- O quê? Peraí, Otávio, isso é sério?- eu estava perplexo- isso não pode ser verdade!
- Eu realmente sinto muito!- ele falou me abraçando com força- eu estarei ao seu lado, não importa o que aconteça!
- Obrigado, meu amor, mas eu preciso ver meu pai!- eu exclamei- ela te falou onde ele está?
- Sim, falou. Se veste, eu te levo lá agora mesmo!- ele falou- mas se prepara, deve estar cheio de gente da sua família lá. E se eles não estão nem atendendo suas ligações...
- Eles que se foram! Eu vou ver meu pai- eu disse- e se ele mor... Ai, nem quero pensar nisso! Vou me trocar!
Eu saí da cozinha, com a cabeça lutando contra pensamentos funestos, que insistiam em se alojar no fundo da minha consciência. Eu não queria pensar no pior, mas é inevitável.
Me vesti correndo e voltei pra sala, e Otávio, que estava sentado no sofá me esperando, se levantou e me acompanhou em direção ao elevador.
Fomos até o hospital o mais rápido possível, graças a Deus, Otávio é bom motorista. Assim que chegamos ao estacionamento do hospital, reconheci os carros de dois tios meus, um irmão do meu pai e um cunhado de minha mãe, que também é meu padrinho. Fiquei com medo da reação deles à minha presença, ainda mais com Otávio junto a mim. Ele notou meu olhar e segurou minha mão.
- Você quer que eu espere aqui?- ele perguntou- pra evitar brigas, quero dizer.
- Não, não! Se você não for junto, eu não vou ter coragem de enfrentá-los- eu disse- você vai junto comigo?
- Sempre. Ao céu ou ao inferno, sempre vou aonde você for- ele me disse- não se preocupa, meu bem. Eu estou aqui.
- Obrigado. Vamos.
Ele nunca deixava de me falar palavras de carinho, nunca deixava de demonstrar seu afeto com gestos. Ele soube me amar de uma maneira tão completa que até hoje não seu se consigo retribuir adequadamente.
Entramos e eu me informei na recepção sobre qual caminho seguir para chegar até meu pai. Seguindo o caminho indicado pela atendente, entramos em um corredor, pegamos um elevador e fomos até onde seria a entrada da UTI. E quando lá cheguei, minha mãe estava chorando, com as mãos no rosto, sendo consolada por minha tia Yeda, irmã mais velha dela (você deve estar se questonando sobre a lógica dos nomes dos meus pais e tios. Obviamente, eu não estou usando os nomes verdadeiros aqui, mas estou seguindo a mesma ideia. Todas as mulheres da família da minha mãe são Maria, com um segundo nome com Y. Yolanda, minha mãe, e as tias, Yeda, Yoná, Yanni, Yentl e Yara. Meu tio é José Irlei, com I mesmo. Já na família do meu pai, todos têm nomes com M. Marcos, meu pai, é o mais velho. Marly, Milena, Marilda, Marlene, Marcello, Márcio e Meire, a caçula).
Minha mãe não me viu de cara, pois estava com o rosto coberto, mas meu tio Márcio me viu, e fez logo cara feia. Ele cutucou meu tio Bernardo, marido da tia Yeda e ele também me viu.
- O que você faz aqui? Vá embora- falou tio Márcio- você causou isso!
- Causei nada! E ele é meu pai e eu tenho todo direito de estar aqui quanto vocês- eu dise- quem sabe até mais!
Nessa hora minha mãe obviamente me viu e veio correndo me abraçar.
- Meu filho, que bom que está aqui!- ela me apertou forte e me beijou no rosto- ai, eu fiquei com tanto medo de perder seu pai e você não estar aqui pra vê-lo!
- Não se preocupe, mãe! Vai dar tudo certo!- eu falei abraçando ela- Deus há de intervir. E ele é um homem forte, já passou por tanta coisa...
- É, mas descobrir que tem filho viado, é a primeira vez. Você é o culpado disso, Donovan!- falou meu tio Márcio- eu acho melhor você ir, porque sua avó vem ver seu pai e eu não quero que ela te encontre aqui, ainda mais com esse cara.
- Sugiro que chame a polícia pra me tirar daqui, então!- falei irônico. Afinal, metade da minha família era policial, né- eu vou ficar até ver meu pai, a opinião de vocês quanto a isso não me interessa.
- Você realmente mudou, hein. Nunca tinha respondido assim pra ninguém da família- falou meu tio Bernardo, segurando tia Yeda pela mão- o que fizeram com a sua cabeça, garoto?
- Ninguém fez nada comigo. Só não vou mais permitir que ninguém me ataque ou humilhe por ser quem sou- eu falei- e eu tenho o direito de estar aqui tanto quanto qualquer um. Ou até mais, porque sou filho dele. Aliás, engraçado, não estou vendo meu irmão aqui. Pensei que pelo fato dele ser hétero, fosse perfeito.
- Chega! Eu não aguento mais!- esbravejou minha mãe- estamos num hospital, pessoal. E o Donovan fica, assim como o Otávio, se ele quiser.
- Claro que fico, dona Yolanda. Eu jamais abandonaria o Donovan nesse momento- Otávio disse- a senhora precisa de alguma coisa?
- Não, meu filho. Eu só quero meu marido bem, de volta.
