- Droga! - reclamou enquanto olhava fixamente para o relógio dourado retirado do bolso do paletó.
Thomas queria que aquele maldito automóvel modelo Ford T fosse mais rápido e ao mesmo tempo desejava que não tivessem tantas pessoas na rua. Seu medo era perder a viagem, pois no relógio já marcavam quinze para o meio-dia.
- Onde está a organização!? - Reclamava alto para o motorista particular de sua família que nada falava.
O veículo ia abrindo caminho pelo cais de Southampton na Inglaterra, mesmo com a multidão de pessoas que paravam para admirar o gigante que poderia ser visto flutuando mais ao longe. Era incrível como um navio de quase 47 mil toneladas fosse capaz de realizar tal proeza.
Aonde será que seus inventores estavam com a cabeça? Isso é revolucionário! - Discutiam dois senhores de meia idade que desciam de outro automóvel.
E pensando bem, era verdade.
Vendo que a quantidade de pessoas que iriam embarcar no navio ainda era grande, o motorista indica que vai estacionar para levar as bagagens até o local de embarque. O dia estava levemente nublado naquele fim de manhã de 10 de Abril de 1912. E a fome e sede já estavam dando os primeiros sinais de reclamação. O ar cheirava a uma mistura enjoativa de cigarros, charutos, fumaça vindo do navio e perfume francês que as mulheres usavam. Quanto aos passageiros, nada de pessoas de classes sociais diferentes misturadas. As mulheres de alta classe seguiam a frente com toda a popa; saltos altos, vestidos de seda impecáveis e chapéus grandes e luxuosos. O nariz levemente empinado ignoravam os olhares dos passageiros da terceira classe, que aos seus olhos, mal tinham uma roupa digna de se vestirem. Logo atrás vinham as babás que carregavam os filhos daquelas que já eram mães. Mais atrás ainda vinham os maridos fumando seus cigarros e soltando longas baforadas no ar já poluído. Quando não vinham acompanhados de suas esposas, vinham conversando com os amigos atraindo olhares dos que invejavam.
Na primeira classe embarcaram membros da aristocracia britânica, milionários, multimilionários, magnatas da indústria, atores e atrizes, ou seja, somente pessoas que tinham dinheiro ou título de grande importância capazes de comprar passagens absurdamente caras. Caso contrário, embarcavam na segunda classe. Tais como turistas, membros do clérigo, acadêmicos, enfim pessoas da classe média principalmente americana e inglesa. E por fim, mais não menos importante vinha à terceira classe que era composta predominantemente de imigrantes em busca de um novo sonho no outro lado do Atlântico. Tudo isso combinado formava um incrível multidão que iriam ou já estavam embarcados.
As malas com as coisas mais pesadas e não tão importantes de serem usadas na viagem foram postas junto de outras bagagens na parte mais profunda do navio. Depois de se despedir de Charles, o motorista da família, Thomas dá uma boa olhada para o incrível e declarado “indestrutível” navio que atravessaria o oceano.
Depois de esperar um bom tempo para embarcar, eis que chega sua vez e uma educada mulher e de forte sotaque francês, lhe dá as boas vindas:
- Seja bem vindo ao Titanic. Esperro que aprrecie a viagem. - disse indicando o caminho para os quartos.
Quando ouviu falar sobre o Titanic há alguns meses não imaginava o quão grande ele realmente era por dentro. Parecia ter entrado em um famoso museu, ou um refinado hotel, ou uma casa imperial dos antigos reis da Inglaterra. Se ali era desse jeito imagina na superior e cara primeira classe. Enquanto caminhava através do convés de chão impecável do melhor piso que parecia feito mármore, o vai e vem das pessoas eram intermináveis. No caminho para seu quarto, prestava atenção nos detalhes dos quartos com as portas abertas. Pelo que podia ver, alguns tinham beliches ou camas simples, móveis de valor alto-mediano, espelhos, mesas, cômodas e até guarda-roupas. Depois de caminhar sobre aquele tapete espesso feito de algum tecido estrangeiro, encontrou o lugar aonde poderia passar o tempo para descansar, ou simplesmente se isolar. O quarto era grande e não diferenciava muito dos outros. Tinham duas camas de cada lado do quarto e uma piar separando-os. Reparou também que tinham alguns livros, toalhas com o nome do transatlântico bordados em tom azul marinho e amarelo vivo, canetas sobre a escrivaninha e uma folha sobre a cama onde dizia todos os horários dentro do navio: Almoço, janta, lanches, bailes, comemorações, enfim era uma lista grande e detalhada dos acontecimentos que ocorreria nos próximos dias. Nas paredes pintadas de branco gelo, haviam quadros de alguns lugares da Inglaterra, França e os Estados Unidos, assim como quadros de musas, crianças e homens pintados por algum pintor até então desconhecido. Sentou-se na poltrona confortável e seus olhos bateram diretamente no relógio sobre a escrivaninha. Iam dar meio dia e meia e de longe era possível escutar o soar do apito do navio. Era sinal que estava partindo.
