O barulho do pneu do carro cantando chama a atenção de quem passa na rua. Ela está dirigindo perigosamente, como uma lunática. Estou apertado no banco do carro tentando prever o que ela pode fazer. Luzes de faróis passam por mim como trovões, rapidamente. Estamos a 100 km por hora. “Agora posso imaginar o motivo da separação deles”, raciocino. Meus pais nunca deixaram claro o motivo de terem se divorciado. Segundo ela, meu pai sempre foi um homem muito errado, que a fazia sofrer profundamente todos os dias. “Se ele é errado, o que ela foi então? Racional é que não pode ter sido!”. Recuso-me a fita-la. Meu peito está apertado de medo e de pânico. A expressão dela é assustadora! Sinto minhas mãos suarem a ponto de enxuga-las na calça. De repente, ela tira as mãos do volante e pega alguma peça de roupa no banco de trás, fazendo com que o carro se mova para a esquerda. Uma caminhonete que vem na outra direção buzina freneticamente. Como num último ato heroico pela sobrevivência, eu movo o volante novamente para a direita, fazendo com que o carro se esquive e por pouco não colida com a caminhonete. Lágrimas de pavor escorrem pelo meu rosto. Não sei mais o que sinto... perdi qualquer senso de hierarquia familiar, só quero sair vivo daquela situação.
- Mãe! Você tá louca?! Quase bateu no caminhão! – grito, fitando seu rosto alucinado.
Ela continua apenas olhando para frente, passando pelos altos relevos do asfalto como um raio.
- Aonde você tá me levando?! Me fala!
- Não interessa! – berra ela, me dando outra tapa.
Andamos por 15 minutos e logo percebo que nunca passei por ali. Não sei aonde estou. Lembro-me do meu celular no bolso... penso em ligar para Vinícius. Será?! Não quero envolver ele mais ainda. De repente me sinto sozinho e cercado de maus pressentimentos.
- Eu tô com medo de você! – minha voz sai mais como um sussurro. Bruscamente, ela freia o carro. Olho em volta. Estamos numa rua escura, com muitas árvores surradas ao redor. Ouço uma música lenta tocando... um pouco longe. Quando me dou conta, ela está me fitando, seriamente.
- Vou te mostrar ande você vai chegar com isso... vem comigo! – diz ela, abrindo a porta do carro.
Lentamente, saio do carro. A música fica mais alta. Ouço uma gargalhada aguda sendo controlada pelas árvores. Estou agora pisando num chão desnivelado e com mato.
- Mãe, pelo amor de Deus... onde a gente tá?! – meu tom sai como uma súplica.
- Você já vai saber! – diz ela, se acalmando a cada passo dado.
Aos poucos nos distanciamos do carro e nos embrenhamos mais na mata. O clima é frio e sinto minhas mãos esfriarem. Minha mãe está andando mais na frente. “Ela já conhece o caminho”, penso. Ouço algumas vozes, dessa vez num volume mais alto e um clarão se forma entre as folhagens. Faróis de carros acesos.
- Se as pessoas olharem pra você, aja naturalmente! – diz ela.
De repente, sinto o chão virar grama. Estamos num campo que parece estar sendo iluminado apenas pelos faróis dos carros. Vejo inúmeras garrafas de bebida espalhadas pelo chão e muitas pessoas estão jogadas nele. Noto que algumas estão apenas com os olhos abertos, como se estivessem assustadas. Algumas delas parecem ser muito jovens, entre 13 e 16 anos. O fedor de urina, cigarro, maconha e fezes é insuportável! Nos capôs dos carros, observo homens e mulheres... mulheres e mulheres... homens e homens quase que pelados se beijando... fazendo sexo oral. Em outra área, como se o lugar estivesse dividido em “alas”, vejo um homem cheirando um pó branco. “Cocaína”. Um dos carros está com a lâmpada de dentro acesa, e vejo dois jovens... duas crianças dividindo um cigarro de maconha. A cena é chocante!
- O que é... aqui...?
- Aqui é o chamado “Holocausto”! – diz ela, pisando numa latinha de cerveja acidentalmente.
- Holocausto?!
- Sim, aqui é onde as pessoas se reúnem para celebrar...
- Celebrar o quê? – pergunto, num “mix” de curiosidade e espanto.
- O vício... o fracasso da alma. – responde ela, secamente.
Meu sangue congela com as suas palavras. Nunca imaginei vivenciar aquilo de uma forma tão amedrontadora. O cheiro está insuportável e eu logo sinto a necessidade de sair dali.
- Como você sabe disso?
- Eu trabalho em assessoria Lippo, amigos de jornais falam... alguns frequentam. – diz ela, olhando friamente a sua volta.
