Duas semanas se passaram lentamente desde o incidente na biblioteca e tudo continuava aparentemente normal: Tigo reclamando sobre não poder ir para a viagem, Danilo reclamando sobre os parceiros de quarto serem do mesmo sexo, Mariana reclamando sobre a didática do professor de inglês e Gelo... Bem, ele continuava quieto. Tudo seguiu assim até o dia da viajem, sem nada muito especial.
No dia da excursão outra vez acordei com o ombro doendo, nada de mais considerando que passei a noite inteira deitado sobre aquele braço. Assim como no primeiro dia, me arrumei e me preparei psicologicamente para os dois dias em Corumbá, mas dessa vez parei em frente ao espelho e olhei bem: 1,76m, pele branca, cabelos loiros (Quase caindo nos ombros, assim como os do garoto que tanto me odiava) e a porcaria de meus olhos dourados, literalmente dourados, fazendo com que várias pessoas me chamassem de “Garoto monocromático”. Também passei a mão no queixo, sentindo o furinho que tinha ali, e olhei o geral. Nada mal, eu diria. Deixei de lado, peguei minha mochila e desci as escadas correndo, gritando um “Até mais” para minha mãe.
Chegando no colégio, logo encontrei minha turma em um canto afastado do pátio, se reunindo com Helena, que fazia a lista com os presentes. Danilo me cutucou e perguntou se já havia encontrado mais alguém.
. – Não... – disse olhando para o ônibus da excursão – Achei que a Mariana estivesse aqui e... – olhei para o lado e puxei um garoto que passava – Ricardo, viu a Mari por aí?
O garoto parou um minuto.
. – No banheiro, eu acho.
Agradeci e continuei a conversar com o Dan. A sumida chegou pouco depois, usando um vestido florido e o cabelo solto de uma forma que emoldurava seu rosto em forma de coração, ouvi o garoto suspirar.
. – Pessoas – ela disse levantando uma mão – Como vão vocês?
Depois da conversa costumeira de contar como está, Helena gritou a plenos pulmões no meio do pátio.
. – IMPS DEI MALEBOLGGIO! – Sim, ela ama La divina commedia – Vamos, está tudo pronto!
Entramos no ônibus em fila indiana, e para varia, fiquei por último já que dei a besteira de ficar admirando a lataria da coisa. Entrando, olhei por cima e vi que era como excursões normais: dois bancos de cada lado, um na janela e outro no corredor mais um corredor apertado e a parte de cima onde vão as bagagens de mão. Tudo normal, exceto pelo fato de que o número de pessoas na excursão era ímpar e um assento havia sobrado, já que todos estavam ocupados com as panelinhas (até mesmo meus dois amigos...). Marchei para os últimos assentos e peguei a poltrona da janela, olhando para o jardim da lateral do colégio até que todo rumor de conversa parou. Estiquei o pescoço para o corredor e lá vinha ele: Gelo, incrivelmente vestido com uma camisa azul-oceano, uma calça jeans negra e trazendo um corte de cabelo ao estilo militar, muito parecido com o de Tiago.
“O que nos nove infernos ele está fazendo aqui?” pensei “Ele não tinha mais nada para fazer?”. Até que me dei conta, o único assento disponível era ao meu lado. Amaldiçoei todos os deuses que conhecia naquele momento.
Gelo não pareceu reparar, colocou a bagagem de mão no compartimento de cima, retirou o livro de capa preta e sentou-se como se nunca houvesse me visto na vida. Reprimi outro xingamento e olhei para ele outra vez, percebendo algo que desde o primeiro dia atiçara minha curiosidade (lamento por não ter mencionado-o antes): Um colar. Não era um colar comum porventura, consistia de um cordão de couro trançado com dois pingentes pendendo, sendo um deles uma pedra redonda que lembrava muito um pedaço de madeira, e o outro uma sodalita lapidada em formato de folha. Uma escolha curiosa, pensei. Ignorei-o durante o resto da viagem.
O dia se arrastou em Corumbá. A cidade é linda, mas as aulas não, portanto agimos como zumbis durante o dia inteiro, sem prestar muita atenção no que Helena falava e fazendo brincadeirinhas infantis todo o tempo. A situação mudou quando chagamos no hotel-chácara, onde o alojamento e uma grande piscina nos esperavam, mas a melhor notícia foi saber que meu colega de quarto seria Alessandro, um garoto muito inteligente da nossa sala. Arrumamos nossas coisas e pulamos com vontade na piscina, assim como no dia da aposta, era um dia quente de junho que nos fazia pensar na possibilidade de que se houvesse um inferno, era ali mesmo. Como a água estava fria, aproveitamos o máximo até a professora dar seu ultimato, nos mandando sair e arrumar tudo para ir dormir, já que o dia seguinte seria longo. Saí da piscina e olhei ao redor, encontrei quem procurava em um jardim pequeno a noroeste da área de banho, lendo seu aparentemente infinito livro de capa negra.
