Não sei exatamente quanto tempo se passou, mas a lua brilhava alta quando me encarei no espelho, sem conseguir dormir, e o sol já luzia em alvorada quando decidi que estava na hora de fazer alguma coisa a respeito. Dei mais uma olhada em meu próprio rosto, acariciando a barba por fazer e tomando cuidado com o nariz inchado, ainda se recuperando de uma fratura conseguida uma semana antes (brigas em seminários não são muito comuns, mas...), para, por fim, colocar minhas lentes de contato verdes que me acompanhavam desde os quinze anos, pois precisava usar óculos e nunca havia gostado da cor dos meus olhos mesmo.
Levantei com preguiça e encarei a batina pendurada na porta do guarda-roupa, praguejando por alguns minutos e fazendo promessas profanas a qualquer santo que me ouvisse: Justamente depois de me sagrar padre, minha primeira designação não era à paróquia mais próxima e necessitada, mas servir de arquivista para as histórias de algum maníaco condenado ao corredor da morte cujo último pedido foi de que alguém arquivasse sua vida em um livro, como já precisavam de um padre para fazer a extrema unção, me mandaram para cumprir as duas funções. “Que São Cristóvão me proteja... E que faça uma excelente seleção na cúria da Igreja antes da entrada no paraíso. De preferência me colocando para escolher.” Pensei.
Sair do quarto e sentir a luz do sol em meu rosto foi uma das coisas mais difíceis daquele dia, só pelo fato de pensar que eu poderia encontrar com Michaello, agora Pr. Michaello, e sorrir ao ver seu braço quebrado (por minha obra) e sentir o nariz inchado (por obra dele), agarrei a ponta do rosário que levava escondida dentro de minhas roupas, fazendo orações mentais pela repreensão do meu ódio pelo homem sem muito sucesso. Minha caminhada rápida me levou até a porta do refeitório, onde muitos alunos seminaristas tomavam seu desjejum com satisfação e geralmente em silêncio, provavelmente repassando os afazeres do dia “Bons meninos” pensei. Continuei o caminho e me senti aliviado por encontrar a Madre Superiora de um convento próximo à prisão me esperando em um carro utilitário.
. – Bom dia, irmã. – Saudei-a abaixando a cabeça para entrar no carro. – Como vai?
Ela sorriu graciosamente e o carro deu partida.
. – Bom dia, Padre Haiga – me olhou nos olhos – Vou relativamente bem, como se deve. E o senhor?
Irmã Levina não era de todo feia, na verdade, aposto que ela foi muito bonita durante a juventude, conquistando todos com seus olhos azuis como piscinas e maneiras graciosas. Mas agora era uma Madre, com o rosto de avó caracterizado por uma tempestade de mulher, que era capaz de deixar até mesmo o Santo Padre de joelhos se ele a enfurecesse. Sei disso por experiência própria.
. – Nem venha com essa de me chamar de “senhor”, Levina – disse com um tom de advertência – Nunca me chamou, para que isso agora?
Outra risadinha musical.
. – Feliz como sempre, meu menino. – encarou a janela, onde a paisagem passava rapidamente – Já sabe com quem está lidando?
Apertei o rosário outra vez.
. – Não. – encarei a paisagem – Sei que é um assassino, mas não me disseram nome nem quais foram as vítimas.
Levina grunhiu.
O resto da viagem foi um borrão, com pouquíssimas lembranças do caminho em minha mente, só um contínuo sentimento de tédio sobre o que aquilo seria mais tarde.
A chegada na prisão foi tensa, para variar, passei por inúmeras revistas por inúmeros guardas diferentes, até que fui direcionado a uma salinha minúscula onde um homem de idade relativamente avançada me encarava a medida que eu andava. Levei a mão ao rosário mais uma vez.
. – Bom dia – disse olhando-o – Sou Padre Haiga, fui enviado para colher sua história antes da... Pena.
O homem encarou-me com olhos doces, estranhamente doces, olhos de uma cor castanho-clara que parecia reluzir por si só, e abriu a boca, tocando a careca antes. Um guarda que nos olhava do canto da sala pareceu entender, e saiu.
