- Toma, limpa esses ferimentos aí - Cauê entregou um lenço umidecido ao rapaz.
- Obrigado. Ai!
- Agora me conta: por que aqueles caras te bateram?
- Eu agradeço pelo que fez, mas agradeceria mais ainda se não tocasse nesse assunto.
- Olha o que eles fizeram com você. Podiam ter te matado. Como não quer tocar no assunto? A gente tem que avisar a polícia.
- Não. Não precisa envolver a polícia nisso. Já vou indo, obrigado mais uma vez - ele se levantou e saiu.
- Espera! Você não pode sair assim na rua sozinho, deixa que eu te levo pra casa.
- Por favor, me deixa. Chega de encrenca por hoje.
- Então quer dizer que você sabe quem foi que te bateu?
- Não. Tchau! - o rapaz abriu o portão e saiu.
- Ei! Pelo menos me diz o seu nome. - Cauê correu para o alcançar já na rua.
- Felipe, Felipe Nurks.
- Prazer, Felipe, sou o Cauê.
- Olha, Cauê, você salvou a minha vida hoje e por isso sou eternamente grato, mas, por favor, não se aproxime de mim. É para o seu próprio bem.
- Não vai mesmo me contar, não é?
- Não. - Felipe deu as costas e seguiu seu caminho.
- Então acho que vou ter que descobrir sozinho.
Cauê voltou pra casa sem nem perceber que, perto dali, escondido em um beco escuro, alguém lhe observava.
***
Joaquim chegou em sua casa. Entrou no quarto e se jogou na cama. Pensava em Cauê.
Lembrou da "aula" que tiveram à tarde e riu sozinho, lembrou do bosque, do sorriso, do jeito de Cauê. Seu coração acelerava. Se sentia feliz porque sabia que o encontraria de novo no dia seguinte.
Porém seus pensamentos foram dispersos pelo toque do seu celular. Olhou no visor, viu que era Janaína, fez uma careta e atendeu:
- Oi, amor! Quanto tempo. Não fazem nem vinte minutos que a gente se viu.
- Pois é, e eu já estou com saudade, meu gato! Tô ligando pra dizer boa noite, tá?
- Mas você já disse.
- Então digo de novo. Ah, e não esquece de me buscar amanhã às sete e meia.
- Estarei aí.
- Já ia me esquecendo, nós precisamos...
Janaína emendava um assunto após o outro e Joaquim não conseguia desligar o telefone.
***
No dia seguinte, no serviço, Cauê e Joaquim mudavam algumas coisas de lugar.
- E aí, como foi o pedido de namoro?
- Horrível, cara! Eu tremi, suei, gaguejei, mas no final deu tudo certo.
- Então quer dizer que agora você e a Janaína namoram oficialmente? - Cauê perguntou com tristeza nos olhos.
- Sim. Agora estou acorrentado.
Cauê riu. Depois perguntou:
- Joaquim, você conhece um tal de Felipe Nurks?
- Conheço, sim, é um viadinho que estudava à noite lá na escola.
- Nunca o vi por lá - Cauê respondeu tentando esconder a irritação causada pela expressão "viadinho".
- Ele voltou pra manhã logo depois que você veio pra noite. Teve uns problemas com o Abel, por isso mudou de turno.
- Quem é Abel? E quais problemas eles tiveram?
- Abel é um amigo meu, você já deve ter visto ele, estuda à noite também. Os dois tiveram uma briga feia porque Abel viu ele transando com outro garoto numa festa e espalhou pra todo mundo.
- Ah, sim... - Cauê estava pensativo.
- Mas, por quê da pergunta?
- Nada demais, esquece.
- Tudo bem, então. E por falar em festa, vai na de logo mais à noite?
- No desfile da escola? É claro que eu vou!
- Diz aí, quem quer perder aquelas gatinhas de biquíni?
- Pois é, e você, nunca pensou em desfilar?
- Não. Sei que tenho potencial, mas isso tudo agora tem dona.
Cauê riu com o coração sufocado de inveja de Janaína:
- É uma pena... - Cauê soltou sem pensar.
- O quê?
- ... Para as garotas, é uma pena para as garotas que te adoram, não vão poder te ver na passarela.
