Cauê estava perdido numa multidão de pessoas. Nenhum rosto conhecido, nenhuma lembrança daquele lugar que mais parecia uma avenida de uma grande cidade.
Logo começou a chover e as pessoas foram desaparecendo. Encharcado e sem ter para onde ir ouviu alguém gritar o seu nome:
- Ei, Cauê! Aqui!
Era Joaquim que vinha correndo e trazendo um guarda-chuva.
Cauê sorriu. Finalmente alguém.
Joaquim foi se aproximando e quando chegou bem perto socou o rosto de Cauê.
***
- Ei, Cauê! Você está bem? - Felipe limpava os ferimentos do rosto de Cauê com um pano molhado.
- Tô, tô, sim! Foi só um sonho estranho. Cadê eles? - Cauê se levantou revoltado.
- Eles quem?
- O Abel, o Joaquim... Aqueles covardes.
- O Abel fez isso com você?
- Quando eu pegar aquele palhaço, vou estraçalhar a cara dele.
- Não, Cauê, ele é perigoso.
- Espera... Você... É claro! Foi o Abel quem te agrediu aquele dia. Como você pode gostar daquele monstro?
- Ele não é mau. É uma pessoa que sofreu muito na vida, precisa de amor.
- Amor? Acho que você é a única pessoa que sente isso por ele. Hoje mesmo eu vou na delegacia prestar queixa.
- Não, por favor, não faz isso. Por mim.
- Quem ele pensa que é? O que eu fiz? Como ele sabe que sou gay? Foi você quem contou?
- Não. O Abel mal fala comigo.
- Como você me achou aqui?
- Recebi uma dezena de mensagens anônimas e vim correndo.
- E o Joaquim... Estou com tanto ódio dele. Como ele pôde? Não acredito que depositei tanto amor num cara que me assistiu apanhar e ainda me socou. Amigos para sempre? Sinceramente, eu quero que ele morra. - duas lágrimas caíram dos olhos de Cauê - O pior é que eu o amo. Agora sei que o amo. Depois de tudo o que ele fez, meu coração ainda insiste em amá-lo. Me odeio.
- Não fica assim, eu sei como é amar alguém que nos despreza.
- E quem disse que vou ficar só me lamentando? Sou homem de ação. Aqueles dois não perdem por esperar.
***
- Ah, Joaquim, pra quem você manda tanta mensagem?
- Não é da sua conta, Abel.
- Uau! Tá nervosinho porque bateu no seu namoradinho?
- Cala essa boca, seu desgraçado! - Joaquim pegou Abel pelo colarinho.
- Ôpa, calma, tigrão. Não se esqueça que tenho um vídeo seu bem comprometedor com o cabeleireiro. Você não vai querer me machucar.
- Idiota! - Joaquim soltou-o - Só fiz isso porque você me obrigou.
- E fez bem. Pau na cara! É isso o que esses boiolas merecem.
- Põe uma coisa na sua cabeça: você não é dono de ninguém.
- Coloca outra na sua: eu não vou descansar enquanto não punir esses doentes.
- Doente é você.
- Você viu o vídeo. Viu o quão nojento foi o beijo daqueles dois. Isso não pode continuar.
Joaquim havia visto a gravação do beijo que Cauê deu em Felipe e sentiu ciúmes. Ficara imaginando como seria encostar a boca nos lábios macios de Cauê. Isso o deixava ainda mais irritado e confuso. A lembrança do seu rosto ensanguentado, o soco covarde que ele tinha lhe dado... Tudo formava um grande nó em seu peito que o fazia querer voltar à escola e pedir perdão.
- Não pode voltar atrás, Kim.
- Você acha que o Cauê vai deixar isso barato? Ele vai querer vingança.
- Não vai, não. Está tudo sob o meu controle.
***
No dia seguinte, bem cedo, Cauê saiu de casa para ir até a delegacia.
- Ai, que dó do seu rostinho de porcelana... O quê aconteceu? - Abel o confrontou na rua.
- Maldito! - Cauê sentiu o sangue ferver.
- Respira fundo, cadelinha, você está espumando. Deve ser raiva, né?
Cauê nada respondeu mantendo os olhos latejantes fixos em Abel.
- Não vai dizer nada? Tudo bem. Presumo que esteja indo à delegacia prestar queixa. Mas eu tenho uma notícia ruim. Você não vai.
- Por quê? Vai me impedir?
