Capitulo dois: Pesadelo.
YURI
– Vou dormir meninos – Dona Ana nos avisou pouco antes do filme acabar.
– Boa noite mãe – Nicolas disse sem desviar a atenção do filme.
– Boa noite Tia – desejei sorrindo para ela.
Dona Ana olhou para a televisão bem na hora em que Michael Myers arrasta a irmã para dentro do porão da antiga casa dele.
– Que filme é esse? – perguntou curiosa.
– Halloween o Inicio – respondi baixinho para não atrapalhar Nicolas.
– E é bom? – Perguntou ainda olhando da tela para mim.
Sacudi a cabeça negativamente.
– Horrível – ambos demos risadas.
Nicolas me deu um tapa na cabeça para que eu calasse a boca, mas isso só me fez rir mais.
– Boa noite meninos – Ana desejou novamente para nós.
Caminhou até o seu quarto ainda rindo, porém mais contida que antes.
Ficamos ali os últimos vinte minutos do filme. Nicolas em silêncio enquanto eu o olhava fixamente. Cada curva de seu rosto chamava a minha atenção. Sua pele branca estava azulada pela luz da televisão fazendo sombras dançarem em seu rosto como em uma apresentação bem coreografada. Era lindo. Olhar para ele me fazia sentir sereno, tranquilo. Um calor se espalhava por meu corpo fazendo meu coração acelerar. Minha nuca em sua perna ardia de desejo. Desejo que só aumentou no momento em que ele mordeu seu lábio inferior pela tensão.
Levantei minha cabeça de seu colo e olhei para ele quando os créditos do filme começaram a subir na tela. Olhei em seus olhos verdes e ele olhou de volta para mim sem entender.
– O que foi? – perguntou tombando a cabeça ligeiramente para o lado direito – Tá com medo do filme é?
– Desse filme idiota? – desdenhei – Nunca vi um filme tão ruim como esse.
– Ah para! O filme foi maneiro – ele discordou de mim.
Deitei novamente em seu colo e comecei a rir o que o deixou irritado. Ele me olhava carrancudo.
– Você tem um péssimo gosto para filmes Nick – disse ainda rindo.
– Há, há, há – Mas fui eu quem te apresentou ao A.I. – ele disse triunfante.
Ele se referia ao A.I. – inteligência artificial. Era um filme que contava a historia de um robô chamado David que tinha foi morar com uma família para tomar o lugar do filho do casal que estava muito doente e acabou que o menino voltou e o robô vai em busca da fada azul da historia do Pinóquio – a qual ele acha ser real – para transforma-lo em um menino de verdade e poder se amado por Monica.
Um filme triste do começo ao fim e um final que me fez chorar igual a um bebê. Era o meu filme preferido e fora ele quem me apresentou. Lindo, comovente e com ótimos atores e uma direção incrível (Steven Spielberg).
A porta do apartamento tinha sido aberta naquela hora e Seu Ivan entrou em casa. Levantei-me rapidamente do colo de Nicolas, pois Ivan ele não gostava que eu fizesse isso, mas pude ver que ele percebeu.
– Oi meninos – ele nos cumprimentou e olhou para a sala. O tapete estava coberto de pipocas, haviam pratos com farelos de bolo de chocolate no chão perto de dois copos sujos de refrigerante – Podem os dois levantarem desse chão e limparem tudo.
Sabia que ele reclamaria como sempre fazia. Sempre que eu estava sozinho com Nicolas, ele arrumava algo para reclamar. Sabia que ele não gostava de mim. Nunca gostou. Achava que eu era má influencia para seu filho desde a época em que ele não falava com ninguém. Nunca se importou com o fato de que por minha causa, ele voltou a falar com as pessoas além dos pais. Nicolas havia sofrido algo na infância. Algo que eu não sabia o que era e que era algo muito sigiloso naquela casa.
– Me desculpe – pedi ao Seu Ivan e comecei a arrumar as coisas na mesma hora.
– Já está um pouco tarde não acha meninos – sugeriu que eu fosse embora como sempre – Acho que é melhor você ir para casa Yuri.
– Ele vai dormir aqui hoje – Nicolas disse ao pai com a voz branda.
Ivan olhou do filho e depois para mim. Sabia que ele não me queria ali aquela noite como nunca me queria perto do filho dele. Tinha a impressão de que era pelo que houve em meu passado. Na época em que fui chamado de viadinho e levei uma surra por isso. Ele tinha medo de que eu fizesse o único filho dele ser gay assim como eu.
– Tudo bem então – disse de má vontade. Caminhou vagarosamente até o quarto e fechou a porta um pouco forte demais.