- E por que não denunciam... não divulgam isso? Aqui há pedofilia, tráfico, tudo! – meu tom de voz aumenta e o rosto de uma mulher encostada no pneu de um carro se vira pra mim.
Minha mãe me repreende pelo surto com um olhar e em seguida diz:
- Já publicaram... várias vezes... mas eles sempre voltam, sempre! – diz ela, lastimosa. A cena de longe fica ainda mais macabra. “Um inferno diante dos meus olhos”. Estamos na outra extremidade do campo e mais pessoas estão jogadas no chão, como peixes se debatendo ao saírem da água. - Eles entram em convulsão, coma alcóolico... alguns até morrem... assim mesmo... uns por cima do outros, como no holocausto.
De repente, sinto um calafrio. Preciso sair dali imediatamente, o ambiente é pesado demais. Minha cabeça começa a doer e minha mãe percebe minha inquietação. Seu tom volta a ser sombrio:
- E então... Viu? É isso o que você quer pra você? – indaga.
Subitamente seu rosto escurece. Alguém apagou o farol do carro que iluminava aquela área. Ouço uma voz falando alto... algo indecifrável. A pessoa liga o farol de novo.
- Não, não quero! – respondo firmemente.
Ela me fita por um instante, analisando-me.
- Vamos embora daqui!
Aos poucos a podridão vai ficando para trás. “Posso respirar”, penso. Caminhamos em silêncio pelo matagal até enxergamos o contorno do carro na penumbra. Posso ouvir gritos, bem longe, e ao cessarem, minha mãe olha pra mim e diz:
- Eu fiz isso pro seu bem, meu filho. Eu nunca... jamais te renegarei pelo que você é... pelo que você escolher... mas por favor, não entre para esse mundo... é um caminho sem volta... um caminho escuro, de dor! Olhe pra você... é lindo... jovem! O Vinícius meu filho, ele te adora! É um menino bom Lippo! Não se envolva mais com aquele... com aquilo, por favor!
Suas palavras ecoam na escuridão. Não consigo enxergar seu rosto, apenas posso pressentir que ela está chorando, esperando por uma resposta. Minha mente está abitolada de pensamentos... de sentimentos, uns por cima dos outros como a cena que acabei de ver.
- Tudo bem, mãe. Vamos embora...
E assim continuamos andando até chegarmos no carro. Entramos e ficamos em silêncio. Estou cansado e almejo um banho demorado. Minha mãe liga o carro, porém não pisa no acelerador.
- Espero que você tenha aprendido... – diz ela, num tom entre a suavidade e a rigidez.
De repente, vejo um corpo se movendo no acostamento, cambaleando. Minha mãe acende os faróis, já dando partida no carro. Reconheço-o pela touca. Seu rosto é iluminado pela luz amarela. Um grito de adrenalina explode dentro de mim. Abruptamente, ele desaba no chão e tenta se levantar, caindo de novo em seguida. O carro se movimenta.
- Espera mãe! – grito.
- A gente tem que ir embora! – grita ela, repreendendo-me.
- Não! É ele! Para o carro, ele tá passando mal! – estou berrando como um louco.
- Não é ele Lippo! Não é ele! Você me prometeu que não ia se importar mais! – sua voz sai em forma de choro e quando me dou conta estou chorando também.
- Não mãe! Nãaaaao! Ele tá caído no chão! Eu preciso ajudar, eu preciso! – digo, tentando abrir a porta.
- Esse menino não tem salvação Lippo! Ele tá condenado ao pior! Eu não vou deixar você ir atrás dele! – diz ela, trancando a porta e me segurando.
- Mãe! Você não entende... ele salvou minha vida! Ele é um ser humano! Eu não tenho culpa de você não ter sido feliz com o meu pai. Eu não tenho culpa da vida que vocês tiveram! – grito, desesperadamente tentando me desvencilhar. Suas unhas cravam ferozmente em meus braços. Seu rosto muda de expressão novamente, como se minhas últimas palavras tivessem sido a facada final, a última gota de confiança. Lentamente, ela me solta e aperta no botão para destrancar a porta. Sua boca se contrai e em seguida ela berra:
- Você vai atrás dele, mas se for... se você for... nunca mais volta, entendeu?!
Ela dá um contragolpe à altura, me deixando tonto. É uma intimação. Um decreto. Não pestanejo... estou vendo uma vida se desfalecendo a poucos metros de mim e eu preciso ajudá-la. De repente, eu profiro a palavra que irá mudar para sempre o meu destino.
- Entendi!
Saio do carro. Vejo-o partir e corro em direção do meu futuro incerto.