— Que beleza! Saio duma e entro noutra pior. Quem tu tas pensando que é, brother? Fica aí de ceninha. Ciuminho! Nosso namoro é de fachada, rapá. Não sou viado e não aturo essas palhaçadas nem de mulher!
— Quem é que tu, que tas pensando que é, teu moleque?! — levantei-me esbravejando e o assustando — Playboyzinho inconsequente! Pois a nossa amizade pra mim nunca foi fachada! E o mínimo que você devia ter era respeito ao espaço alheio. Porque um dia, ninguém mais irá rir da piada que você se tornou. Nem você mesmo!
Joguei tudo para o ar. Fuck it! Nada importava mais. Saí de casa, indignado, andando apressado quando me deparei com tio João. Aqueles 1,90 de muralha. Foi aí que percebi que eu chorava. E ele limpou minhas lágrimas com aqueles dedos ásperos.
— What are you doing here? Você não mora do outro lado? — perguntei me afastando.
— Eu tava passando por aqui. O povo todo de Capeside foi convidado para a festa do seu... Com aquele rapaz. E foi também nessa casa... Que morou um piá que me partiu.
Assenti. Peguei no pingente que tinha minha foto quando criança. Sorri. Acariciei seu peito. Como era duro. Ele usava uma regata preta, apertada, expondo seus músculos.
— Mas tu me surpreendeste. Conseguiu virar um Grayson. Desbravando tudo. Todos. Afinal, quem és tu, piá?
— Um mistério. Como você. Que você guarda aqui. — parei de acariciar batendo minha mão em seu peito e me afastando — Quem és tu, tio João?
Nos encarávamos em nosso silêncio particular. Daniel chegou e estranhou ao me ver conversando com aquele homem tão rústico. Não os apresentei. Apenas encarava tio João assim como ele me encarava. E logo percebi que devia a explicação a Daniel.
— Esse é o tio João, Daniel. Ele trabalha numa oficina no norte de Capeside. Ele vai à nossa festa. I hope so. Pois ele sabe, que os Grayson sempre reservam boas surpresas.
— Prometo lhe retribuir com boas surpresas se eu realmente for surpreendido.
Sorri amigavelmente. Daniel nos olhou sem entender e notei um pouco de ciúme. Peguei suas mãos e partimos. No trajeto, conversávamos pouco. Ele apenas comentou que achou estranha a festa preparada pela sua mãe. Expliquei que tratava apenas de uma jogada de marketing de sua mãe, manipulando-o e o deixando bem revoltado.
Me surpreendi ao chegar no local. Victória caprichou na decoração e não poupou dinheiro. Era um espaço enorme que comportava um grande número de pessoas, revestido de areias brancas siliciosas, com uma espécie de vários córregos, em forma de linha vertical, preenchidos com rasas águas aromatizadas e pedras seixos e calcárias. O palco era todo feito de vidro resistente que refletia imagens de algas numa água.
Ficamos numa espécie de camarim aguardando a hora. Eu, Lídia, Conrado, Victória, Ellen e Daniel. No clima tenso. E Ellen até tentou um particular comigo, mas fui direto:
— Ellen, please! — interrompi-a rispidamente — Vá curtir! Fazer as suas loucuras
Pois é o que você faz de melhor. Exceto por me encher com teus problemas. — afirmei saindo irritado, porém sendo interceptado por Victória.
— Admiro que se arrisque tanto para ser um Grayson. E sinto pena porque jamais deixarei você ser. Creio que será uma noite belíssima. Sem os estragos dos eventos passados causado por você e aquele rapaz estranho, Nathan. A festa é toda sua.
Sorri. Mal sabia ela que pouco me importava em ser um Grayson, e sim, em acabar com os Grayson. Ellen subiu no palco e nos anunciou. Subimos todos, exceto por Lídia, que se manteve no camarim. Discursei. Toquei bastante na ferida aberta de Victória – centro de cura gay e Michele – e finalizei com curtas frases, mas moralmente impactantes.
— Perdão. Família. Victória, não me importa os rios sujos passados. Deportação. Preconceito. Juventude perdida. Apenas o presente. Eu te perdoo... My Queen.
Victória e eu selamos com um hipócrita abraço, que foi aplaudido em massa por todos. Victória pegou o microfone e mandou ver na hipocrisia.
— Uma noite de perdão! Pois então, chamo no palco minha querida amiga, que está de volta a Capeside em nome do perdão de sua Rainha. Senhoras e senhores: Lídia Davis.
O choque foi geral. Porém aos poucos, o choque deu lugar aos aplausos. Era vez do Conrado. Ele pegou o microfone e começou a falar belas palavras que perderiam toda a credibilidade. Ouviu-se o som quase imperceptível de alerta de mensagem de um celular. Depois, outro. Simultaneamente foram-se ouvindo outros, outros e outros. Conrado parou de discursar e nos olhou, assustado. O povo de Capeside pegava seus celulares, curiosos, e tinha uma expressão assustadora ao verem a mensagem. Os Grayson não entendiam o que acontecia e se olhavam apreensivos, porém eu apenas fingia apreensão, pois sabia o conteúdo das mensagens recebidas naqueles celulares, que eu mesmo programei para enviar. Era o vídeo íntimo de Conrado e Lídia.
— Hipócritas! — ecoou o berro rouco e grosso do tio João no local calando a todos — Vejam Capeside, vejam! O nosso líder! O nosso presidente! Cometendo o adultério! Passando por cima de umas das leis que é imposta a todos nós! E retribuindo nossa lealdade com a hipocrisia! A lei só vale pra nós? Corja de magistrados! Opressores!