Olhei para Nicolas que me olhava triste como se me pedisse desculpas por aquilo. Catamos cada uma das pipocas do chão e as colocamos na tigela e depois levamos a louça até a pia. O ajudei a lava-la e guarda-la. Depois fomos para seu quarto. Ele puxou a cama auxiliar embaixo da dele, me deu dois travesseiros e um cobertor e deitamos cada um em uma cama.
– Seu pai acha que sou gay – disse a ele em meio a escuridão.
Nicolas não sabe que sou gay. Nunca contei para ele ou para ninguém além de meus pais. Tinha medo da reação dos outros. Mesmo que meus pais tivessem me aceitado de forma quase que natural, sabia que tinha sido assim por serem meus pais.
– Eu sei – ele respondeu sem nenhuma emoção na voz – Ele sempre achou isso igual a todo mundo.
– E se eu fosse? Qual seria o problema? – joguei verde.
Nicolas não respondeu de imediato. Um silêncio desconfortável tomou conta do recinto enquanto ele formulava a resposta que eu já sabia qual seria.
– Todo – murmurou – Você seria diferente para mim e para todos. Não conseguiria ser seu amigo. Gays não imorais, e ruins. Deus os joga no inferno por um único motivo. É errado sentir atração pelo mesmo sexo. Eu os odeio.
Ele tinha uma repulsa pelos gays que era quase pessoal. Compartilhava da opinião de muitas pessoas. Pessoas ignorantes que não aceitavam nada que se desviasse do que a sociedade considerava certo. Ele era ignorante, eu sabia. Tinha uma opinião ultrapassada que me trazia sofrimento. Eu o amava e não conseguia ficar longe dele por isso. Se qualquer outro me dissesse abertamente que odiava o que eu era, eu me afastaria dele. Mas não podia me afastar de Nicolas. Não conseguia. Meu corpo dependia dele para continuar vivo. Minha mente necessitava de sua presença para continuar sã. Minh alma necessitava dele para não sucumbir à depressão.
– Mas que bom que você não é – ele acrescentou como se tentasse convencer a si próprio disso – Boa noite.
– É... Que bom – disse – Boa noite.
NICOLAS
Não conseguia dormir naquela noite. Ficava me virando em minha cama procurando pelo sono sem encontra-lo. Algo me incomodava e eu não sabia o que era. Sentia meu corpo ser atraído para onde Yuri estava como se fossemos dois imãs de cargas opostas. Abri os olhos e olhei para ele na cama auxiliar. Dormia virado para mim. A expressão tão serena que era difícil acreditar que ele fosse real. A pele macia sem sinal de qualquer imperfeição. Lisa como a de um bebê. Seus lábios se mexiam conforme ele respirava pela boca. Respirava suavemente. Ele era lindo com aqueles cabelos cacheados em meus travesseiros.
Queria toca-lo, mas não podia. Era errado. Eu não sentia nada por ele além de amizade. O amava como um irmão ou será que como... Não! O amava como irmão e nada mais. Ele era meu irmão. Meu irmão adormecido perfeito. Lindo como a mais bela flor. Uma flor que implorava ao jardineiro para ser tocada, acariciada.
Estendi a mão e toquei seu ombro contrariando toda a minha repulsa. Por mais que eu achasse errado, aquilo não me parecia nada além de certo, verdadeiro, gentil, amoroso. Eu o queria por perto. Queria junto de mim. Tocar seu ombro não era o suficiente. Queria abraça-lo. Queria beija-lo...
– Não – quase gritei e puxei meu braço para mim novamente e cobri minha boca com a mão que o tocou.
– O que foi, Nick? – Yuri levantou lentamente.
– Nada – respondi tirando minha mão da boca – Não foi nada.
Seus olhos sonolentos me olharam com desconfiança e depois com compreensão. Será que ele sabia o que eu tinha feito? Que o toquei enquanto dormia. Que por um momento eu o desejei mais que um amigo? Ele não poderia saber se meu erro. Ninguém poderia.
– Voltou a ter pesadelos? – ele bocejou e sentou na cama – Foi isso?
Assenti. Não podia admitir que tinha gritado por não conseguir controlar meus pensamentos. Pensamentos impuros.
– Não precisa ficar com medo – ele se levantou e sentou-se ao meu lado – Lembra quando éramos crianças e você tinha pesadelos quando dormia lá em casa?
– Lembro – respondi.
– E lembra o que eu dizia? – indagou sorrindo e me envolvendo em seus ombros.
Como eu poderia esquecer. Aquelas palavras sempre estariam junto comigo não importa o que acontecesse.
