Como previ, os dias realmente foram longos. Em seis meses de aulas, de vez em quando tentava falar com Gelo e... Bem, acontecia como da primeira vez e empatávamos nos insultos. Tiago e eu ficamos muito próximos, com o garoto loiro sendo uma visita freqüente em casa e passando a chamar minha mãe por “Tia Laura”. Não fazia mal, eu gostava muito dele, o garoto sabia conduzir uma conversa sem entediar ou perder assunto, exceto em um dos dias em que tentava falar com o garoto recluso e arisco, nesses dias o único assunto que saía de nossas bocas era o próprio.
. – Como ele pode ser tão idiota? – falei em tom raivoso, em um dos dias quentes de junho.
Tiago estava deitado em minha cama sem camisa, exibindo o que comprovei ser o peitoral de alguém que praticava natação há muitos anos: definido, mas não muito musculoso e trincado ( na minha opinião, perfeito).
. – Lu... – começou em voz entediada, olhando para o teto – Te cortando, você não tem ar-condicionado?
Não ouvi.
. – Tenho. – apontei para o canto esquerdo do quarto – Sério, eu nunca fiz nada para ele, por que ele simplesmente não é minimamente simpático, só para variar?
Aquele fora especificamente um dia muito, muito ruim na escola.
Meu amigo levantou e fechou a porta da sacada, falando enquanto isso.
. – Que bom, achei que ia fritar aqui. – parou no meio do quarto e olhou ao redor – Cadê o controle?
. – Sério, eu nem... Ah, em cima da escrivaninha. – apontei – Você está ao menos me escutando?
Ele não se deu ao trabalho de responder, simplesmente ligou o ar-condicionado, abaixou para a mínima temperatura e ficou parado em frente ao vento.
. – Bendito seja o criador dessa maravilha, quem foi?
. – Stuart W. Cramer, se não me engano... Ouviu minha pergunta?
. – Sim – se jogou outra vez na cama – São Stuart, soa bem?
Fiquei brincando de girar a cadeira sem responder.
. – Certo – disse com um tom estranho – Acho que isso te subiu a cabeça.
Parei de girar.
. – Acha exagero querer ser tratado socialmente?
. – Não, acho exagero ficar reclamando e insistindo em uma coisa que eu te avisei que era problema.
Fiquei pensando um pouco, olhando para o espaço. Tiago estava certo, ele havia mesmo me avisado mas ainda assim, alguma coisa me atraía para Gelo e com certeza não era sua falta de educação. “Maldito”, pensei.
. – Aquele garoto simplesmente me irrita! – quase gritei, levantando da cadeira repentinamente e fazendo com que meu amigo se sentasse na beirada da cama – Tigo, ele não tem motivo para me tratar assim e a cada resposta que recebo, minha vontade de esganá-lo só aumenta! – gesticulava muito, fazendo movimentos cada vez maiores e mais nervosos – E eu... Eu... Eu só queria conversar com ele.
Em um desses gestos, quase acertei o rosto do Tiago, que segurou minha mão antes de acertar.
. – Desculpa. – falei rapidamente.
. – Como disse, isso te subiu a cabeça – ele me olhava nos olhos e por um segundo me vi afogado no azul de seus olhos – Você está com raiva, sim. Mas não é motivo para tanta insistência.
Continuei sem dizer nada, só encarando-o.
. – Gelo não faz amigos, Gelo não gosta de pessoas. – a cada palavra o azul de seus olhos parecia escurecer cada vez mais, passando do azul de uma piscina, para a cor do alto-mar, um azul escuro e perigoso – Esqueça-o de uma vez por todas, simplesmente ignore, como nós fazemos.
A resposta saiu automaticamente.
. – É uma questão de orgulho, ele feriu o meu e só vou conseguir me sentir bem quando ele se desculpar e aceitar a amizade.
O garoto soltou minha mão e abaixou a cabeça.
. – Cabeça-dura – disse em voz baixa, ainda olhando para o chão – Que seja então. Que tal uma aposta?
. – Como assim, aposta?
Tiago me encarou novamente, desta vez com os olhos na cor normal e um sorriso malicioso no rosto.
. – É simples. – fez menção de uma balança usando as mãos – Se você perder, não conseguindo a amizade do garoto em questão, vai ter que atender um pedido meu, seja ele qual for – continuou com as mãos como balanças imaginárias – Se eu perder e você realmente for capaz de conquistá-lo, então eu tenho que atender um pedido seu.
Pensei um pouco sobre a situação.
