Abel chegou em casa por volta das oito da manhã.
- Menino, onde passou a noite? Você tomou toda aquela chuva de ontem? - a avó de Abel, dona Carmem ficara a noite inteira lhe esperando.
- Ah, vó, eu estava por aí. Não esquenta, não. Vou dormir. Atchim! - Abel começou a espirrar.
- Aí, olha, não estou falando? Você está resfriado.
- Relaxa, eu vou ficar bem.
Abel já ia se retirar quando dona Carmem lhe chamou mais uma vez:
- Abel, espera!
- O quê que foi, vó?
- Meu filho, o que está acontecendo?
- Nada, vó.
- Eu entendo que seus pais fazem falta, mas ultimamente você tem estado tão diferente. Agressivo, não liga mais pra nada, não para em casa, some com as coisas...
- O quê?
- Você pode até achar que eu não percebo, mas já senti a falta de muita coisa nessa casa. Meu relógio, algumas bijuterias, objetos...
- Você está me chamando de ladrão?
- Sim, Abel, você anda roubando aqui dentro de casa. Eu não nasci ontem.
- Vó, pára pra se ouvir! Você está chamando a mim, Abel, o seu próprio neto, de ladrão! O que é isso?
- A verdade. Você está metido com alguma coisa errada, eu sei. Por isso eu vou te dar duas opções: você me conta o que é, eu te ajudo e você toma jeito, ou você continua com essa sua vida só que fora da minha casa. E, então, o que me responde?
- Eu não tô ouvindo isso! - disse Abel saindo.
Entrando no quarto, Abel acende um cigarro e resmunga:
- É, Abel... Fudeu. Merda de vida!
***
- Lipe, você ainda está chateado comigo? - Cauê estava relutante.
Felipe nada respondeu.
- Por favor, me perdoa! Não sei o que me deu. Queria que tivesse rolado.
- Eu sei o que aconteceu, Cauê. - Felipe finalmente disse alguma coisa - Você ainda gosta do Joaquim.
- Ai... Eu gosto. Pronto, falei. Eu ainda sinto alguma coisa pelo Joaquim, mas está desaparecendo, eu juro.
- Não dá pra tentar te fazer feliz se você ainda pensa nele.
- Mas eu sempre deixei bem claro que ainda gosto dele, mas quero esquece-lo.
- Não é o que parece. - Felipe saiu deixando Cauê falando sozinho.
- Lipe! Espera! Ah, droga.
Sem deixar que percebessem, Joaquim ouvia a conversa escondido atrás de uma pilha de caixas. Gostando do que ouviu resolveu atacar:
- Oi, Cauê, tudo bem com o Felipe? - perguntou saindo do esconderijo.
- Tudo ótimo, ué, por que não estaria? - Cauê não queria que Joaquim soubesse.
- É que ele saiu de um jeito tão estranho. Parecia decepcionado.
- Ele está bem, obrigado. Deixa eu terminar o meu serviço.
- Não, espera! - Joaquim pegou o braço de Cauê de um jeito firme que o fez arrepiar - Que tal estudarmos hoje à noite?
- Acho melhor não.
- Por favor. Você prometeu que iria tentar. - Joaquim fez uma carinha de pidão à qual Cauê não resistiu.
- Tudo bem, então. Às sete eu bato na sua porta. Agora, tchau, preciso fazer umas coisas ali na frente.
- Não vejo a hora! - Joaquim disse para si mesmo quando Cauê se foi.
***
Janaína sentiu sede e resolveu ir até ao bebedouro do mercado. Chegando lá, encontrou Felipe:
- Oi, tudo bem? Você é o Felipe, não é? Ou melhor, a Lady Diva! - Janaína enchia seu copo com água.
- Que bom que se lembra. Obrigado. - Felipe respondeu com um falso sorriso no rosto - Já você é a Janaína, correto?
- Sim, eu mesma.
- A namorada do Joaquim.
- É... O que vai sair daqui do mercado.
- Ele é um ótimo funcionário. Espero poder compensá-lo.
- Com certeza vai. Já vou indo, senão o Seu Mané me esgana.
- Espera, eu já estou indo também. Eu te acompanho. Nossa, o que foi isso na sua perna?
- Um cachorro me atacou ontem na rua, você acredita?
- Sério?
- Pois é. Deve ter fugido de algum quintal.
- Machucou muito?
- Não, um moço logo me ajudou. Mas ainda dói.
- Imagino. Mas você não considera a hipótese de ter sido proposital?
- Não, não. Quem faria isso comigo? Não tenho inimigos.
- Nesse mundo em que vivemos temos que considerar tudo. As pessoas podem ser falsas.
