoa. Todos os momentos ao lado de Miguel vieram à minha mente de maneira agressiva e eu só conseguia pensar em como me sentiria ao vê-lo novamente depois de tantos anos, especialmente depois do que acontecera.
Uma mulher jovem, porém carrancuda, parou ao meu lado e, vendo que eu hesitava, girou a maçaneta, fazendo com que a porta começasse a ranger, entreabrindo-se.
- Ele está esperando por você! – disse ela.
Respirei fundo e entrei. Entrei devagar, tentando desviar o olhar de Miguel. Ele realmente estava me esperando. Deitado sobre uma cama, ele estava completamente diferente do garoto que conheci anos atrás. Vi que ele fez um esforço com os olhos para me enxergar e eu ainda não estava certo se conseguiria presenciar aquela cena.
Miguel estava quase sem cabelos. Os únicos fios que restavam em sua cabeça estavam finos e secos, assim como sua pele que parecia ter envelhecido uns 30 anos nesse período que ficamos sem nos ver. Ele estava magro, muito mais magro que eu na adolescência. Eu podia contar suas costelas por sob as roupas. Parecia não haver músculo ou gordura sob a pele, apenas o osso.
Um lençol o cobria da cintura pra baixo, mas pude notar, pelo volume, que ele usava uma espécie de fralda. Quando fiquei em seu campo de visão, ele girou os olhos em minha direção e eles, instantaneamente, se encheram de lágrimas. Seus olhos brilhavam e nesse brilho, eu pude me ver refletido. Não era o mesmo brilho de antes. Esse tinha se apagado.
Miguel sorriu. Não havia mais dentes em sua boca e seu queixo havia perdido a forma. Eu não sabia o que fazer, o que dizer, como agir. O que eu estava fazendo ali? Por que eu tinha tanta vontade de abraçá-lo e de dizer que tudo aquilo iria se acabar?
- Eu nem acreditei quando me disseram que você viria. – falou Miguel com dificuldade, por causa da traqueotomia.
Fiquei calado. Sua voz estava diferente, como todo o resto, mas, de alguma forma, eu conseguia enxergá-lo. Alguma coisa me remetia àquele garoto de antes. Talvez o olhar, o modo de falar ou simplesmente era um instinto que sabia que, apesar de tudo, o que vivemos foi tão efêmero quanto importante.
- Vai ficar calado? – insistiu ele.
- Eu não sei o que dizer.
- Viu no que me transformei?... – ele respirou fundo, falava com dificuldade, não conseguia se mexer na cama. – Tudo o que eu queria era não ter que pensar no que fiz, mas ganhei todo o tempo do mundo para que os pensamentos tomassem conta de mim. São eles que estão me destruindo dia após dia. Não tem uma noite que eu não feche os olhos pra dormir e não reveja aquela cena em pesadelo. Não tem uma noite que eu não pense no seu rosto, na sua expressão de dor, na minha covardia.
- Não precisa mais pensar nisso.
- Será que um dia você vai conseguir me perdoar?
- Eu já perdoei.
- Mas eu não. Eu não me perdoei e nunca vou me perdoar. Nunca! Eu destruí a vida da pessoa que eu mais amava. Eu destruí a minha vida. Eu destruí a única chance que eu tinha pra ser verdadeiramente feliz.
- Como aconteceu?
- Depois daquele dia, eu me afastei dos outros garotos. Diego começou a me perturbar e a me perseguir. Dizia que eu só sentia culpa porque era gay. Eu negava, mas ele não parava com as brincadeiras, com as piadas. Meu ódio por ele só aumentava. Um dia, eu finalmente confessei quem eu era de verdade, o que eu sentia e quem eu amava. Ele ficou em choque, não achou que eu fosse confessar. Talvez, nem achasse que fosse verdade. Só sei que o fato de eu ter me assumido pra ele, colocou pra fora a verdadeira razão de seu ódio. – ele contava sempre em tom baixo, com longas pausas para engolir a saliva, o que lhe demandava um imenso esforço. – Ele tinha atração por você. Depois, começou a sentir a atração por mim e por todos os outros garotos do time. Ele estava mais incubado que nós dois juntos. Foi estranho aquele dia. Ele tirou a roupa na minha frente, pediu, quase implorando que eu fizesse com ele o que eu sentisse vontade e eu o comi. Comi sem dó nem piedade, querendo ferir mesmo, querendo que ele sentisse muita dor, mas a impressão que eu tinha era que ele sentia cada vez mais prazer e isso eu não poderia aceitar. Eu não poderia dar prazer ao homem que fez o que fez com você! Coloquei-o dentro de um carro e dirigi como um louco. Eu já sabia o que eu queria e eu estava disposto. Já vinha pensando nisso. Minha vida sem você e repleta de covardia já não tinha mais sentido algum. Diego percebeu o que eu estava fazendo e tentou me demover da idéia. Foi pior. Perdi a direção do carro e capotamos. Ele morreu na hora, eu fraturei a C3. Fiquei ali caído, sem poder me mexer, sem água, sem comida, com dor no corpo e na alma, até que me achassem. Não houve um minuto que eu não pedisse a Deus para que tudo acabasse de uma vez, mas eu sabia que ele queria que eu vivesse, pois era aqui que eu deveria pagar pelo que fiz.