- Eu? Imagine! Você vai mudar de ideia quando ver o vídeo que eu acabei de te mandar.
O celular de Cauê tocou.
- Ugh! Que toque mais gay.
Cauê abriu o arquivo que Abel havia lhe mandado e logo seu sangue resfriou. Era o seu beijo com Felipe:
- Mas co... como? Como você filmou isso?
- Não fui eu. As câmeras da escola registraram tudo. Eu só tive o trabalho de copiar. E então? Não vai tentar tomar o celular da minha mão? Nem preciso avisar que tenho outras cópias.
- Por que você faz isso comigo?
- Já disse, porque acredito que pessoas como você só destroem famílias e, consequentemente, a sociedade. Já parou para pensar quantos pais deixaram sua casa por uma aventura escrota com outro homem? Quantos filhos cresceram sozinhos por terem sua vida acabada por homossexuais? Pra mim isso é sério e vou levar até o fim.
- Você é louco.
- Você ainda não viu nada. O que sua mãe vai achar desse vídeo? Ou melhor, o que o seu pastor vai achar do seu beijo em outro cara? Hum... Acho que você está encrencado.
- Não se atreva! - Cauê partiu para cima de Abel.
- Não se atreva, você! - Abel o parou - Desista, Cauê, você está nas minhas mãos.
- Isso não vai ficar assim. - Cauê tomou o caminha de volta para casa.
- Dá-lhe, Abel! Mais um gol! - Abel comemorou na rua.
***
Quando Cauê voltou para casa encontrou Felipe lhe esperando no portão:
- Cauê, por que você está chorando?
- O Abel, o Joaquim, eles viram a gente se beijando.
- Como assim? Não havia ninguém na sala além de nós dois.
- Existia uma câmera que filmou tudo. Meu Deus, o que eu faço?
- Calma, mais alguém sabe?
- Pelo que eu entendi, só os dois. Estou nas mãos dele.
- A gente tem que recuperar esse vídeo. Foi um beijo de amizade, aliás, a gente nem conversou sobre isso ainda.
- Vamos ter que deixar pra depois, Felipe, me desculpa, mas já passou da hora de eu ter uma conversa séria com o Joaquim.
- Você está preparado?
- Sim.
***
O barracão estava silencioso, só se ouvia os passos de Joaquim que separava um pedido. Cauê entrou silenciosamente e ficou a observá-lo até que sua presença foi notada:
- Cauê! - Joaquim tomou um susto.
- Cala a boca. - a expressão de Cauê era como o mármore frio - Só eu falo. Estou extremamente desapontado com você. Quero que a partir de hoje você não fale mais comigo. Quero que esqueça da minha existência porque eu já me esqueci da sua. Estou cansado de colecionar cicatrizes no rosto e no coração.
- Não sei por que você está sendo tão dramático. Nunca dei importância para amizades, por que daria para a sua, sua bicha de merda?
As palavras atingiram Cauê profundamente como estilhaços de vidro na pele. Ele saiu, mas, hesitando voltou:
- Acho que isso aqui é seu. - jogou uma bolinha de papel no rosto de Joaquim e finalmente foi em bora.
Joaquim abriu o papel e leu:
- "Cauê e Joaquim, amigos para sempre!" - Joaquim não conteve as lágrimas.
***
Cauê chorava em seu quarto no colo de Felipe:
- Você precisava ver a frieza com a qual ele me tratou, fez com que eu me sentisse um nada.
- Esquece esse menino, Cauê, ele não merece o seu sofrimento.
- Com certeza. A partir de hoje o Joaquim morreu pra mim. Definitivamente.
- É assim que se fala. Não quero te ver sofrendo como eu. Enxuga essas lágrimas.
- Estou mentindo pra mim mesmo, não vou conseguir esquecer aquele corpo, aqueles olhos, aquela boca, aquelas mãos, aquela bunda... Eu amo o Joaquim.
- Tenho algo que vai te fazer esquecê-lo rapidinho.
- O quê?
- Fecha os olhos.
- Sério?
- Anda, fecha.
Cauê fechou os olhos e Felipe o beijou.
***
Dentro do banheiro, Joaquim chorava escondido:
- Seu idiota! Viu o que você fez? Por que não adimite de uma vez que gosta dele? - murmurava para o espelho - Burro, burro, burro!
Derrepente uma gota de sangue escorreu de seu nariz:
- Ah, não. De novo, não.
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