- Espero que não seja este o caso. Não dou motivos para ninguém ter ódio de mim. Vou indo, até mais. - saiu.
- Você tem o coração do Abel, sua vadia. - sussurrou Felipe.
***
Um carro corria veloz pela estrada. Era Abel que estava indo à uma boca de fumo.
- E aí, Abel, carro novo? - disse Doidera, o responsável pelo ponto.
- Nada! É do meu tio Ruanito. Me vê um pouco de pó aí.
- Cadê o dinheiro? Não me vem com aquelas porcarias que você traz, não!
- Pendura na minha conta. Depois te pago.
- Você está maluco? Na tua conta não tem onde pendurar mais nada, não! Você tem dívida até o pescoço. Não tá dando mais pra enganar o patrão.
- Eu já te disse que vou pagar tudo, relaxa!
- Esquece, Abel! Só libero a mercadoria quando você quitar a sua dívida.
- Doidera, Doidera... Você não vai querer que eu entregue seu ponto pra polícia, vai?
- Se você fizer isso, vai se prejudicar também. Os caras vão atrás de você.
- Denuncia anônima, já ouviu falar? Você é peixe pequeno, vai se ferrar sozinho. Teu patrão não vai mover uma palha para te ajudar.
- Você não tem coragem.
- Parece até que não me conhece. Passa logo minha mercadoria e pendura. Vou te pagar tudo com juros e correção monetária.
- Você está cavando a própria cova. Toma aqui. É melhor se apressar. Teu tempo tá acabando.
- Valeu! E se acabar o tempo, a gente volta o relógio!
Deu a partida no carro e foi cheirar seu pó.
***
- Demorou, hein? - disse Felipe deitado na cama de Abel.
- Que liberdade toda é essa no meu quarto? Não estou gostando.
- Já vai se acostumando porque quando eu conseguir o que você quer, vai ter que me dar muito mais do que uma foto sua.
- Disse bem. Quando você conseguir! Aliás, não era pra ter sido ontem?
- Ah, nem me lembre! Estava indo bem até o Cauê estragar tudo.
- O que ele fez?
- Esquece.
- Não, eu quero saber. Conta.
- Ele me chamou de Joaquim.
Abel soltou uma gargalhada que ecoou pela casa.
- Ri, Abel! Ri mesmo. Palhaço.
- Ah, essa foi boa! Cauê subiu no meu conceito! - Abel ria cada vez mais.
- Vamos parar com a gozação? Não tem graça!
- É engraçado, sim. - Abel respirou um pouco - Mas isso não era motivo para falhar com o plano. Por que não continuou?
- Você acha que eu iria transar com um garoto enquanto ele chama por outro? Absurdo.
- Era só tapar a boca dele.
- De jeito nenhum. Aquilo cortou totalmente o clima. Eu até broxei.
Abel riu novamente:
- Como assim broxou se você ia ser a passiva?
- Claro que não, meu bem. Sou flex.
- É mais fácil imaginar o Cauê que tem mais jeito de homem te comendo do que você, tão delicado, enrabando ele.
- Pois saiba que meu dote é dos grandes.
- Ui, que medo! - Abel voltou a rir.
- Quer ver? - disse Felipe se levantando e começando a desabotoar a calça.
- Claro... - disse Abel pegando no zíper da calça de Felipe - Que não! - fechou de uma vez.
- Tudo bem. A minha hora vai chegar. Onde esteve ontem? Viajando? Até o Cauê estava te procurando.
- Ontem foi um dia de renovação de votos. Estou muito mais convicto do que quero. E quero acabar com o Cauê. Por isso você precisa realizar a sua parte do plano para eu entrar com a minha.
- Breve, meu caro! Muito em breve você terá o que quer.
- Tá, agora preciso de um favor seu.
- Mais um?
- Esse é mais urgente.
- Fala.
- Me empresta uma grana?
- O quê?
***
Seis e cinquenta da noite e Cauê caminhava rumo à casa de Joaquim. Sentia um frio na barriga tentando imaginar como seria esse encontro. Derrepente estava em sua porta e ensaiava bater quando ela se abriu:
- Bem na hora! - Joaquim surgiu lindo e perfumado.
Por um instante Cauê esqueceu o troglodita que tinha lhe feito tanto mal. Enxergou apenas Joaquim, o seu Joaquim que sorria todo feliz. Mas como era turrão, Cauê fechou a cara num semblante sério e respondeu:
- E aí?
- Vai ficar do lado de fora? Vem, entra! - Joaquim não abandonava o sorriso reluzente.