– Nicolas pode dormir na minha casa hoje? – Dona Marta perguntou para minha mãe no supermercado aquela tarde – Pode ser bom para os meninos.
Entreguei a minha mãe uma caixa de Sucrilhos e ela colocou no carrinho de compras me olhando preocupada. Eu ainda falava pouco naquela época e tinha medo do pai de Yuri, Pedro. Ele me tratava bem e parecia entender a minha necessidade de silêncio melhor até que meu pai que vivia querendo que eu falasse e brigava comigo quando eu não o fazia.
– Não sei, não Marta – minha mãe respondeu devagar – Nicolas ainda está muito fragilizado pelo que ouve como você sabe. Não sei se seria boa ideia.
– Você contou a ela? – perguntei a minha mãe com a voz rouca de susto. Como ela poderia ter feito isso? Contar algo como isso a ela. Ninguém sabia o que ouve além de meus pais. Nem mesmo meus avós souberam o motivo real de nossa mudança.
– Ela precisava saber com quem estava deixando o filho dela brincar Nicolas – Minha mãe respondeu pacientemente – Além disso, ela não vai te julgar pelo que ouve.
– Isso mesmo meu amor – Dona Marta tentou me reconfortar acariciando meu rosto – Eu sei como se sente. Não literalmente, mas eu imagino. Tudo o que sofreu e ainda sofre. Eu estou aqui para ajuda-lo e não recrimina-lo – E me deu um beijo na testa – Você quer dormir lá em casa?
Assenti para ela que sorriu esperando me ver sorrir também, mais isso não aconteceu.
No final da tarde eu estava pronto para ir para a casa de Yuri. Estava na sala com minha mãe que me dizia o que eu deveria ou não fazer.
– Sempre agradeça o que fizerem por você – ela me instruía gentilmente – Não brigue com Yuri ou o trate mal. Pelo amor de Deus tente falar com eles Nicolas. Faça um esfocinho, não por mim, mas por você mesmo.
– Eu acho isso uma péssima ideia – meu pai resmungou do outro sofá assistindo ao RJ TV.
– E por que seria uma “péssima ideia” em Ivan? – minha mãe perguntou dando pouca importância.
– Não gosto daquele menino – respondeu – Acho ele uma má influencia para Nicolas. Tudo o que ele passou com aquelas crianças o chamando de viadinho e o espancando. Sei lá. Acho que meu filho não tem que andar com viados.
– Ele não é viado! – defendi Yuri veemente – Ele é bom e é meu amigo!
– Não repita essa palavra novamente Nicolas! – minha mãe me repreendeu – E para sua informação Ivan. Marta e Pedro também tem fortes motivos para não querer que Yuri seja amigo de Nicolas e ela não se importou quando descobriu. Nenhum deles.
– Você contou a eles dois Ana? Você ficou maluca?! Expondo Nicolas desse jeito! Quem mais sabe? – ele gritava na sala de estar – A caixa do supermercado? O entregador da pizzaria? O zelador do prédio? Pra quem mais você contou Ana?
– Pode ir meu filho – minha mãe ignorou meu pai por um momento – Qualquer coisa é só ligar que eu vou te buscar.
– Tchau mãe – e a abracei – Tchau pai – ele não respondeu.
– Responde PORRA! – ele gritou para minha mãe enquanto eu pegava minha mochila e saia de casa apressado.
– Pra mais ninguém! – ela respondeu no mesmo tom de grosseria – Marta é minha amiga e ela tem o direito de saber o que aconteceu com Nicolas assim como sabemos o que ouve com Yuri!
Fechei a porta naquele momento e não pude ouvir mais a discussão de meus pais. Desci de elevador no prédio do oitavo andar até o térreo e depois fui até o prédio de Yuri logo em frente ao meu. Subi de elevador até o sétimo andar e toquei a campainha do 720. Pedro atendeu a porta o que me fez recuar um passo.
– O Nicolas, tudo bem? – ele me cumprimentou em um tom gentil – Vamos entrando!
Entrei rapidamente passado por ele sem responder. Caminhei até o quarto de Yuri e entrei sem bater na porta. Ele estava desenhando em um caderno deitado na cama.
– Oi – disse tirando a mochila das costas e a coloquei no canto do quarto.
– Oi – ele respondeu sorrindo – Está de bom humor hoje, até falou comigo.
Sorri. Ele era uma das poucas pessoas com quem eu falava e mesmo assim não era sempre. Tinha vezes que eu nem o cumprimentava e passava o dia inteiro sem falar. Tinha outros, porém, em que eu tinha breve conversas com meu novo amigo. Ele gostava de me perguntar sobre Santa Catarina e sempre chegava no mesmo lugar. Por que eu vim para o Rio de Janeiro.