. – Isso é imoral e antiético... – falei encarando-o – É, eu aceito.
Nós rimos e Tiago deitou-se outra vez na cama, falando agora sobre uma garota do terceiro ano do colégio e seus “namorados semanais”.
Durante a noite pensei com clareza sobre aquilo, a aposta era injusta uma vez que a probabilidade de eu conquistar a amizade de alguém tão arisco era quase nula. Dormi pensando no que eu poderia fazer.
O dia seguinte no colégio foi particularmente diferente, ignorei Gelo e segui a aula normalmente, até que Helena, nossa professora de história anunciou:
. – Queridos Imps do meu coração – disse alegremente – Daqui a duas semanas nosso colégio fará uma excursão – o ânimo da sala cresceu de maneira palpável – Corumbá de Goiás – o ânimo desapareceu – Acharam que seria uma excursão sem estudo? Meus caros, aprendam, excursão é um nome bonito para aula de campo.
Depois da entrega dos papéis onde pediam a permissão dos pais, a aula seguiu normalmente. No recreio houve a quebra da máscara.
. – NÃAAAAAAAAAAAAO! – Tiago gritou em pleno corredor, atraindo atenção de várias pessoas que passavam por ali – Tenho uma prova de natação no dia da viagem!
Mariana consolou-o enquanto Danilo e eu discutíamos sobre como seria: primeiro dia, ida, primeira parte da cidade, chácara-hotel, segundo dia, mais aula e volta. Nada de surpreendente, exceto pelo fato de que teríamos que dividir o quarto com alguém da sala.
. – Lu – ouvi Mariana falar enquanto brincava de consolar – Wagahai wa neko de aru.
Entendi o sinal e corri para a biblioteca o mais rápido que pude, já que o recreio já estava quase acabando, e foquei no título do livro que vinha procurando há anos e que finalmente a biblioteca encontrara: “Wagahai wa neko de aru – Eu sou um gato”
A bibliotecária se espantou em me ver tão agitado na entrada, e sem palavras, simplesmente me indicou o lugar aonde se encontrava o livro que queria (desde o início do ano havia deixado de aviso que estava à procura). Segunda prateleira a esquerda, terceira fileira, depois segunda prateleira a direita.
Encontrei a prateleira sem muita dificuldade, mas fiquei estático na hora em que toquei o livro: havia uma voz do outro lado da prateleira, uma voz baixa e neutra que reconheci como sendo do garoto que tanto me perturbava, o maldito sem nome Gelo.
Sabia que se ousasse retirar o livro da estante ele me veria pelo nicho, então simplesmente parei e escutei a conversa.
. – Senhor, agradeço, mas só é daqui a duas semanas – a voz não aparentava alteração, mas a escolha de palavras não aparentava nenhum prazer pela pessoa do outro lado da linha – Sim, eu sei. E estaria bem melhor se não ficasse me lembrando o tempo todo – uma pausa – Mas é claro, faz parte, eu tenho que ir – outra pausa – Quem? Não, não faço idéia de quem seja esse, e não me importo em saber, na verdade – mais uma pausa – Que pena, então. Pois eu vou, e nem pense em me obrigar a outro daquelas situações chatíssimas como a do mês passado. Agora adieu, eu tenho uma vida para cuidar.
E silêncio.
Logo em seguida um soco forte foi dado em alguma coisa.
. - Nom de Dieu de putain de bordel de merde de saloperies de connards d'enculé de ta mère.
E finalmente o som de passos se dirigindo à fileira de livros mais a direita. Esperei dez segundos e peguei o livro, indo sem fazer barulho até a mesa de locação e por pouco não deixando meu livro lá. Aquela conversa realmente o havia irritado, muito, e com o pouco que sabia de francês a expressão agressiva não ficava nem um pouco melhor.
Fui para a sala e o olhei de canto: continuava o mesmo, com sua expressão neutra e seu livro de capa negra aberto. Deixei de lado, afinal, não era assunto meu.
Aquela noite foi uma das mais inquietas, com a cena estranha martelando em minha mente, sem me deixar pensar em mais nada. E quem diria, Tigo estava certo, o garoto era problema: já havia roubado minha atenção e meu sono, o que viria em seguida?
Vá bene persona! Agradeço pelos comentários e pelos votos, tenho que admitir que estou muito emocionado em ver meu trabalho sendo apreciado. Juro que ao longo da série vou repondendo os comentários de forma mais pessoal, é só conseguir mais tempo^^
Gratzie.