Não houve como não me emocionar diante do relato de Miguel. Eu sei que ele havia me feito mal, mas acho que não merecia o que estava passando. O mal maior ele fazia a si mesmo, renegando o que sentia e tendo que viver em um mundo sempre isolado e secreto, preocupado com o que poderiam pensar. Olhei-o com piedade. Juventude, beleza, dinheiro e, principalmente, felicidade, tudo isso estava indo embora. Amigos, ele já não os tinha. Sua única companheira eram as lembranças do que se foi e as imagens do que poderia ter sido.
Segurei sua mão. Era a primeira vez que eu estava sentindo sua pele novamente, depois de tanto tempo. Por incrível que parecesse, tive a mesma sensação de quando ele me tocou pela primeira vez, na escola. Flashes daquele momento vieram à minha cabeça e eu não conseguia entender por que era tudo tão difícil e por que eu ainda estava tão mexido.
Apesar de sentir aquele toque, eu sabia que com ele não acontecia a mesma coisa. Não apenas seus movimentos estavam afetados, mas também toda a sua sensibilidade do pescoço pra baixo. Por causa disso, ergui sua mão, para que ele pudesse ver que eu a segurava. Dei um beijo suave e ele derramou uma lágrima.
- Obrigado! – disse ele, num sopro de voz. – Ver você foi a melhor coisa que me aconteceu. Mas, ao mesmo tempo, eu percebo que jamais iria poder sentir o seu carinho, o seu beijo. Meu corpo sobrevive da lembrança do seu.
- Você deve se apegar ao amor dos seus pais.
- Eles viajaram. Viajaram no dia que souberam que eu estava fora do risco de morte. Contrataram um arsenal de funcionários e aparecem de vez em quando pra me visitar. Eu até prefiro que seja assim. Ninguém põe um filho no mundo pra vê-lo se acabar numa cama.
- Não fale assim!
- O médico já me disse que as chances de eu perder a perna direita são grandes. Tem uma escara insistente que só cresce a cada dia. Eu estou me acabando sim, André. Mas eu acho que nem eu mereço me acabar dessa maneira. Por isso, eu procurei um advogado. Eu quero ter o direito de dar um fim digno à minha própria vida.
- Do que você está falando?
- Ninguém quis fazer isso por mim. Não que eles me amem e queiram a minha presença. São enfermeiros que recebem para fazer seu trabalho. Na verdade, eles têm medo das consequências com a justiça. Por isso, decidi recorrer aos tribunais pelo direito de realizar a eutanásia.
- Você não pode fazer isso! – falei indignado. – Há milhares de pessoas que passam pela mesma situação que você está passando agora e consegue sorrir, consegue ver o lado bom da vida. Você não pode desistir assim tão fácil! Você não pode ser covarde mais uma vez!
Não sei se eu estava sendo duro demais, mas me senti na obrigação de fazer alguma coisa para impedir aquele absurdo. No momento em que li o caso de Miguel na pasta de Alison, me perguntei o que faria uma pessoa desistir da própria vida. A dor de Miguel tinha sido maior que a minha. Fechados em nosso mundo, enxergamos apenas o que acontece conosco, mas o ser humano é muito mais abrangente do que podemos imaginar. Miguel olhou-me profundamente e suspirou. Foi um suspiro difícil. Coisas que para qualquer pessoa pudesse parecer simples, para ele era um verdadeiro desafio.
- Essas pessoas que você falou estão rodeadas de felicidade, de boas lembranças, de amor e, mais que tudo, possuem algo pelo que viver. Tudo o que eu tenho são lembranças de uma vida fracassada e o medo de apodrecer sozinho.
- Você precisa passar por cima do seu medo.
- Você me ama?
- O quê?
- É uma pergunta simples! Você só precisa responder sim ou não. Você ainda me ama?
Fiquei em silêncio pelo choque da pergunta, mas também por que perguntei a mim mesmo se eu ainda tinha algum sentimento por Miguel. Vê-lo naquela cama realmente me deixou mexido, mas eu amava Alison, minha vida tinha dado um giro de 180 graus e eu tinha Miguel como uma lembrança distante. Fiquei tocado sim, mas como ficaria por qualquer outro ser humano. Contudo, eu não teria coragem de dizer que não o amava mais. Meu silêncio, no entanto, fez esse trabalho.