– Meu pai foi transferido para cá – menti para ele. Odiava fazer isso, mas simplesmente não podia dizer a verdade.
– E por que você quase não fala? – sua curiosidade era perturbadora para mim. Comecei a me sacudir para frente e para trás com fazia quando era pressionado – Não pode ser só timidez. Tem mais alguma coisa.
– Para! – Gritei tapando os ouvidos – Para de perguntar!
– O que foi? – Marta entrou no quarto num rompante e arregalou os olhos ao me ver perturbado – O que você fez com ele Yuri? – Ela me abraçou me confortando.
Yuri estava visivelmente assustado. Não sabia o que tinha feito ao certo e nem o que responder a mãe. Suas perguntas lhe pareciam completamente inocentes.
– Só perguntei por que ele veio para o Rio e por que quase não fala – ele estava preocupado – Foi só isso! Eu juro!
– Não faça muitas perguntas a ele Yuri! Nicolas passou por coisas muito ruins antes de vir para cá e ele não quer reviver isso. Não o pressione.
Yuri abaixou a cabeça se sentindo culpado. Mas como poderia se sentir culpado? Ele não sabia e era apenas uma criança. Uma criança que assim como eu tinha sofrido e que lidava com tudo de forma tão diferente. Eu fiquei transtornado com tudo e Yuri não tinha ficado nada além de triste.
– Me desculpa? – ele me pediu com a voz triste – Não fiz por mal.
Marta olhou para mim e me soltou. Sabia que eu não falaria nada e sim faria algo diferente. Abracei Yuri que retribuiu meu abraço carinhosamente. Dei-lhe um beijo na bochecha para deixar claro que não estava chateado e ele sorriu.
– Quer ir embora Nicolas? – Marta me perguntou.
Fiz que não com a cabeça e ela bagunçou meu cabelo com a mão.
– Então tudo bem – disse – Brinquem direitinho os dois e Yuri. Mais cuidado com Nicolas tudo bem?
– Pode deixar mãe – respondeu claramente mais animado.
Brincamos largas horas naquele dia. Rimos e trocamos algumas palavras e Yuri não tocou mais em nenhum assunto referente ao meu passado. Mas eu podia sentir que a curiosidade estava ali misturado ao medo de desencadear em mim outra crise de pânico como a de mais cedo.
A meia-noite, marta nos mandou dormir e obedecemos. Ela forrou uma cama improvisada para mim ao lado da de Yuri e eu deitei nela. Ela nos desejou boa noite e fomos dormir. Rapidamente cai no sono.
Estava de volta a minha antiga casa em Santa Catarina. Mas não era um dia qualquer. Era o dia em que tudo aconteceu. Eu via a mim mesmo gritando enquanto aquela coisa horrenda acontecia. Ouvia os gritos dos meus pais também misturado ao som de objetos sendo quebrados em uma luta.
Acordei chorando naquela madrugada. Havia revivido aquilo pela milésima vez. Por mais que o tempo passasse, aquelas imagens não se tornavam menos dolorosas que no dia em que foram gravadas em minha mente.
– Teve um pesadelo? – Yuri me perguntou com a voz sonolenta.
Subi na cama dele e o abracei procurando conforto. Ele retribuiu o abraço e acariciou meu cabelo.
– Não precisa ficar com medo. Nada de mal vai te acontecer. Eu não vou deixar – e deitamos na cama dele e dormimos de mãos dadas.
Nunca esqueci daquelas palavras de conforto que ele gentilmente disse para mim. Yuri. Meu anjo protetor. Meu amigo mais antigo e aquele que eu amava de uma forma tão diferente e estranha que nem eu mesmo podia entender muito bem. Mas que tinha de suprimir, pois era um amor errado. Tão errado como o que ouve comigo na infância.
___________________________________________________________________________________________________
Muito obrigado pelos comentários no primeiro capitulo e sinceramente espero que tenham gostado deste também.
Dericky, não essa história não é real. apenas fruto da minha imaginação.
Rafael Guimarães. Gostei muito do "mestre". Muito obrigado pelo elogio espero que tenha gostado dessa segunda parte.
Obrigado também aos outros que comentaram e avaliaram meu conto. Frequento o site a anos e acompanhei alguns contos até o fim ou até onde os autores pararam de publicar e comecei aqui querendo apenas contar uma historia também. Sinceramente não achei quer vocês gostariam tanto. Muito obrigado. E aguardem a continuação dessa história que está apenas no mais tenro inicio.