Capitulo um: Novo amigo.
NICOLAS
Encontrava-me sentado no chão da sala de meu apartamento naquela noite se sexta-feira. Comia a pipoca freneticamente entre as cenas finais do Halloween o inicio.
– Esse filme já esta me irritando – Yuri disse indignado sem desviar os olhos da tela – Como é que ele achou a irmã, porra?
– Sei lá, pô – respondi querendo fazer com que ele calasse a boca.
Mais alguns minutos se passaram e Yuri foi ficando cada vez mais inquieto. Eu não teria notado, se ele não estivesse com a cabeça em meu colo como fazia quando assistíamos televisão.
Yuri era meu melhor amigo desde que eu me mudei para o condomínio com minha família quando tinha oito anos. Naquela época, eu não falava com ninguém além de meus pais e mesmo com eles eu quase não falava nada. Havia acontecido algo em nossa família, algo que meus pais e eu fingíamos nunca ter acontecido. Esse foi o motivo de termos saído de Santa Catarina e virmos para o Rio de Janeiro reconstruir nossas vidas. Meus pais queriam resgatar a criança faladora e brincalhona que eu era, mas ela nunca voltou.
Nas primeiras semanas naquela nova cidade, eu nem saia do apartamento além de ir para a escola. Sentia medo que o aconteceu pudesse se repetir. Por insistência dos meus pais, passei a frequentar o play do condomínio, mas nunca brincava com as outras crianças, ficava isolado em um canto brincando com meus bonecos. E eu não era o único. Outro menino fazia o mesmo do outro lado, mas ao contrario de mim, as outras crianças notavam a presença dele e o cutucavam, o empurravam, puxavam seu cabelo cacheado e tomavam seus bonecos fazendo o pobre menino chorar. Ficava com pena dele, mas nunca tive coragem para defende-lo dos outros meninos. Ouvia suas risadas de escarnio enquanto ele chorava até que sua mãe fosse em seu socorro e brigasse com as outras crianças. Por mais que isso as afastasse naquele dia, no dia seguinte só fazia as crianças implicassem com ele novamente e de forma mais grosseira. Uma vez, eu o vi apanhar de um menino enquanto era segurado por outros dois. As outras crianças riam em apoio a barbaridade enquanto os pais – que até aquele momentos pareciam não ver o que acontecia – separaram as crianças. Foi horrível ver como ele chorava.
Já fazia quase três meses que eu morava naquele lugar, quando minha mãe veio até mim e disse que iriamos a casa de uma amiga dela no prédio. Eu não queria ir, pois ainda sentia medo das outras pessoas, mas ela me obrigou. Disse que eu precisava perder esse medo e que o que aconteceu nunca mais iria se repetir. Lembro que naquela tarde, ela me levou até o prédio em frente ao nosso, porém ainda no mesmo condomínio e tocou a campainha do 720. A porta foi aberta e lá estava ele, aquele menino que havia apanhado no play do condomínio. Seu lábio ainda ferido pela surra, os olhos tristes e temerosos. Seus olhos castanhos me fitaram por um longo tempo sem saber o que esperar de mim.
YURI
Olhava para Nicolas sem que ele percebesse, estava distraído com o filme. Seus olhos verdes fixos na tela de uma forma hipnotizada. Seu cabelo ruivo caia por cima de seus olhos os escondiam um pouco. Sua pele branca exalava seu aroma doce e naturalmente perfumada. Aroma que eu poderia sentir pelo resto de minha vida.
Eu o amava, sabia disso. O amava de uma forma que nunca havia amado ninguém. O desejava de uma forma quase que doentia. Queria sentir seus lábios rosarem os meus. Sentir suas mãos deslizar em minhas costas enquanto eu emaranhava meus dedos por aqueles cabelos cor de cobre. Sentir o calor de seu corpo nu junto do meu.
Algo impossível, eu sabia. Nicolas nunca me amaria de outra forma que não fosse como amigo, um irmão.
O conhecia desde os nove anos de idade na época em que mais precisei de um amigo. Eu era uma criança triste com quem as outras tiravam sarro por ser diferente. Nunca fui como os outros meninos que gostavam de jogar bola, video game ou brincar de luta. Preferia brincar com as meninas de casinha e assistir com elas os filmes das princesas da Disney. E isso fez com que eu virasse a chacota do condomínio. Chamavam-me de “bichinha”, “viadinho”, “boiola” entre outros apelidos. Sempre que eu chegava, eles riam e ficavam me mandando beijinhos enquanto gritavam: “Olha a princesa”. Não sei quantas vezes eu chorei por isso. Muitos dos que moravam no condomínio, estudavam na mesma escola que eu, o que fez com que nem lá eu tivesse sossego. Era o dia inteiro sendo chamado de “viadinho”.
