Peguei o celular de Michele e enviei o seguinte SMS para Victória: “CASO EU CAIA, CAIREMOS JUNTAS, QUERIDA. ACESSE A INTERNET”. Fui até o notebook e conferi os estragos. Nathan já havia postado na rede algumas consultas que Michele fazia para algumas pessoas em Capeside, inclusive de Victória. Com algumas mulheres falando de problemas pessoais, outras de relações com filhos, insatisfação matrimonial e expondo todas as consultas de clientes de Michele, que a própria Victória, os indicou. Com certeza, esses clientes de Capeside não ficariam nada satisfeitos com sua Rainha.
No dia seguinte, minha relação fraternal com Daniel apenas aumentava, já com Ellen não tinha mais contato. Victória estava na mira da polícia. E Michele ainda foragida. E foi na noite do outro dia, que conclui uma vingança usando do terror da mente humana.
Era início de noite. Era uma casa de nobreza, porém afastada e rodeada apenas de mato. O interior da casa era belo. Mas o que se passava nela era aterrorizante. Estava tudo escuro. A única iluminação era do que se passava na TV de 65 polegadas. E Michele, sentada e amarrada em uma cadeira, assistia tudo aos prantos, gritando e implorando para que aquilo desligasse. Já há dois dias, ela assistia a aquelas imagens. Sem comer, nem beber. Via aquelas inocentes crianças sangrando por serem submetidas a torturas, levando choques, sendo espancadas, estupradas. Tudo por serem gays. E tudo, que anos atrás, foi comandado por ela.
— Para, pelo amor de Deus, pare! Se eu jurar ser inocente, você para? Eu juro, pare...
Ela chorava como criança. Como um dia eu chorei. Assistia tudo, parado em um canto da sala, na parte escura. Agi.
— Você apenas jura, para que eu pare, fingindo ser o que você não é. Mas eu quero que você seja inocente. Você tem que ser inocente! Convença-me da existência da sua inocência! Anda! Convença-me que você não fez nada contra essas crianças! Que você é inocente!
— Para, para, para! Me ajuda! Alguém me ajuda! Eu sou inocente, eu sou...
— Não. Você é culpada. É a natureza da sua vida. Lembra-se do método? Essas crianças tinham que se convencer, acreditar, que eram heterossexuais, e enquanto não convencesse vocês disso, a punição de ser gay seria mantida. E o purgatório nunca acabaria, pois é impossível deixar de ser o que é! E você sempre será a culpada. E eu, tratarei de fazer que o seu purgatório seja eterno.
— Nãããããão! — berrou em desespero.
A TV desligou ficando breu. Liguei o rádio e as gravações da caixa de mensagem de seu celular tocavam. Soltei suas amarras e ela caiu no chão, tentando se levantar, mas não tinha força. Ela chorava desesperada, gritando, tampando os ouvidos em vão. Pois frases de ameaças como “Eu vou destruir sua vida”, “Você já está morta”, “Arrancarei sua desprezível alma e a jogarei no inferno”, ecoavam o local.
— Eu sou culpada! — berrou aos prantos e eu desliguei imediatamente o rádio — Eu não posso ser inocente porque minha essência é a culpa. Eu sou culpada, eu sou culpada, eu sou culpada... Mas eu não queria ser. Meu menino... Ele era uma criança e eu precisava do dinheiro para pagar o seu tratamento... Ele estava muito doente! E quando me ofereceram o dinheiro, em troca de ser culpada eternamente, eu...
— Você se vendeu, convertendo sua psicologia em terror e matando o seu filho...
— Eu não matei o meu filho!
— Você matou, ele morreu...
— Eu não matei! Não matei!
— Você me matou! — exclamei determinado — Você me matou. Eu morri, mesmo você aplicando seu dinheiro sujo em mim. Eu morri de desgosto. Eu morri vendo você matar a alma daquelas crianças e me matando aos pouquinhos...
— Meu filho?! Meu filhinho, querido, perdão, perdão... A mamãe te amava tanto...
— E o seu amor me sufocou. E te corrompeu. Pois mesmo após a minha morte, você continuou lá... Destruindo a vida de crianças como eu. E agora a vergonha está a sua espera lá fora no tribunal. Não me envergonhe mais. Eu tenho um presente pra você.
Me aproximei, mesmo no escuro, e coloquei uma arma, papel e caneta próximo a ela. Michele chorava, já delirava por tudo que viveu nesses dois dias e não distinguia muito.
