Nos dias que se seguiram, as relações entre eu e Antônio prosseguiram normais, aparentemente normais, quero dizer. Ele sempre me jogava um sorriso sacana ou uma piscadela cúmplice, quando não havia ninguém por perto. Mas nos falamos pouco e quase sempre com pressa. Uns quinze dias depois ele me disse que aquela era sua última semana naquele serviço, que iria mudar de empresa. Foi então que uma ficha caiu para mim: eu me acostumara com sua presença diária e nem sentira o tempo passar, mas já fazia quase um mês que fôramos ao motel, e a vontade de repetir a dose se fez presente.
Esse novo encontro, ao contrário do anterior foi, sexualmente falando, uma espécie de despedida cheia de carinho e mesmo ternura. Conversamos muito, falamos de nossas vidas, de frustrações e alegrias. Ele me contou que tinha alguns colegas chegados numa pegação e, de quando em quando, eles se reuniam. Na despedida, trocamos telefones e ele me deixou as pistas para reencontrá-lo, caso quisesse.
Tive ímpetos de ligar nas semanas seguintes, mas me controlei, pois não queria simplesmente ser arrastado pelo sexo. Da parte dele, nada. Talvez estivesse muito ocupado com as novas situações de seu novo emprego ou eu tinha sido apenas mais uma aventura, coisa que se esquece. Num sábado pela manhã ele me ligou, o que me surpreendeu em certa maneira. Estava falante, contou várias novidades e terminou me convidando para uma cerveja no fim da tarde num certo bar que conhecíamos. Eu tinha de ir ao supermercado naquele horário e resolvi aparecer. Ele estava com um colega que era tenente e rapidamente nos entrosamos em torno dos goles gelados. Ricardo, o amigo, me deixou meio desconcertado: não tirava os olhos dos meus, era meio calado, aparentando menos de trinta anos, cabelo raspado à máquina, um enigmático rosto quadrado no qual se destacavam olhos brilhantes que faiscavam superioridade. Fiquei ali não mais de meia hora, pois tinha de ir ao supermercado. Na despedida, Ricardo apertou minha mão com ossos poderosos.
Na quinta seguinte meu celular tocou no final do expediente. Era Antônio, me dizendo para passar no bar ali do lado da empresa para tomar um gole. Resolvi ir e, novamente, Ricardo estava ao seu lado. No papo, acabei sabendo que ele fazia karatê. Eu me interessei, pois aprecio muito essas lutas orientais, e ele se dispôs a me emprestar um livro sobre o assunto. Pegou meu celular e disse para eu aparecer na casa dele. Dessa vez, seus olhares não tinham sido tão incisivos em minha direção, mas o ar de mistério em torno de sua figura só aumentara, de modo que resolvi ir buscar o livro no sábado seguinte pela manhã.
Ricardo abriu a porta de sua quitinete apenas de short e chinelo de dedo. “Quer café, suco ou vai de saquê”, disse de imediato. Enquanto ele servia o suco retirado da geladeira olhei, mais decisivamente, para aquele policial. Não muito alto, em torno de 1,75 mts, tinha 28 anos, corpo forte mas não bombado, ao contrário, parecia ter uns três ou quatro quilos a mais, pois sua compleição era dessas que a gente chama de parrudinho. Da pele muito branca saltavam pelos nas pernas e num tufo no meio do peito, fazendo contraste com sua cabeça raspada. O pequeno ambiente ao redor era simples: uma sala grande com a cozinha embutida numa lateral, ao lado do banheiro. Um pequeno sofá e uma poltrona, um móvel alto com TV, som, livros e badulaques, formavam a saleta; o resto do espaço era o quarto, isto é, um pequeno roupeiro, uma cômoda e a cama debaixo da janela. A “cama” era um tatame e, sobre ele, um colchão de ar, que vi aparecendo por debaixo dos lençóis desarrumados. “É tudo pequeno, casa de pobre e não curto muita tralha ... tua casa tem piscina?”, perguntou-me. Expliquei que morava em edifício e que lá tinha uma piscina, para as mulheres e a garotada pegarem sol. Sentamos no sofá e ele apanhou o tal livro de karatê que havia falado.