As meninas também pararam de falar comigo para não serem zoadas também o que me deixou sozinho. Se antes eu chorava escondido no meu quarto, agora eu não conseguia mais segurar e chorava na frente deles. E isso era um prato cheio para que eles gritassem em alto e bom som “Olha a bichinha Chorando!”. Os professores não conseguiam controlar a situação obrigando meus pais, não aguentavam mais me ver sofrer, a me mudaram de escola, mas eu ainda era chamado de bicha em casa.
Com o tempo os meninos começaram a implicar comigo de forma mais severa, me empurravam, puxavam meu cabelo e tomavam meus brinquedos no play do condomínio. Minha mãe sempre me defendia, pois não aguentava ver elas implicando comigo. Mas sua defesa só piorava tudo.
Havia um menino no play que não me zoava. Era o único. Às vezes eu o pegava me olhando e ele desviava o olhar. Brincava sozinho no canto e ao contrario de mim os outros o ignoravam. Era como se não o vissem ali quietinho na dele brincado sozinho.
Vi minha mãe conversando com uma mulher – que naquela altura já sabia ser a mãe do menino. Elas conversavam todos os dias no play enquanto eu e ele brincávamos sozinhos, cada um em seu canto.
– E ai viadinho? – Gabriel disse vindo ao meu lado – Vai dar o cu hoje?
Os outros dois meninos ao seu lado – Lucas e Matheus – começaram a rir.
– Me deixa em paz – pedi pela milésima vez – Por favor.
– Me deixa em paz, por favor – Ele repetiu imitando a voz de um gay – A gente nunca vai te deixar em paz.
Lucas e Matheus me seguraram pelos braços enquanto Gabriel começou a me dar socos na barriga. As crianças em volta riam de mim enquanto eu gritava e chorava enquanto levava mais e mais socos por todo o corpo. Vi a mãe de menino pega-lo no colo e o levar embora enquanto os adultos presentes seguravam Gabriel, Lucas e Matheus e minha mãe me pegava no colo gritando.
– SEUS FILHOS DA PUTA! – estava claramente transtornada – OLHA SÓ O QUE DEIXARAM SEUS FILHOS DE MERDA FAZEREM! – Ninguém respondia – SÃO UNS FILHOS DA PUTA! ISSO QUE VOCÊS SÃO!
– Calma amor – meu pai pôs a mão em seu ombro tentando acalma-la.
– CALMA AMOR, UM CARALHO! – ela berrava – NÃO ENCOSTA EM MIM PEDRO!
Depois disso eu fechei os olhos e dormi. Acordei algumas horas depois no hospital. Meu corpo estava todo dolorido e ouvia um choro abafado vindo do meu lado. Virei minha cabeça e ali estava minha mãe chorando com o rosto oculto no peito de meu pai. Foi horrível vê-la sofrendo por mim desse jeito. Minha mãe, a mulher que eu mais amo no mundo sofria de uma maneira que eu nunca imaginei ser possível. Era de cortar o coração.
– Não chora mãe – falei com a voz rouca – Nem dói mais – Menti para acalma-la.
Ela levantou a cabeça e ao ver que eu estava acordado, veio até a cama do hospital e me abraçou. Gemi de dor e ela só chorou mais.
– A meu filhinho – ela beijou minha cabeça – Meu filhinho lindo! Vai ficar tudo bem. Eu prometo.
Passei a noite no hospital em observação e recebi alta na manhã seguinte. Naquela tarde, os pais dos três meninos que me bateram, vieram conversar com minha mãe e pedi-la para não denunciar o caso a policia e que eles estavam de mudança. Minha mãe aceitou e um mês depois nenhuma das três famílias estavam mais morando na cidade.
Não ia mais no play do prédio e por esse motivo não via mais o menino. Nas raras vezes que saia de casa, as outras crianças fingiam que não me viam, provavelmente por orientação de seus pais e de certa forma isso havia sido bom, porém eu me sentia sozinho.