- Lamento por elas. Quem você pretende levar?
- Ninguém.
- Que bom, porque tenho o par perfeito pra você.
***
- Eu acredito que vampiros existam, meu sonho é conhecer um. Pra mim eles são pessoas normais que vivem com a gente, estudam com a gente, trabalham com a gente. Quem sabe a pessoa que senta todos os dias ao seu lado no ônibus é um vampiro. Talvez você seja um vampiro! - Margarete, irmã de Janaína, olhava Cauê com desconfiança enquanto entravam na quadra da escola onde aconteceria o evento.
- Acho legal todo esse papo de vampiros, mas você sabe que eles não exis...
- Li uns artigos do site EuSouUmVampiro.com onde pessoas relataram ser ou já ter conhecido vampiros.
- Aqui no Brasil?
- Sim, imagine só. Conversei com um vampiro que mora em Bom Jesus no Piauí e leva uma vida normal como qualquer pessoa.
- No Piauí? Mas eu também li uma reportagem que dizia que o Estado do Piauí foi considerado o mais quente do país. Aliás, nenhum local do Brasil é adequado para vampiros, talvez no Sul, mas este é um país tropical bem próximo da linha do Equador onde os raios do Sol incidem abundante em qualquer época do ano.
- Está me chamando de mentirosa? A Jana disse que você era legal.
- Não, jamais, você tem razão.
- Não banque o compreensivo, ok? Já tenho 15 anos e maturidade suficiente para entender o que está fazendo. Quer saber? Vou ficar com minhas amigas. Reze pra que eu te procure até o final da festa para te mostrar o gato bem melhor que você que vou encontrar. Seu infantil. Não se fazem mais homens como Edward Cullen. - Margarete saiu ofendida.
- Graças a Deus! - Cauê sussurrou. Viu, entre a multidão de alunos, Felipe no fundo da quadra e foi em sua direção. Porém foi surpreendido por Janaína:
- Ué, cadê a Margô?
- Ela foi com algumas amigas.
- Ah, sim, o clubinho de amantes de vampiros. Ela deve ter te enchido com esse assunto.
- É, um pouco, mas ela é nova. Normal.
- Obrigada! E não só por isso, sei que você dá a maior força pro meu relacionamento com o Joaquim e que a ideia da serenata foi sua. Você foi incrível. Minha irmã tem sorte.
- Obrigado. Com certeza você e Joaquim foram feitos um para o outro. - Cauê riu forçado.
Janaína o abraçou.
- Amor, tô te procurando há um tempão. - Joaquim apareceu e beijou Janaína - E aí, Cauê, curtindo a companhia da Margô?
- Claro, ela é uma boa menina. Estamos curtindo muito a festa.
- Tô vendo que está mesmo. Espero que ela não tenha te deixado pra ir atrás de algum vampiro.
- Joaquim, ela é minha irmã! - Janaína o repreendeu sem conseguir segurar o riso.
- Ah, meu Deus! Eu adoro essa música! Vem, amor, vamos dançar! - Joaquim puxou Janaína pro meio da quadra - Boa sorte, Cauê!
- Valeu! - Cauê teve a voz abafada pelo som alto.
Joaquim parecia, finalmente, feliz com Janaína. Julgando pela forma como se divertiam, aparentavam um casal apaixonado. Cauê ficara ali, em pé num canto os observando por um longo tempo com um copo de refrigerante na mão. Assim que a balada eletrônica acabou, soltaram "Te Esperando" de Luan Santana. A música parecia ter sido feita pra Cauê naquele momento. Sentiu um calor nos olhos e, afim de chorar em outro lugar, se virou para a saída da quadra esbarrando em Abel que vinha disparado como uma bala, parecia estar muito revoltado:
- Seu idiota! Sujou toda a minha camisa de refrigerante! Você é cego?
- Ah, vá à merda! Olha por onde anda! - Cauê não estava pra gentilezas e foi logo saindo.
- Babaca!
***
Cauê foi para as salas de aula que estavam todas vazias. Assim qualquer barulhinho como soluços abafados eram facilmente ouvidos. Olhou em todas as salas do corredor e na última, ao abrir a porta, encontrou Felipe que se assustou:
- Ah, é você. De novo.