Mesmo que ninguém tenha ido se despedir de Thomas, ele deixa as duas malas mais importantes no quarto e vai até a onde poderia ver todos no porto que acenavam com panos brancos em meio a gritos e lágrimas. Queria que pelo menos seus amigos estivessem ali, mas infelizmente tiveram que ficar em Londres estudando.
E então o inafundável transatlântico Titanic, começa a se mover pelas águas tranquilas em direção ao mar aberto. Ver aquelas pessoas acenando era triste e ao mesmo tempo emocionante. Lá embaixo, por sorte, três últimos passageiros conseguem subir a bordo e por pouco não perderam a chance de irem além mar.
As chaminés expeliam uma grossa e tóxica camada de fumaça derivada dos carvões sendo queimados na parte mais funda do navio. Enquanto acenava para os desconhecidos, pensava em não ficar enjoado em sua primeira viagem por mar. Quanto mais se afastava do litoral mais as pessoas iam saindo do convés e voltando para o interior. Thomas continuou observando o mar e do nada sua família veio à mente. Seu pai havia morrido há três dias na Pensilvânia devido a uma tuberculose e sua mãe e irmã que foram visitá-lo uma semana antes foram surpreendidas com a morte justamente no dia que voltariam à Londres.
Thomas estava estudando quando recebeu a notícia que de alguma forma chegou rapidamente à residência de sua família, pegando todos de surpresa. Seus tios ficaram abalados e sua avó quase morre devido à notícia. Infelizmente, ninguém poderia ir à Nova York, para o enterro e a leitura do testamento do pai. Além de toda essa dor, vinha também o medo, pois nunca fora segredo que caso acontecesse algo fatal ao pai, à fábrica de tecidos da família, iria para o filho mais novo, pois o mais velho estava gerenciando uma fábrica de vinhos ao sul de Portugal. A “herança” era assumir o lugar do pai junto com seus representantes porém não sabia se estava 100% certo das atitudes que iria tomar mesmo sendo treinado desde os quinze anos para caso isso acontecesse.
- Senhor, com licença – interrompeu um dos marinheiros. - Estamos avisando que o almoço vai ser servido em dez minutos. Por favor, esteja no salão.
Thomas apenas concordou balançando positivamente a cabeça e volta ao quarto. Por mais que toda essa situação fosse triste, Thomas encarava de uma forma neutra: seu pai sempre fora um homem de caráter forte e sério. Amava sua família ao mesmo tempo em que os tratava à mão de ferro. Rígido, cuidava de todos os problemas da família e do trabalho. O relacionamento pai e filho nunca fora tranquilo, devido ás brigas e desentendimentos. E a distância devido ao trabalho sempre prejudicava.
Depois de se arrumar apropriadamente para a ocasião, Thomas se dirige até o salão aonde seria dado o almoço. Lá a segunda classe estava reunida, alguns com famílias, outros com amigos, babás tomavam conta de crianças enquanto os pais almoçavam com toda a classe. Thomas se sentou em uma mesa menor para dois, mais afastada. De lá poderia observar as pessoas e a situação que se encontrava. Carregou consigo sua agenda pessoal e sua caneta tinteiro de cor preta e ponta metálica que refletia a luz das lâmpadas. Depois de escolher e esperar quase vinte minutos para que fosse servido, deliciou-se com a refeição e resolveu dar atenção à agenda.
A agenda estava em um canto da mesa e quando o pegou, uma das crianças que corria pelo local acabou esbarrando e a agenda foi ao chão abrindo em seguida e para piorar justamente em uma página que não queria;
- Tantas páginas pra parar e para justamente nessa! - pensou enquanto recolhia o livro junto com as páginas do diário do ano passado.
Mas não tinha como escapar pois aquela época nunca iria sair de sua cabeça por mais que tentasse esquecer. Ás vezes tinha vontade que tivesse faltado ou ficado doente no que se referia ser um “Maldito Dia” de aula de francês. Porém, ás vezes se via em meio a sonhos que desejava se tornar realidade.
- “12 de Março de 1910. Hoje ele me perguntou se poderia me acompanhar na volta para casa. Eu aceitei com o coração acelerado. Por que isso?”
“Também não sei como fui capaz de esperar por quase uma hora, mas quando o vi se aproximar com aquele jeito especial de ser, tudo mudou. Tive que me conter em correr e abraçá-lo e declarar que estava sentindo algo estranho por ele. Será que ele poderia me explicar o que fazer sem saber que se trata dele mesmo. Mon amour, Kenneth”
Mesmo sendo poucas palavras, eram o suficiente para trazer boas e más memórias.
- Por onde você estará? - sussurrou antes de colocar a próxima garfada de comida na boca.
Enquanto comia, sua mente desligou do mundo ao redor e tudo o que vinha a mente era Kenneth. Quando ouvia esse nome, ou encontrava alguma anotação com a letra dele era como se ele estivesse presente ao seu lado; o coração batia forte, as mãos suavam e tremiam levemente. Não foram simples memórias, não ficaram só em palavras mas os atos que cometera ainda o perturbavam.
Mas algo em seu interior dizia que tinha algo errado. Um pressentimento de que algo iria acontecer.
Mal ele sabia o quanto estava certo e que não tinha como fugir do destino.