Em Natal fui pra casa sem avisar ninguém, chegando lá só encontrei Céu, a senhora que trabalha lá em casa, meus pais estavam no interior e só chegariam no sábado. Meu quarto tinha virado um atelier para minha mãe, tinha quadros, tintas por todo canto. Era como se eu não pertencesse mais aquela casa.
Meu cachorro, um pastor alemão branco chamado Oberon, foi o único que continuava o mesmo. Se jogou em cima de mim e ficamos rolando no chão. Naquela noite eu dormi no meu quarto abraçado com ele, pensando o que eu iria fazer da minha vida.
Quando meus pais chegaram, minha mãe me cobriu de beijos, ela sim, aparentava ter o sangue espanhol, dizendo que eu estava abatido.
– Mãe, eu to mais forte.
– Forte nada, você ta com uma cara horrível, e sua barriga ta colando nas costas, dá pra ver todos os seus ossos.
– Mãe, não são ossos, são músculos isso é bom, significa que to saudável..
– Não discuta com su madre! Vai já comer torta de maçã que tem na cozinha! – E ela começou a gritar, chamando a Céu, dizendo que eu tinha de comer, que me servisse isso e aquilo.
Eu só escutava a coitada da Céu (ela era uma santa em aguentar todos esses anos minha mãe destemperada), “Mas dona Carmen, o Doda já comeu e ele disse que não queria mais nada”. Sim, no nordeste Carlos Eduardo vira Doda, e no Rio de Janeiro vira Kadu, logo meu apelido de infância era Doda.
Meu pai apenas perguntou coisas do trabalho. Minha relação com meu pai sempre foi meio distante, sem abraços, nem beijos, isso não me incomodava, o que me deixava constrangido eram as ocasiões em que eu tinha de abraça-lo. Isso não significava que a gente não se gostava, mas nosso gostar era assim, sem muito escarcéu, isso ficava por conta da minha mãe.
Os dias foram passando e eu comecei a planejar novamente minha vida, talvez um escritório, cursinho preparatório pra concurso, uma especialização, ainda estava vendo as alternativas. Por enquanto eu ficava em casa, corria na praia, ficava na piscina, brincava com o Oberon. Encontrava alguns amigos, mas eu sentia tudo diferente. E o pior, o Raphael não saia da minha cabeça, pensava nele sempre.
O natal era uma das festas que eu mais gostava, a casa ficava cheia de familiares por parte de pai (eram todos do RN), vinham meus primos (esses eram como irmãos, fomos criados juntos), minhas primas etc. Por ser filho único, passei a considerar meus primos e primas como irmãos e irmãs mesmo. A gente discutia, brincava, ria. Mas naquele ano eu estava meio blasé, sem vontade de nada. Minha ex-namorada me ligou, soube que ela estava saindo com um filho de papai metido a surfista, bem conhecido na sociedade local, ela queria marcar de me ver e eu fugi, não queria confusão
Casa cheia, cheiro de comida, todos loucos. Eu fui pra praia correr com o Oberon. Sempre meus primos marcavam de sair depois da ceia pra biritar. Mas dessa vez eu não fui.
Fiquei no meu quarto. Foi quando meu celular tocou Jack Johnson:
“Must I always be waiting, waiting on you?
Must I always be playing, playing your fool?”
Meu coração disparou, era o toque que identificava o Raphael Já havia algum tempo, ele havia colocado esse toque no meu celular, dizendo que adorava Jack Johnson. Eu fiquei olhando pro celular tocar em cima da cama, eu queria atender, mas ao mesmo tempo não. Minhas mãos ficaram geladas e suando. O telefone parou, suspirei aliviado. De repente o telefone lá de casa começou a tocar, corri, desligando-o. Fui para a cozinha onde Céu arrumava a bagunça da ceia:
– Céu, se alguém, qualquer pessoa, ligar procurando por mim é para dizer que eu não estou em casa e que me ligue no celular. Entendeu? Qualquer pessoa
– Ta Doda, e se for sua mãe?
– humm, ela você pode me chamar...
– E se for seu pai?
– haaaaaaaa Céu! Tirando minha mãe nem o papa E meu pai quase nunca me liga, e quando o faz, ele liga para o celular entendeu ne?!