. – Bom dia. – ele começou com uma voz suave, quase calculada, a voz que era exatamente o contrário do que você esperaria para alguém sem data marcada para morrer. – Sou Abel, para quem você foi enviado.
Encarei-o um pouco.
. – Então – disse puxando um gravador – Por onde quer começar?
. – Direto, gosto disso – sorriu.
Fiquei em silêncio, empurrando o gravador para o meio da mesa. Mais alguns minutos de silêncio.
. – Certo então. – me olhou – Do que o senhor tem medo, padre?
. – Minha opinião não é necessária aqui. – respondi seco.
Abel meneou.
. – Não é. – estendeu as mãos algemadas para cima – A não ser que eu te pergunte, como agora.
Vacilei um pouco, o homem podia ser um assassino, mas suas palavras soavam convidativas. Entrei no jogo.
. – Escuro. – encarei-o.
Meneou outra vez.
. – O senhor tem medo do escuro, ou medo do que vem dele?
Não consegui responder. Ele pareceu satisfeito.
. – Bem, minha história começa há muito tempo, sessenta e um anos atrás para ser mais exato – estendeu as palmas outra vez – Tinha treze anos naquela época.
. – Não devia começar do início? – interrompi-o – Como, por exemplo, nascimento, infância?
. – Deveria, mas essa é uma história tediosa e não creio que temos tanto tempo assim. Só vou contar os pontos importantes da minha vida, e o primeiro é esse: Meu primeiro assassinato.
“Mas não se espante, padre, não é um assassinato literal, mas o que seria o homicídio de um coração, por assim dizer.
Quando tinha treze anos, minha vida de alguma forma se tornou surpreendente, onde deixei de encarar certas brincadeiras e costumes com olhos de criança. Sempre vivi em cidades grandes, e mesmo assim, sempre tive amigos. Muitos amigos. Geralmente crianças mais velhas que eu, e sabe como é, não? Crianças mais velhas quando encontram mais novas. As brincadeiras que mães não vêem e que seria realmente muito bom se continuassem não vendo. Principalmente naquela idade onde nós, homens, começamos a nos descobrir, explorar as diferenças de nossos corpos...”
Levantei-me de supetão e encarei-o com firmeza.
. – Vim aqui para registrar sua história, não suas putarias.
. – Ora, e essas por acaso não fazem também parte da minha história? – a pergunta fora retórica. – Eu preciso falar, se quiser, é só apagar as partes que te afetam depois que acabarmos.
Não respondi.
“Bem, voltando à narrativa, naquela época meu grande vigilante era meu irmão mais velho: Caim. Ele sabia muito bem como eram essas brincadeiras, hoje suspeito que ele também brincava delas, por isso ficava sempre de olho no que eu fazia e com quem eu estava. Todos tinham medo dele por sua fama de... Explosivo, por assim dizer. Caim se estressava facilmente, e geralmente descontava o stress em quem ou quê estivesse mais próximo.
Mesmo assim, não podia me vigiar o tempo todo, e nessa época arranjei um amigo novo, um garoto chamado Tiago que havia acabado de se mudar para nossa rua. Um bom garoto, dois anos mais velho. Um belo rosto, um belo comportamento, uma pegada inesquecível... Bem, foi o dele meu primeiro assassinato, o coração que matei, e único do qual me arrependo...”
Bem, pessoas, ahn... Sou autor novo aqui na casa, e por isso peço um pouquinho de paciência com o conto, ainda estou pegando jeito. De qualquer forma, apresentações: Sou Hatter, tenho dezesseis anos e por ser um pouco adiantado no colégio, faço o curso de Composição Musical. Fui amigo de um outro autor daqui, Hunter Bakalsh, irmão do Leo.
Em todo caso, espero que gostem.
“ Que tipos de pessoa vivem por ali? – perguntou Alice.
. – Por aquele lado – disse o gato, movendo sua pata – vive um Chapeleiro; e por aquele lado – moveu a outra pata – vive uma Lebre de março. Visite qual deles você quiser, são os dois loucos.”