- Isso está ficando estranho. Já é a segunda vez que te encontro e em tristes condições. - Cauê enxugava o rosto com a manga da camisa.
- Também procurando um lugar pra chorar escondido?
Cauê riu:
- Pois é. Acho que ganhei uma companhia de brinde.
- Brinde? Então vamos brindar. Senta aí, bebe um pouco.
- Você já está bêbado. - Cauê se sentou e encheu um copo de vodka.
- Veja como as coisas são. Te conheci ontem à noite da pior maneira possível, quis que se afastasse e agora você está aqui. Aparentemente triste e machucado... Como eu. Vou te dar uma chance.
- Hum... Fico feliz em ter conseguido. Conta. Por que você está triste e machucado?
- Gosto da sua companhia. Não quero que faça nenhum juízo errado de mim.
- Você está falando do fato de você ser gay? Qual é cara, todo mundo sabe!
- Então não se importa em manchar sua reputação se alguém nos encontrar aqui sozinhos?
- Jamais! Também sou gay.
- Sério?
- Sério. Por que a surpresa? Não parece?
- Não. Você disfarça bem.
- Pois é, meu caro. Sou gay. Claro que em segredo. Gosto de outro cara. Pronto, admiti.
- Por isso está chorando?
- Sim. Porque ele é meu amigo, gosta de mim, mas eu o empurrei pros braços de uma garota.
- Burro, você, hein!
- Obrigado. Mas eu só me aproximei dele por causa disso. Ele está aqui com ela, se divertindo enquanto o Luan canta que vou ficar esperando. Até quando? Não aguento mais. Eu juro que tentei esquecer, afastar esse sentimento, mas é mais forte que eu. Dói. Muito. - Cauê desatou a chorar e Felipe o abraçou. - Mas, e você? Abri meu coração. Me deixa ver o que tem no seu.
- Tenho muitas mágoas. Também gosto de um cara, bem homofóbico por sinal. Ele veio aqui e me fez desistir de desfilar.
- Te fez desistir? Como assim? Cadê toda aquela marra de ontem?
- Ele me disse coisas horríveis. Disse que me espancaria de novo, que transformaria minha vida num inferno.
- Como assim "de novo"? Então foi ele quem te bateu?
- Ah, droga! Foi, pronto, falei! Mas é segredo.
- Claro. Vou guardar seu segredo. Mas, se ele te maltrata tanto, por que ainda insiste?
- Porque sei de tudo o que ele passou e que por trás de toda aquela pose de machão existe apenas um coração carente.
- Depois eu que sou burro. Olha, você é um gato e vai desfilar sim, senhor. Vamos pegar a sua roupa e subir na passarela. O desfile dos meninos já deve estar começando.
- Mas aí é que está o problema. Quero desfilar vestido de menina. É o que eu sou.
- É... Me pegou agora. Não sei como os outros alunos vão receber isso, mas se quiser competir com as moças é melhor ir se apressando pois o desfile delas já começou. Eu te apóio.
- Não, não vou. Estou com medo agora. Quer saber? Cansei de tudo isso. Vou pra casa.
- Não. Você tem que desfilar. Tem que mostrar a todos que defende a sua orientação sexual em qualquer lugar. Saia do armário!
- Esqueceu que o enrustido aqui é você? Todos sabem que sou gay.
- Então por que o medo?
- Não vejo motivos pra defender isso. - Felipe começou a chorar - Todos me odeiam nesta escola, certamente me linchariam. Sabe, sempre foi assim. Minha vida aqui dentro só serviu pra acabar com a minha autoestima. Pra você ter uma ideia, eu nunca fui beijado. Nem por meninas, muito menos por garotos. Sabe como isso dói? Me sinto um lixo, se alguém se aproxima de mim é só com interesse sexual, ninguém me que...
Cauê puxou Felipe e roubou-lhe um beijaço.
- Me diz que você está bêbado, por favor. - Felipe mal conseguia abrir os olhos.
- E agora? Vai desfilar ou continuar com o mi-mi-mi?
Felipe suspirou e depois gritou:
- Passarela, aqui vou eu.
Os dois riram e saíram sem perceber a existência de câmeras na sala.
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Vamos papear no Face?
Flávio Carlos
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