- Não precisa responder. – disse ele. – Por favor, abra a segunda gaveta desse criado-mudo que está à minha esquerda.
Fiz o que ele me pediu. Na gaveta, havia um pacote. Abri-o e vi uma seringa e um frasco com líquido incolor. Pude suspeitar o que era aquilo.
- Esse povo é inventivo. Lembro-me da minha avó falando sobre os produtos que eles misturavam para descobrir poções mágicas. Até poção do amor eles tentaram criar. – falava ele com o olhar distante.
- O que é isso, Miguel?
- Com uma pequena dose disso, o coração de bater quase instantaneamente. Nenhum sinal no sangue, nenhuma dor, nenhuma marca. Nada! Vão pensar que foi uma parada cardíaca. E tudo se acaba. Final feliz.
- Você não está me pedindo pra...
- Eu estou pedindo que você me liberte. Eu só quero um pouco de paz.
- Eu não posso fazer isso, Miguel.
- Então pode ir embora. Eu já recebo visita de religiosos que sentem pena de mim, não preciso ver esse sentimento nos olhos de alguém que eu amo.
Eu realmente o olhava com piedade, mas era impossível não me comover com sua situação. Eu queria chorar, queria gritar, queria que tudo tivesse sido diferente.
- Vá! – falou ele num impulso.
Guardei novamente o embrulho na gaveta e saí. Miguel já nem me olhava mais. Parei na porta d quarto. Minha cabeça dava voltas. Tudo que eu aprendi na minha vida era contra aquele ato. Mas, e se fosse eu? E se eu quisesse que alguém fizesse isso por mim? Só ele próprio poderia dizer como estava se sentindo. Voltei. Fui até a gaveta e peguei novamente o embrulho. Miguel fixou os olhos em mim e sorriu.
Fiz exatamente como ele me pediu. Abri as janelas, deixei o sol entrar depois de tanto tempo. O barulho do canto dos pássaros pareceu mais claro por um momento. Ele parecia mais leve, mais confiante. Eu não sabia se estava fazendo o certo. Eu estava fazendo o que meu coração mandava. Coloquei a música que ele me pediu. Não era nada triste. Pelo contrário, era uma música que movimentou nossa amizade e nosso rápido namoro. À Primeira Vista, de Daniella Mercury.
- Lembra-se dessa música? – perguntou ele.
- Claro!
- Obrigado! Você está me devolvendo a vida mais uma vez.
- Mais uma vez?
- Eu era nada antes de te conhecer. E voltei a ser quando te perdi. Obrigado.
- Você merece sorrir e vai estar sempre no meu coração.
Aproximei-me de seu rosto e dei-lhe um beijo. Pude ver que para ele teve um significado maior. Era pra a primeira vez em muitos anos que ele sentia algo realmente importante. Se Deus existe e olha por mim, eu espero que um dia ele possa me perdoar por essa atitude, mas não teria coragem de virar as costas e deixar Miguel mais uma vez abandonado.
Injetei o líquido em seu corpo e não sei descrever o que aconteceu naquele quarto. Acho que um cheiro de flores invadiu o ambiente e a música se calou. Miguel sorria, parecia sereno e agradecido. Seus olhos não demoraram a se fechar. Foi cerca de cinco segundos, mas foi tempo suficiente para que minha vida a seu lado passasse diante de mim como um filme.
Quando saí daquele quarto, sei que não deixei Miguel sozinho. Ele me acompanhou. Os enfermeiros encontraram seu corpo e já sabiam de sua escolha. Causa da morte: parada cardiorrespiratória.
Miguel... É esse o nome do menino mais lindo do mundo. Jamais o esquecerei. Nada que vivemos foi mentira, tudo teve um significado. Ainda fecho os olhos e me lembro de seu rosto juvenil e saudável sorrindo para mim. Lembro-me das suas gracinhas, da sua voz me pedindo algo. Lembro-me de seu olhar. Às vezes, tenho saudade do que vivi, mas é rápido e passa.
Espero que ele esteja em algum lugar, espero que olhe por mim. Todas as vezes que vejo o sol brilhar mais forte, sei que ele está sorrindo em algum lugar. Não há mágoas, não há remorso, não há culpa. Hoje, sou feliz ao lado de Alison e sei que ele também. Construímos uma vida juntos, planejamos cada instante, por mais que ela possa mudar radicalmente em menos de cinco segundos.
Vemos nosso filho, Miguel, crescer e tentamos deixar apenas bons ensinamentos para que possamos, ainda que devagar, fazer do mundo um lugar melhor.
Cinco segundos... Cinco segundos... Apenas mais cinco segundos.
{FIM}