Minha mãe ia sempre à casa da Dona Ana – mãe do menino que mais tarde descobrir se chamar Nicolas – e ela sempre vinha em minha casa. Ela era uma mulher educada e gentil e parecia gostar muito de mim. Ela e minha mãe se tornaram grandes amigas rapidamente.
– Eu combinei da Ana trazer Nicolas aqui amanhã pra brincar com você – minha mãe soltou no jantar.
Larguei o garfo de macarrão no prato e olhei para seus olhos com medo.
– Vai ser bom para vocês dois – ela espetou a almondega do prato com o garfo – Ele também não tem ninguém pra brincar assim como você.
– E se ele quiser me bater? – Perguntei ainda inseguro – Eu não quero apanhar de novo.
Meu pai olhou para minha mãe esperando por uma resposta. Assim como eu, ele também estava preocupado com essa possibilidade.
– Nicolas não é como os outros garotos – Minha mãe respondeu indiferente – Ele é tranquilo, carinhoso...
– Ele é igual ao Yuri? – Meu pai a interrompeu.
Na época não entendi o que ele quis dizer com: “Ele é igual ao Yuri”. Hoje sei que meu pais já sabiam sobre mim naquela época. Minha mãe me aceitou de imediato, mas meu pai ainda não tinha conseguido. Ele sentia tristeza por não ter o filho que havia idealizado quando soube que seria pai. O filho que assistiria ao futebol com ele no domingo à tarde. O filho que pediria conselhos sobre garotas. O filho que um dia chegaria para ele e diria: “Pai, o senhor vai se avô”. Sei que é piegas, mas meu pai era assim. Sonhava com a família perfeita assim como todos sonham e ao ver os planos mudados... Foi difícil para ele no inicio.
– Talvez... Eu não sei – Minha mãe respondeu ofendida – E se for, qual o problema?
– Nenhum... É só que... – Meu pai não terminou a frase, se levantou e foi para o quarto sem terminar o jantar.
Na manhã seguinte, eu estava animado e ao mesmo tempo assustado. Será que ele vai gostar de mim? Perguntava-me incessantemente. Não queria ter de passar por toda aquela humilhação novamente. Se chamado de bichinha e apanhar daqueles que um dia você pensou que eram seus amigos, era doloroso demais. Mais doloroso do que apanhar de um desconhecido. Será que Nicolas era mais um que o magoaria ou era realmente diferente dos outros como minha mãe disse? Será que ele era igual a mim? E o que isso significava?
A campainha tocou aquela tarde e eu corri para atender a porta. Estava animado para vê-lo. Queria conhecer aquele menino que eu observei varias vezes no play enquanto ele brincava sozinho. Olhei seus olhos verdes olhando para mim e em seguida desviar o olhar. Queria ouvir o som de sua voz. Mas e se para ouvir sua voz teria de ouvi-lo me xingar? Se para olhar em seus olhos teria de ver a desaprovação neles? Se para conhece-lo, teria de ser da pior maneira possível? Com discriminação.
A insegurança era tamanha, que minha mão tremeu enquanto eu abria a porta e ali estava ele. Seus olhos verdes vieram de encontro aos meus castanhos. Não era desaprovação que eu via e sim medo. Medo de mim. De mim! O menino que ele viu apanhando sem reagir. O menino que ele viu ser humilhado durante tanto tempo. Como ele poderia sentir medo de mim?
– Oi – murmurei com minha voz falhando – Podem entrar.
E dei-lhes espaço para faze-lo. Nicolas acompanhou a mãe com cautela, quase escondendo-se atrás dela. Olhava tudo em volta procurando por algo que pudesse machuca-lo.
– Oi meu anjo, como está? – Dona Ana me cumprimentou passando a mão por meus cabelos cachados e repousando sua palma gentilmente sobre as maças do meu rosto – Esse é o Nicolas – Ela me apresentou o filho.
Nicolas me olhou apavorado e percebi que ele olhava para minha boca onde no centro do lábio inferior ainda exibia um ferimento. Fiquei constrangido por um momento, mas tentei desviar minha atenção para outra coisa.
– Oi Nicolas – Estendi a mão para apertar a dele em um gesto amigável.
Para minha surpresa e susto, ele gemeu de espanto e agarrou a saia da mãe com força como uma criança de três anos. Seus olhos exibiam o pânico.