Raphael tornou a ligar outras vezes para meu celular, aquilo era uma tortura. Eu não queria atender, era melhor deixar aquilo como estava, e assim eu fiquei: Abstraindo e fingindo demência!
Minha mãe ganhou de natal um cd da nova musa do Chanson (gênero musical francês) era a Carla Bruni que estava começando a tocar no Brasil, e tinha uma música dela que minha mãe não parava de ouvir:
“Quatre consonnes et trois voyelles
C'est le prénom de Raphaël”
A música se chamava Raphäel, e aquilo já estava virando uma piada de mau gosto pra mim, eu sentia o perfume dele do nada. Como eu podia estar nessa?
“Je me parfume Raphaël
Peau de chagrin pâtre éternel
Archange étrange d'un autre ciel
Pas de délice pas d'étincelle”
Eu tinha virado um clichê brega de uma novela mexicana homoerótica. Isso tinha de parar antes que eu começasse a cantarolar “Não faz mal, eu to carente, mas eu to legal” da Mara Maravilha.
Minha mãe notava que eu não estava muito normal, e sempre perguntava o que eu tinha. Eu me limitava a responder que não tinha nada, mas estava cada vez mais difícil fugir dela.
E assim foram passando os dias, eram tempos que não me lembrava de nada, não fazia nada, só malhava, corria e via tv com o Oberon. Minha mãe continuava louca e meu pai calmo como sempre. Eles estavam de recesso de seus respectivos trabalhos, daí viviam inventando coisas para fazer. Uma noite teve um jantar lá em casa, para os amigos loucos dos meus pais, eles tinham feito todos faculdade juntos nos anos 70 ou seja, só tinha figura bizarra.
Minha mãe, depois de algumas taças de vinho começou a colocar o tarot pra todo mundo. Já contei que minha mãe é louca?
No final da noite todos já estavam rindo e eu com meu humor blasé sentado perto da piscina vendo estrelas com o Oberon. Chegou minha mãe com o tarot.
– Vou ler sua sorte Doda
– A senhora sabe que eu não acredito nisso.
– Não estou pedindo, estou comunicando que vou fazer, além disso, você gostava que eu lesse sua sorte quando você era criança – Ela puxou meu rosto me dando um cheiro.
Então lá estava minha mãe, com um vestido todo colorido, uma taça de vinho, traçando as cartas. Ela tinha um jeito engraçado, mas eu adorava.
Ela colocou as cartas em uma pilha e pediu para eu cortar ao meio. Fiz o que ela mandou e então ela pegou as cartas e começou a deitá-las na mesinha de jardim que ficava à beira da piscina.
Eu não me lembro qual eram as figuras, mas ela colocava as cartas de modo a formar uma cruz. Ela olhava para as figuras e fazia “humm”
– Você está triste com alguma coisa que aconteceu no Rio.
– Desista Dona Carmen, se você que usar desse expediente pra tentar saber algo sobre mim não vai colar – Eu sempre fui reservado, não costumava contar nada para meus pais, especialmente para minha mãe que costumava falar pelos cotovelos.
– Psiuu! – ela pediu silencio com ar de irritada.
Ela era muito teatral, ficava com aquele ar compenetrado de pitonisa, olhando para as cartas.
Então ela suspirou e disse:
– Ah meu querido filho, sua vida vai ser de luta, você vai ainda passar por muita coisa difícil, mas você não faz ideia de quão longe pode chegar.
Fiquei calado. Ela continuou:
– Existe uma pessoa que vai aparecer na sua vida, isso se já não tiver aparecido, essa pessoa vai tumultuar sua vida como você nunca pensou, mas terá de ser assim, vocês vão se encontrar muitas vezes ainda durante a vida, isso é coisa antiga.
Ela ficou calada olhando para as cartas, se levantou e me abraçou bem forte, falando no meu ouvido:
– Estava com saudades do meu Doda, que bom que você voltou filho, sabe que sempre vai poder contar comigo, te amo viu?!
Fiquei sem entender e só falei:
– Ta na hora de suspender o vinho ne Dona Carmen?!
Ela riu me soltando
– Você puxou o lado chato da família mesmo – E voltou para junto dos amigos dela.
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