Ninguém me abordou na saída de casa. Andei apressado para a parada do ônibus com medo de aparecer algum amigo do Ernesto. Peguei o primeiro ônibus em direção a um terminal que passou, de lá iria para a casa da minha tia. Eu gostaria que aquela viagem tivesse demorado mais pois minha indecisão quanto ao futuro era tanta que gostaria que tempo parasse de se mover e eu ficasse ali, meses e meses parado dentro daquele coletivo sem precisar encarar as consequências de tudo que acabara de me ocorrer.
Após passar pelo terminal, peguei outro ônibus que me levou até a BR 116, era nas proximidades desta via que a minha tia Das Dores morava. Era um local ainda mais perigoso que a favela onde eu morava, mas eu conhecia a região. A casa da minha tia ficava bem dentro da comunidade, passei por muitas vielas e becos para chegar até lá. A fome me assaltou no caminho e então lembrei que não havia sequer almoçado.
Já passava de meio dia, apressei o passo para ver se pegava ainda almoço na casa da minha tia. Finalmente cheguei. A casa da tia Das Dores era de alvenaria comuns e ficava em um beco onde se agrupavam várias casas iguais. Era ainda mais simples que a casa do Ernesto, onde eu morava com a minha mãe. Tia Das Dores morava sozinha com 3 filhos homens, todos maiores de idade já. Dois deles eu sabia que viviam de fazer assaltos mas o mais velho era operário da construção civil e era quem ajudava a manter a casa.
Quando cheguei a porta estava aberta. A maioria das portas da rua ficavam abertas. Era uma forma de conter o Calor. Como andava muita gente pela rua e os ladrões eram todos conhecidos, não havia grandes riscos. Fui entrando e já ia chamar pela tia quando notei que ela estava sentada na sala assistindo um programa policial.
- Tia Das Dores.? - Chamei.
- Oi meu filho. - Cumprimentou ela. - O Ernesto ligou para cá e disse que me mata se eu te receber. Disse também que ainda vai te achar e te matar, então é melhor você ir pra outro canto.
- Tia, eu não tenho canto nenhum pra ir. Eu nem mesmo almocei hoje - Implorei.
- Vai na cozinha e almoça. Tem comida lá. Depois some daqui.
Fui na cozinha comer e resolvi conversar melhor com ela depois. A fome era grande. Havia arroz e macarrão feitos nas panelas e uma farofa de salsichas. Comi quase tudo sem sequer perguntar se alguém ainda almoçaria. Tirando o dinheiro da passagem para ir até ali, eu ainda tinha 7 reais, ainda bem que minha carteira de estudante ainda estava valendo.
Quando terminei o almoço, sentei em uma rede que havia no quintal. Ia tentar enrolar por ali, ver se minha tia me mandava embora quando anoitecesse. Ela não seria tão cruel assim. Cansado, adormeci.
Acordei com o dia escurecendo, olhei meu relógio de pulso e eram mais de cinco horas da tarde. Pisquei o olho para ver melhor e percebi que meu despertar havia sido provocado por uma sacudida na rede dada por alguém. Esse alguém estava em pé bem diante de mim segurando uma arma. Era Alan, meu primo mais novo, que tinha uns 19 anos.
- E aí, cumpadi, você não ouviu o que a minha coroa te disse não? Vaza daqui porra. - Falou me apontando a arma.
- Calma cara, eu tava só descansando.
Foi então que percebi que estavam todos preparados para não me deixarem ficar. Provavelmente minha tia me receberia, mas os filhos dela eram perigosos, se eles não me queriam ali, o melhor era ir embora.
- Acabou o descanso, branquelo, pode levantar e ir embora daqui.
Não ia discutir com uma pessoa armada, sem falar nada levantei e peguei minha mochila.
- Alan, cara. - Fiz uma última tentativa. - Deixa eu passar a noite aqui, maxo.