Começou me explicando como fazer certas pegadas, o jeito de segurar no roupão do outro, de manter o equilíbrio do corpo. “Não adianta explicar muito não, o jeito é fazer... aprende mesmo na hora do pega”, resumiu, “se tiver interessado conheço umas duas ou três academias bem legais, com caras sérios no negócio.” Fui olhar outros livros na estante alta e peguei um de fotografias. Era de fisiculturistas. “Curte bombado?”, ele disparou ao meu lado, “olha só o tamanho dessa coxa... uma chave de perna desse cara tritura as costelas do oponente”. Eu disse que alguns eram impressionantes mesmo, mas eu nunca tinha chegado perto de um deles. “Tem muito músculo, mas pau que é bom é tudo tiquinho... só faz cócega”, ele brincou. “Sei não.... esse aqui parece roludão, olha só?”, indiquei com o dedo. Ele riu e emendou: “Antônio me falou que você curte pau.... que é massa na foda”. Me senti nu em pelo com aquela declaração, fiquei puto com o vigilante: “porra, o Antônio não tinha nada de abrir o bico... caceta ... “. Ele desculpou o amigo: “ele não falou nada, não ... fui eu que perguntei. Falei que achava você tesudo e ele só falou “dá bem pra caralho”, não falou mais nada não.
O que ele queria mais? O que precisava mais ser dito depois de um comentário assim? Seguiu-se um diálogo ríspido onde eu atacava e ele defendia Antônio, encerrado por ele com uma asserção sem réplica: “entre macho não tem disso não, porra..., deu, e daí? Ninguém tem nada a ver com a porra do teu cu, só você .... quer mais suco?” Eu estava alterado, procurando me controlar, demorei vinte segundos para soltar: “pega um saquê.” Afundado no sofá e engolindo em pequenos goles a bebida, eu remoía minha raiva, enquanto Ricardo guardava os livros e acendia um cigarro. Pegou outro volume, sentou-se ao meu lado, começou a folhear, parou numa página me mostrando. Era um livro de fotos em branco e preto sobre bondage, esses caras que curtem amarrar e usam roupas de couro. Na foto, o close de um rapaz com uma cara enigmática, não permitindo distinguir se de dor ou prazer. Na foto não aparecia abaixo dos mamilos do rapaz, o que levou Ricardo a concluir: “deve tá com tudo enterrado dentro... puta tesão.”
Peguei o livro de suas mãos e comecei a folhear, Ricardo afundou-se no sofá ao meu lado, compartilhando, dando as últimas baforadas. As fotos eram desafiadoras mas muito bonitas, em ângulos incríveis, cada uma com uma pequena legenda em inglês. “A dor é uma bem-aventurança que escorre no suor, ... o corpo daquele que não teme o inferno”, eu li em voz alta, apontando a legenda, “sabe inglês?... não sei essa palavra”, completei. “Só umas soltas, não entendo não”, ele respondeu. Só então reparei em Ricardo, com um pé no sofá, meio reclinado sobre o braço, a outra mão dentro do short, me secando com aquele mesmo olhar usado quando nos conhecemos. Esse puto gosta desse troço, concluí virando a cabeça.
Que destino o meu? Que forças desconhecidas me enredavam no covil daquele policial, um tipo com o qual eu jamais imaginara me envolver? Eu estava confuso e milhões de ideias e imagens corriam pela minha mente. Eu me lembrava da enterrada de Antônio, imediatamente seguida da imagem daquele rapaz do livro, de seus braços vigorosos me apertando, do odor viril que emanava do corpo de Ricardo, percebido desde que eu entrara naquela quitinete. Como num caleidoscópio girado por mão invisível, as imagens se formavam e se deformavam, ganhavam novos ângulos e arranjos. Minha vida, meu casamento, o que fazer com tudo aquilo?
Fui acordado de minha brusca alucinação com o short de Ricardo jogado sobre o livro em minhas mãos. Lentamente virei em sua direção e o vi sorrindo maliciosamente e coçando lentamente seus pentelhos. Mais lentamente ainda peguei o short de nylon e o aproximei de meu nariz, do qual o perfume de macho emanava. Sorvi. Fechei os olhos e o odor me jogou no passado, lá atrás, quando senti pela primeira vez, ainda adolescente, aquele mesmo odor álacre exalado pelos hormônios masculinos. Tais sensações faziam parte de minha vida, renovavam-se de quando em quando, delas eu não podia – e nem queria - me livrar. Voltei-me para a direção de Ricardo, coloquei o livro e o short de lado, desci a cabeça sobre sua virilha. Muito mais forte, o cheiro ali condensado desencadeou em mim um ato instintivo: beijei seu pau.
Num salto, fiquei em pé, no instante derradeiro depois do qual eu sabia que não mais encontraria forças para retroceder. “Tá na minha hora, te ligo essa semana”, disse brusco para Ricardo. Abri a porta e saí. Dentro do elevador, tive a certeza de que fizera o gesto certo na hora certa. Coisa que, duas horas depois, eu começava a reavaliar. Eu necessitava, era imprescindível para mim, nada ficou tão urgente quanto saber o que significava aquela palavra no livro: “entrancing”.
(continua)