— Não seja condenada culpada por aqueles que estão lá fora. Condene os outros. E venha viver inocentemente comigo. Porque a morte e a vergonha, vista de um certo ângulo, são a mesma coisa.
Michele afundou a cara no chão, mantendo-se no choro. Me afastei, recolhendo as amarras, tirando o CD do player do DVD e o CD do player do rádio. Acendi as luzes e saí, porém espiando pela porta. Vi que as mãos delas tremiam, mas ela pegou a caneta papel, e trêmula, escrevia no papel. Depois, com as mãos trêmulas, segurou a arma e colocou em baixo do queixo, chorando compulsivamente. Apenas saí do local e quando estava do lado de fora, já no campo, ouvi um eco de tiro. Atingi meu objetivo de terror.
Fui pra casa, livrei-me dos objetos e descansei. Fazer terror psicológico nos outros, com certeza mexe também com a sua mente. Sentei no sofá e liguei a TV. Noticiava que encontraram o corpo de Michele e que a causa da morte seria suicídio. Encontraram um bilhete, onde Michele indicou os nomes de determinadas pessoas, incluindo Victória Grayson. E a Rainha de Capeside agora seria indiciada junto com os demais, o que deixou o povo de Capeside abismado. E aqueles que tiveram sua consulta exposta na web, revoltados com Victoria. Sorri e acabei adormecendo, mas acordei quando alguém bateu na porta. Era Ellen. Levantei e abri, sem entender a sua visita.
— Eu ainda tenho um amigo que pode ouvir meus problemas? — indagou meigamente.
Sorri e nos abraçamos. Sentamos no sofá e ela falava pelos cotovelos, como sempre, falando que Daniel não dava mais atenção a ela, do clima tenso nos Grayson, entre outras coisas. Gostava realmente de sua presença e ingenuidade.
— Ah, amigo que bom ter você de volta! Eu fui uma boba, sabia? Até porque você é uma pessoa super cult, que sempre me deu força, e eu, como sempre, vou es...
— Ellen, Ellen! Eu já te desculpei. Aliás, eu que devia pedir desculpas. — ela me olhou sem entender — Eu fiquei sabendo que você enfrentou a Rainha, arriscando até o seu emprego quando ela ia me deportar. E o namoro com o Daniel foi só uma jogada. Ela não faria uma lei que deportasse gays se seu filho fosse um. Que por sinal é muito lindo e muito hétero. E como você sabe, héteros não me apetecem, so, não o roubarei de você.
— Hum, como se eu não confiasse no meu taco! — resmungou metida e gargalhamos.
— Ok, my princess. Now... Faz uma pipoca pra gente ver um filme? Ah, please, trata de voltar pra ele, pois desde que entrou nessa depre, você anda se vestindo pessimamente!
Ellen me olhou brava e pulou em cima de mim, me fazendo cócegas. Começamos a nos agarrar, brincando, e depois ela se rendeu, indo para cozinha fazer a pipoca. Recostei minha cabeça no sofá, quando de repente, Daniel entrou desconsolado.
— Ei, brother. O império ta em guerra e to sem refúgio. Caralho man, minha mãe ta metida nessa parada e... Ela patrocinava aquilo! Então eu... Pensei em dormir aqui. Brincar com o nosso namoro fake, que me mantém de pé e me faz ter você. Um viado do caralho, que me faz ter vontade de ser bicha, só porque você é único que consegue me fazer bem.
Ele não chorava, alias nunca vi Daniel chorar, pois ele dizia não ser coisa de ‘macho’. Mas percebi o seu esforço para não se derramar em lágrimas. Abracei-o, comovido. Quando olhei para o lado, vi Ellen de braços cruzados, nos olhando, chorando. Soltei-me de Daniel, e ela apenas acenou negativamente e saiu correndo.
— Vai atrás dela, baby. Se você deixar, ela pode te fazer muito bem, com você sendo você mesmo.
Sorri, dei um selinho rápido nele e ele me deu um tapinha na cabeça. A gente riu e ele foi atrás dela. Da janela, vi quando ele a alcançou e segurou seus braços. Ela chorava, se debatendo e o agredindo, mas ele apenas roubou um beijo dela e os dois se beijaram, apaixonadamente. Sorri. É bom também fazer pessoas felizes.
Com os dois “reatando”, acabei tendo que dividir minha cama. Sim, porque Daniel não queria voltar pra casa e Ellen queria ficar junto de Daniel. Então, dormia eu na ponta direita, Daniel no meio e Ellen na outra ponta.