Me surpreendi ao notar como a noite caíra rápido por lá, mas não liguei muito e fui para o refeitório, onde Mari e Dan já me esperavam com um lugar guardado na mesa. Não posso dizer que conversamos, quero dizer, os dois falaram bastante, mas minha cabeça se mantinha dividida em dois locais: A cama, e onde diabos Gelo estaria. Decidi manter só um deles e fui para a cama, a última coisa que eu gostaria de ter era mais uma noite sem sono por conta de um garoto que eu mal conhecia.
Mas pelos arcanjos e arquidemônios, como eu estava errado.
Acordei no meio da noite com um barulho do lado de fora janela do quarto, que ficava virado na direção da área de banho, levantei, forcei os olhos e vi uma silhueta na água, nadando da mesma forma que imagino que uma Náiade deve nadar. A única fonte de luz aquela hora era a bela lua cheia em todo seu esplendor. Até hoje não sei o que me levou a fazer isso, mas me esgueirei até a porta e abri o mais silenciosamente o possível, conseguindo não acordar Alessandro, andando silenciosamente pelo corredor, tentando não acordar ninguém. Avancei com sucesso até a área de banho, sem ninguém acordar ou dar o menor sinal de perturbação, mas ao invés de continuar até a piscina, parei alguns metros antes, 20 metros talvez, pois a figura graciosa havia se apoiado na borda e içado o corpo para cima, por sorte, o ser virou-se e agarrou alguma coisa próxima, que reconheci como uma toalha. Parando para observá-lo percebi os detalhes, a pele branca que refletia a luz da lua, os músculos bem definidos das costas e um cabelo negro e curto, como em um corte militar... Em suma, reconheci Gelo. No mesmo instante pensei em dar meia volta e correr para o dormitório, mas ao me virar ouvi sua voz de outra forma, entoando baixo a melodia de uma música muito parecida com uma canção de ninar, só que com uma letra estranha. Não me lembro da letra ou do ritmo da música, mas a história não era alegre.
Contava a vida de uma princesa, de uma rosa e de um dragão, onde a princesa guardava a rosa e o dragão guardava a princesa, todos em uma torre que ficava depois do fim do mundo. A princesa nunca envelhecia ou crescia, ela era eterna assim como a rosa, cuja a música contava que se uma de suas pétalas fosse arrancada, ela realizaria qualquer desejo seu, exceto mudar o passado, mas quando todas as pétalas fossem arrancadas o mundo “ouviria sua canção de ninar”, por isso, o trabalho da princesa era o de impedir que se arrancassem as pétalas e o do dragão, manter a princesa segura. Mas nem tudo funcionou assim, os dois se apaixonaram um pelo outro, já que eram a única coisa que os separava da solidão e por isso, o amor dos dois foi o mais puro e forte que já existira, eles não desejavam nada a não ser sair da solidão. Os anos foram se passando e o dragão foi envelhecendo, assim, como em um presente dos deuses, ele foi levado e morreu. A princesa ficou desolada com a morte do dragão, solitária, não possuía mais nenhum motivo para continuar viva, mas também não podia morrer. Ao longo da história vários viajantes tentaram alcançar a torre e muitos falharam no mar, mas três alcançaram: Um rei, um príncipe e um camponês, cada um com suas dores únicas e poderosas o suficiente para fazer com que os homens viajassem até depois do fim do mundo para tentar uma chance de acabar com aquilo, mas quando chegaram à princesa, um de cada vez, ela não os permitiu ir até a rosa e simplesmente conversou com cada um, mostrando que mesmo bem escondida, a vida deles ainda continha felicidade e eles não precisavam arriscar a existência do mundo para resolver suas situações, foi quando Gelo cantou algo que me fez arrepiar “ A princesa enxergava a alegria na vida de todos pois na dela já não havia nenhuma”. Em um último ato, a princesa descobre como encontrar a sua felicidade perdida e arranca a rosa do chão fazendo um único pedido “Quero me encontrar de novo com meu dragão”. A canção acaba aí.
Ouvir aquilo foi estranho, um misto de sentimentos se formaram em mim naquele momento e não consegui me conter, chorei, mas não porque a voz baixa e rouca de Gelo me arrepiassem até a alma (certo, por isso também), mas chorei pelo amor da princesa e do dragão, chorei pelos marinheiros que morreram sem alcançar a torre, chorei pelos três que chegaram até lá e principalmente chorei pela solidão de cada um na canção. Chorei de peito aberto, soluçando, só parando um segundo.
. – Bela, não é? – por isso parei, Gelo havia falado, percebido minha presença – Não se preocupe em chorar, Lucas. É sempre assim, venha até aqui.
Sem questionar, fui.
Vá bene, signori! Agradeço por todos os comentários e a força que vem me dando e...
.Afonsotico - Você não faz nem idéia do quanto, signori.
.UEFA - Acho que emoções não faz jus ao que está por vir... tente "Caos"
.Escravinhosubmisso - Agradeço o elogio e, bem, só posso falar que a cena de sexo que virá pela frente por aí não é exatamente muito quente...
Aos outros caros que comentaram, juro que irei responder TODOS, só preciso ajeitar umas coisas^^
Ah! Vou tentar aumentar o tamanho do conto a partir do próximo, só que não sei extamente quanto... Abraços de um pobre escritor^^
Gratzie