- Aqui não é poleiro de baitola não, seu viadinho. - Me respondeu ainda com a arma na mão. - Tu vai embora é agora mesmo, segue para a parada do ônibus senão eu te queimo agora mesmo e mando a caveira pro Ernesto.
Eu tive sorte dele não me agredir, eu já estava moído de porrada do Ernesto. Minhas costelas doíam e haviam marcas de pauladas pelo corpo. Sai para a rua novamente e ele me seguiu, foi então que percebi que iria comigo até a parada do ônibus. Fui caminhando e ele vinha atrás, escondeu a arma nas roupas.
Cheguei na parada do ônibus e fiquei pensando em que ônibus pegar, logo veio um e o Alan cola em mim e fala baixo para as pessoas que estavam lá não ouvirem.
- Sobe nesse.
- Cara, eu vou pegar outro. - Falei pra ganhar tempo.
- Sobe nesse viado ou eu te queimo aqui na frente de todo mundo.
O ônibus já estava parado quando ele ameaçou e algumas pessoas subiam. Não tinha escolha, apenas olhei de lado e vi que iria para o centro da cidade. Subi. Aquela viajem levou ainda menos tempo que a outra. Eu chorei mas ninguém me olhou. Refleti sobre como numa cidade tantos milhões de pessoas se acumulam e mesmo assim nos sentimos tão só. É uma espécie de solidão coletiva, se é que tal termo não é paradoxal demais para ser utilizado.
Desci na Praça da Estação, uma praça localizada no centro de Fortaleza onde há muito comércio, paradas de ônibus e prostituição no período noturno.
Assim que desci senti a fome bater, passada de 18:30. Pensei em pegar outro ônibus e seguir para um terminal. Podia passar a noite no terminal, seria a coisa mais segura que eu conseguiria. Ainda tinha seis reais, resolvi comprar um cachorro quente de dois para servir de jantar. Com mais um retornaria ao terminal e ficaria com três reais no bolso. Devia ter trazido meus livros para tentar vender em algum local, mas eram todos livros baratos. Pensei que talvez pudesse vender algumas das minhas roupas pela manhã.
Após terminar o cachorro quente, sentei em uma parada para esperar o ônibus. Não sei o que houve comigo, mas de repente foi como se eu tomasse total ciência da situação em que me meti. Eu estava sem teto e tinha apenas 17 anos. Não fazia a mínima ideia do que poderia fazer para sobreviver nas ruas. Aquilo provocou em mim um estado catatônico e fiquei fitando o horizonte horas e horas. Vários e vários ônibus passaram e eu não peguei nenhum. Esqueci o tempo, esqueci onde estava, só pensava no destino que me esperava e não sabia mais de onde saiam tantas lágrimas.
Quando dei por mim, havia pouquíssimo movimento na praça. As luzes haviam diminuído muito e o fluxo de coletivos também. Percebi ao longe mulheres com roupas mínimas e travestis. Eram prostitutas. Surgiu um medo no meu peito, eu sabia que aquele lugar era muito perigoso, não devia ter ficado ali até tão tarde. Aquilo aumentou meu medo e chorei mais ainda quanto apertava minha mochila contra o peito. Ficava olhando para um lado e outro nervoso com medo de que alguém se aproximasse.
Eu devia ser a única pessoa normal ali naquelas horas, todos os outros deviam estar envolvidos em prostituição ou algum negócio ilícito. Senti a barriga roncar de fome de novo, e nem havia nada aberto para comer. Mesmo se houvesse, não poderia gastar assim meus últimos trocados. Foi quando vi entrar um ônibus na praça. Seja qual fosse a parada que ele parasse eu correria para subir. Tomara que levasse para algum terminal. Estava pensando em levantar quando por trás de mim sinto uma mão longa e unhas enormes pousarem no meu ombro.
- O que esse erêzinho faz a essa hora da noite chorando na praça? - Ouvi uma voz grave de travesti perguntar.
Continua ...
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