Acordei no meio da noite. Daniel estava virado pra mim. Seus olhinhos, sua boca. Ele dormia sem camisa, via seu abdômen trincado acompanhando sua respiração. No seu short, dava pra ver um volume que se formava. Gosh. Pensei em tocar naquele pau, porém resisti, suspirei e desci, abrindo a geladeira e tomando uma água gelada. Sem sono, fui para varanda e Nathan estava sentado em uma das cadeiras olhando pro mar.
— Quando um namoro inicia, as amizades recebem um tchau de despedida.
— Você não é meu amigo, Nathan. É comparsa. A nossa despedida está muito longe de acontecer. — sorri me sentando ao seu lado.
— Trágico o final que teve a sua vingança, não? Ah, mas você é fã de tragédia grega.
— Obrigado por ser gentil e divulgar as consultas na web. — desconversei.
— Que nada! A conta está no correio. E nela diz que mereço saber de todos os detalhes.
— Absolut. First, a Michele tinha o hábito feio de gravar as consultas de seus pacientes. Quem sabe para um dia usar isso contra eles...
— O feitiço se encantou com a feiticeira.
— Então eu furtei essas imagens. Já as imagens da sessão de tortura, eu consegui furtando quando eu fugi do centro. No dia da palestra, eu troquei os DVD’s, fazendo a Ellen pôr o errado. Depois, eu me livrei rapidamente do Daniel, sequestrei a Michele, a jogando numa casa, amarrada, com fome e sede, vendo as tais imagens até hoje.
— Enquanto todos pensavam que ela estava foragida! Quanto trauma de uma terapia.
— Quando meu pai foi preso era pra eu ter parado num reformatório qualquer. Mas a Victória subornou a Michele, que tomou a frente do meu caso e me jogou nesse reformatório especial. E o experimento, aprendeu a psicologia atormentada aplicando naquele que lhe fez sofrer e lhe usando como cobaia. E o meu terror psicológico atingiu o ápice da tortura, resultando no destino que eles achavam que todos gays deviam ter.
— Meu Deus, Emmet... Você fez ela se matar! (...) Você me assusta.
— Good.
Encarei Nathan e ele acenou negativamente, saindo abismado do local. Meus olhos se encheram d’água e lembrei-me de uma última sessão que tive com Michele, antes de Victória tirar ela de lá e lhe dar um consultório particular em Capeside.
— Menino, foi bom te conhecer. — disse Michele enquanto eu, careca e todo machucado e chorando, estava deitado na maca — Mas infelizmente, outra pessoa ficará encaminhada de curar a aberração que você é. E saiba, que caso você não se convença de que você é um homem, você jamais verá o seu papai. Porque seu papai é um homem, mas um homem muito mau que matou e machucou muitas pessoas!
Lágrimas caíram dos meus olhos e ela apenas aplicou uma seringa em mim que me fez adormecer. Porém, antes de apagar totalmente lembro-me dela ter dito algo do tipo: “Meu Deus, perdoe-me e ajude esse pobre menino. Ele tem idade que tinha meu filho”.
A maior arma que alguém pode usar contra nós é o terror de nossa própria mente. Aproveitando-se de erros e remorsos que ali sem escondem. Somos verdadeiros com nós mesmo? Ou vivemos pela expectativa de terceiros?
Entrei, subi e ao chegar ao quarto, Daniel estava dormindo de conchinha com Ellen.
E se formos razoáveis e sinceros, poderemos um dia ser realmente amados? Ou fazer os outros encontrarem a coragem de liberar os seus segredos mais ocultos?
Desci, peguei o meu notebook, abri-o e vi uma conversa que Victória e Conrado estavam tendo.
— O Daniel não dormiu hoje aqui, Conrado. Está nos aposentos daquela... E eu estou sendo indiciada pondo em crédito o meu prestígio com o meu povo! E eu tenho certeza, que aquelas cenas foram postas pelo Emmet. Ele esteve lá, Conrado, a gente mandou o Armando para o centro e o Emmet era amigo dele! — gritou nervosa e Conrado apenas acenava negativamente incrédulo e rindo — Você não acredita? Claro! Você também quer a minha humilhação. Afinal, você me foi apunhalou transando com minha amiga!
— Victória, minha querida esposa. Esqueça isso. Pois acredito em você tão quanto você pode esquecer-se disso. E estou ao seu lado, no que precisar, para derrubar esse Emmet.
Fechei a tela do notebook, apanhei meu celular, disquei e falei:
— Hello Lídia. Espero que não seja uma má hora.
Ou no final, somos incompreensíveis até para nós mesmo?
contadordeserie_rj@hotmail.com