O silêncio imperou o local. O alerta de mensagem de todos que estava no palco tocou. Pegamos e vimos o conteúdo. Daniel olhou decepcionado para o pai. Ellen pasma. Victória e Lídia apavoradas. E Conrado com os olhos saltando de medo. Da plateia, tio João caminhou em direção ao palco. Porém parou. Abaixou-se, pegando uma das pedras no córrego e atirando contra nós. Imediatamente nos protegemos, não sendo atingidos.
— Insolente! — berrou Victória tomando o microfone de Conrado e assumindo o controle — Tentas atingir traiçoeiramente a quem lhe protege e lhe dá conforto? Pensas que saíras impune?! Seguranças! Levem esse homem e o joguem na boca do inferno!
Victória olhou para os seguranças que se preparam para interceptar tio João. Porém para o desespero dos Grayson, tio João se agachou, e junto com ele, dezenas, centenas de pessoas, repetiram o mesmo ato, se levantando e ficando com as pedras nas mãos. Os seguranças recuaram. Jamais dariam conta do reboliço que aconteceria ali. Victória deixou o microfone cair no palco, dando passos para trás e agarrando-se em Conrado. Lídia se protegeu colocando suas mãos na frente do rosto e Ellen virando o rosto. Apenas segurei as mãos de Daniel, o puxando e dando um passo na frente do palco.
— Please! — berrei desesperado e amedrontado, acenando positivamente.
O povo tinha que me absolver. Daniel abraçou-se a mim por trás e lentamente fomos caminhando para a escada que descia para a plateia. Ninguém nos atacou. Caminhava e quando olhei para trás, vi o olhar de Ellen suplicando por socorro. Porém neguei minha absolvição a ela, descendo para plateia com Daniel agarrado em mim e sem ninguém fazer nada. Ellen tentou fazer o mesmo, porém num ímpeto de desespero, Lídia tentou fugir para o camarim e as pedras foram disparadas. Victória e Conrado se protegiam e em meio aos pedregulhos fugiram para o camarim. Lídia e Ellen levaram algumas pedradas, mas conseguiram também ir para o camarim. O povo, não satisfeito, avançou, agachando e pegando as pedras que foram lançadas, subindo no palco e invadindo o camarim. Daniel me abraçava forte, no meio da multidão, e ele que nunca chorava, estava aos prantos, desesperado.
— Emmet... Emmet... Os meus pais... Os meus pais, velho... Faz alguma coisa!
— Daniel! Não solta as minhas mãos!
Segurei firme em sua mão e enquanto o povo avançava, eu ia à direção contrária, onde estavam os seguranças. Sabia que o camarim tinha uma porta de saída e os Grayson obviamente sairiam por lá a caminho da praia. Mas seriam perseguidos até que alguém os salvasse. Cheguei aos seguranças e ordenei que eles nos acompanhassem. Saímos pela entrada principal, para evitar a multidão e quem sabe interceptá-las, porém já era tarde demais. A multidão já estava na praia e corria com as pedras atrás dos Grayson. Daniel e eu corríamos atrás da multidão. As ondas do mar faziam um barulho violento. O povo gritava injuriado contra os Grayson. E avançava. Tacando pedras. Parando. Agachando. Pegando novas pedras. E atacando. Tudo havia saído do meu controle. Olhei para o segurança e percebi que o idiota tinha uma arma na cintura. Num ímpeto, larguei as mãos de Daniel, tirei a arma da cintura do segurança e fiz um disparo para o alto. Dois disparos. Três disparos. A multidão parou. Os gritos cessaram e ao invés deles olharem para trás, pelo barulho do disparo, eles olhavam para frente. Estranhei. Segurei a arma com uma mão e com a outra a mão de Daniel. Empurrei as pessoas, que parecia estar congeladas, abrindo caminho. Depois de passar por várias pessoas, finalmente cheguei ao início do reboliço. My God! O corpo daquela mulher, lançado na areia com um pedregulho ao lado de sua cabeça ensanguentada. A mulher era Lídia.
Sentença declarada. A multidão, paralisada, por ser responsável por um julgamento. Os Grayson e Ellen chocados, estáticos. Daniel me abraçava forte, não querendo olhar para o corpo. Olhei ao meu redor e quantas pedras na areia. Pessoas ao meu redor com uma pedra em cada mão. Outras, com apenas em uma mão. E poucas, como tio João, sem nenhuma pedra mais nas mãos. Um a um foi se retirando, indo para seu rumo, como se não tivesse feito parte daquilo. E daquela multidão, restaram eu, Daniel, Conrado, Victória, Ellen e o corpo de Lídia estirado e ensanguentado na areia.
Sim, para Lídia a sentença foi a morte. Julgada sem a menor inquirição de um povo revoltado. Julgamentos realmente são fiéis? E se sim, suas sentenças equivalem realmente ao tamanho da infração cometida? Pois afinal, quem nunca pecou e ousará a atirar a primeira pedra? Ou quem se acovardará não fazendo justiça e deixando o inimigo impune? Sim, somos todos hipócritas e assumimos inconscientemente que a justiça divina é sim feita pelas mãos humanas.
— Emmet. — sussurrou Daniel, que estava deitado comigo, no sofá, em silêncio e extremamente abalado pelo que aconteceu — Eu não vou mais pra casa. Eu não reconheço mais meus pais. Eu to assustado, brother. Eu posso morar aqui?
— Yes, baby.
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