- Dá licença. - Cauê entrou.
- Uau, quantos livros, deve estar pesado! Deixa eu te ajudar.
- Não, não precisa. Eu estou bem.
- Tudo bem, então. Não fique acanhado! Hoje a casa é só nossa! Você quer...
- A gente pode começar logo? Tenho horário pra voltar. - Cauê cortou a empolgação de Joaquim.
- Ah, sim, por aqui. Vamos até ao meu quarto.
***
Janaína recebeu uma mensagem no celular de um número desconhecido.
- "JÁ OLHOU A SUA GAVETA HOJE?" - leu em voz alta - Mas o que é isso?
Caminhou até o guarda-roupa e abriu gaveta por gaveta.
Ao chegar na última soltou um grito.
Uma galinha morta e ensanguentada estava no meio das suas calcinhas.
***
- Nossa, pra quem você está mandando mensagem? - Joaquim perguntou a Cauê.
- É... É... Não te interessa! - gaguejou Cauê.
- Desculpa, só estava querendo quebrar o gelo. Você está tão quieto.
- Por onde quer começar? - Cauê não dava a mínima para Joaquim.
- Química Orgânica.
- Compostos orgânicos?
- Sim, nossa, confundo muito amina com amida!
- É fácil.
- Pra você.
- Não, é verdade. O composto que tiver oxigênio, a letra "o", é amida, o que não tiver é amina.
- Então eu posso dizer que amida tem bola, já amina não tem bola, porque as meninas não tem bolas, então vai ser fácil lembrar.
Cauê não resistiu e riu sem querer.
- Aleluia! Enfim consegui tirar um sorriso sincero do seu rosto! - Joaquim sentiu-se aliviado.
- Onde é o banheiro?
- No final do corredor.
- Já volto.
Cauê saiu do quarto ainda rindo. Logo em seguida o seu celular tocou e Joaquim atendeu.
- Alô, Cauê, é o Felipe, onde você está, amor? Me desculpe por hoje cedo, mas é que eu odeio te ouvir dizer que ainda gosta do Joaquim, que tal... - Felipe dizia do outro lado da linha.
- Surpresa! - revelou-se Joaquim.
- Jo... Joaquim? O que você está fazendo com o celular do Cauê? Cadê ele?
- O Cauê está no banheiro se preparando para a nossa noite... Nem te conto o que vamos fazer.
- Para de palhaçada! O Cauê não é disso! Chama ele logo!
- Sinto muito, mas não posso. Tchau, Lipe, o CaCá é só meu esta noite. Perdeu, otário!
- Joaquim, não se...
Joaquim desligou o celular e devolveu novamente à bolsa de Cauê que já voltava:
- Vamos fazer uns exercícios agora?
- Sim! Vou acertar tudo.
- Quero só ver.
Escreviam em silêncio até que Joaquim ergueu uma folha onde lia-se:
"ME PERDOA?"
Cauê respondeu:
- Por favor, Joaquim, não vamos voltar a isso novamente.
- Não quero continuar brigado com você. Sinto falta da sua amizade.
- Eu estou aqui, não estou?
- Mas eu quero ouvir da sua boca, me diz. Diz que me perdoa! - Joaquim se colocou de joelhos bem na frente de Cauê que estava sentado no chão e apoiado na cama.
- Temos um monte de coisa pra estudar, vamos logo? - Cauê tentava fugir.
- Lembra quando você me disse que cada um de nós tem uma estrela? Pois é, Cauê, quando te conheci eu encontrei a minha! - Joaquim tocava seu rosto.
- Você namora a Janaína!
- Não a amo. Uma palavra sua, uma palavra sua, eu acabo tudo com ela e corro para os seus braços! Diz, diz que me perdoa!
- Não, Joaquim, não é tão fácil assim. Além de tudo eu estou namorando com o Felipe agora. Sinto muito.
- Você não ama ele. Eu sei que o seu coração bate mais forte por mim. Ouvi tudo hoje cedo.
- Ah, não, que porcaria!
- Me senti o homem mais feliz do mundo.
- Eu não quero, Joaquim. Não quero mais nada com você! Nem amizade. Vou em bora! - Cauê levantou-se.
- Tem certeza disso?
- Absoluta! O que eu sinto por você não é mais tão grande como antigamente. Está cada vez menor.
- Então vou fazer crescer denovo!
Joaquim, pela segunda vez, roubou um beijo de Cauê. O apertava com muita força em seus braços para evitar que ele fugisse.
O pai de Joaquim, que havia voltado mais cedo da igreja, passou pela porta do quarto:
- Mas que merda é essa?
Os dois pararam na hora.