Ana claramente se sentiu envergonhada pela atitude do filho e deu um sorriso amarelo enquanto soltava a pequena e forte mão do filho de sua saia.
– Ele é um pouco tímido – ela justificou – Não seja mal educado Nicolas, cumprimente Yuri.
Nicolas estendeu a mão tremula para mim e eu a peguei em duvida. Ele não apertou forte dando a entender que queria acabar logo com isso.
– Ana! – Minha mãe chegou a sala naquele momento e Nicolas aproveitou a oportunidade para puxar sua mão para si novamente.
– Olá Marta – Ana cumprimentou minha mãe com beijos nas bochechas – Vem falar com a Dona Marta, Nicolas.
Nicolas deu um abraço em minha mãe enquanto ela sorria. Isso me deixou péssimo. Ele não tinha gostado de mim, eu tinha certeza. O modo relutante como ele apertou a minha mão contrastava de forma escandalosa a maneira como ele abraçava minha mãe.
– Por que vocês não vão brincar no quarto? – minha mãe sugeriu não para mim, mas para Nicolas no momento em que ela o soltou.
Nicolas olhou para mim e não disse nada. Menino esquisito. Pensei.
– Ele quer que você o leve até lá – Dona Ana disse a mim – Se não se incomodar.
Assenti uma vez e segurei a mão de Nicolas o puxando em direção ao quarto só para ver sua reação. Seus olhos mostraram novamente o pânico que sentia com aquilo. Claramente ele não gostava que eu o tocasse e isso me deixava triste. Ele nem me conhecia e já não gostava de mim.
Comecei a mostrar meus brinquedos para ele que olhava para todos com cautela sem dizer uma palavra de aprovação ou desaprovação. Só ficava ali na cama sentado enquanto eu os mostrava a ele. Eu os oferecia a ele em uma atitude de amizade, mas ele sacudia a cabeça negativamente para todos. Quando mostrei a ele uma miniatura de um jato da força aérea, ele estendeu a mão para pega-lo e eu o entreguei para ele. Ele sorriu e começou a brincar com o avião no ar simulando seu voo. Peguei uma outra miniatura de jato que eu tinha.
– Posso brincar com você? – perguntei a ele esperando finalmente ouvir sua voz.
Para minha decepção ele não disse nada, apenas sacudiu a cabeça positivamente.
Passei a perseguir o jato dele com o meu enquanto fazia barulhos de tiro e ele fugia com o dele sorrindo. Eu sorri também, estávamos brincando felizes. Naquele momento eu não me lembrava de nada além de que eu era uma criança brincando com outra.
Corríamos por meu quarto enquanto simulávamos uma perseguição aérea quando eu tropecei no tapete e cai no chão. Nicolas olhou para mim preocupado e eu olhei sem graça para ele. Logo ambos caímos na gargalhada. O som da sua risada era um deleite para os meus ouvidos. Inebriante como a mais poderosa droga e linda como a mais bela canção. Aquela risada que me fez esquecer quem eu era. Que só me fazia saber de uma coisa... Eu gostava dele.
A brincadeira continuou por toda a tarde e no final da noite Dona Ana o chamou para ir para casa. Ele abraçou minha mãe da mesma forma que ele tinha feito mais cedo e para a minha surpresa ele fez o mesmo comigo. Retribui seu abraço desajeitado esperando ouvi-lo dizer algo, mas isso nunca aconteceu. Ele se afastou de mim e foi de encontro a mãe. Dona Ana sorriu para mim e me deu um beijo na cabeça.
– Vamos combinar outro dia para vocês brincarem de novo – Ela me disse.
Assenti feliz em saber que nos encontraríamos novamente. Acenei para Nicolas que retribuiu meu acendo. Em seus olhos, eu não via mais medo e sim felicidade e conforto. Ele havia gostado de mim e isso me trazia uma felicidade tremenda. Meu primeiro amigo em muito tempo.
Meu pai chegou do trabalho pouco tempo antes do jantar e perguntou como foi meu dia.
– Foi bom – Ótimo, Fantástico, Maravilhoso. Qualquer palavra expressaria melhor – Dona Ana trouxe Nicolas aqui.
– E como foi com ele? – Ele perguntou olhando para minha mãe que fingia não estar ouvindo.
– Foi bem – respondi – Mamãe tem razão, ele não é como os outros. É melhor.
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E ai, continuo a história ou não? O que acharam desse primeiro capitulo?