- Ih, já é "meu filho"?- falou tio Márcio- já tô vendo que isso não vai prestar... Eu vou buscar a minha mãe. Talvez Marcello venha comigo, também. Ainda acho melhor vocês irem embora.
Meu tio Marcello era o mais grosso e homofóbico da família. Mais do que isso, era aquele tipo de pessoa que sente prazer em fazer mal aos outros, em dizer coisas desagradáveis. Muita gente na família só o aturava em respeito à minha avó, que sempre o defendia.
- Se ele vier com gracinhas, vai de arrepender- eu disse- se for pra falar merda, do jeito que eu tô, ganho dele. E vocês também parem de agir como se fossem perfeitos! Porque eu sei muitos, mas muitos podres de muita gente na família. Eu observo, eu fico na minha. Mas eu guardo tudo aquilo que eu escuto. Que vejo. Eu não quero fazer ninguém sofrer, mas acho melhor ser gay e pecar por amar outro homem do que subir num altar e jurar diante de Deus que será fiel e depois trair. Ou enganar as pessoas ou dar uma criança pra...
- Cala a boca, moleque! Falou merda, mesmo!- disse tio Bernardo. O adúltero no caso era ele- você está falando de coisas que não sabe.
- Ah, não sei? Sabe quem foi que eu beijei há uns dois meses atrás?- eu falei. Minha mãe ficou azul- meu priminho Gehardt. Se eu soubesse que ele é meu primo, não teria acontecido. Mas essa família tem segredos, né?
- Yolanda, você contou isso pra ele?- falou tia Yeda- você ficou doida, mulher?
- Eles estavam se envolvendo, Yeda!- minha mãe falou. Otávio estava desconfortável com o assunto- você queria que eu deixasse isso acontecer?
- Quem não vai deixar isso acontecer sou eu- disse Otávio- esse episódio triste não vai se repetir, eu garanto.
- Nem eu quero, pode ter certeza- eu falei. Achei melhor encerrar o assunto- quer saber, não vou mais falar da minha vida aqui, vocês façam e pensem o que quiserem, mas só me tiram daqui a peso de bala!
Sentei, puxando minha mãe e Otávio pra ficarem um de cada lado meu. Abracei minha mãe e coloquei sua cabeça em meu ombro. Ela voltou a chorar; essa discussão serviu pra eu ver o quanto ela estava abatida, pois ela é muito geniosa, tenho certeza que se estivesse no seu normal, teria brigado feio com meus tios.
Meus tios foram embora, meu tio Márcio foi pegar minha avó e tio Bernardo e tia Yeda, que iam passar a noite com mamãe desistiram da ideia com a minha chegada. Otávio segurava minha mão livre e apoiava a cabeça na minha. Quem nos visse pensaria que éramos irmãos, já que minha mãe é loira como ele. Nessa hora, depois que minha mãe parou de chorar, perguntei como tinha sido o infarto. Ela me disse que ele já tinha sido alertado pelo médico sobre os cuidados com a alimentação, pois estava com a pressão muito alta. Naquela tarde ele já estava se sentindo mal, mas não quis ir ao médico, e depois de um tempo, acabou caindo no chão da sala. Meu irmão estava perto e o socorreu, eles chamaram uma ambulância e no hospital,o médico disse que aquela noite seria crucial. Ele estava muito mal, mas se sobrevivesse àquela noite, provavelmente ficaria bem. Então, só nos restava rezar. Perguntei também pelo meu irmão, que não estava lá, ao que ela respondeu dizendo que ele viria de manhã para substituí-la. Pelo menos isso, eu pensei.
Logo, minha avó chegou chorando pelo corredor. Meu tio Márcio vinha abraçado a ela. Minha tia Marly vinha logo atrás. Tia Marly praticamente ajudou a me criar, numa época da minha infância em que meus pais trabalhavam muito e eu ficava na casa dela. Ela sempre me considerou como um filho. Eu estava preocupado com a reação dela, pois ela é muito importante pra mim.
- Meu filho! Quanta saudade- ela chegou me abraçando- que bom que você está aqui ao lado da sua mãe!
Ela e minha mãe eram muito amigas. Minha tia era a segunda mais velha, logo depois de papai. Então elas sempre saiam juntas, pra fazer compras e tudo mais. Minha avó cumprimentou minha mãe. Meu tio sentou longe.
- Eu não ia deixar de vir, tia- eu disse- e eu não vou sair daqui enquanto eu não falar com meu pai, ver que ele está bem.
- Eu quero ver meu filho!- falou minha vó. Ela ainda não tinha falado comigo ou Otávio- onde ele está?
- Dona Rosa, o Marcos está na UTI, não pode receber visitas- disse minha mãe- o médico inclusive disse para irmos embora e esperar notícias em casa, mas eu não quero deixar ele sozinho.
- A sua bênção, vó- eu disse me aproximando- como vai a senhora?
Ela me olhou meio de esguelha, meio desconfiada, mas pegou minha mão e a beijou, me dando a bênção.
- Como Deus quer, meu filho, vamos indo- ela olhou pro Otávio- e quem é esse rapaz, seu primo?
Ela deve ter confundido porque a família da minha mãe é de pele muito clara, assim como Otávio. Mas de todos os meus primos, pasmem, só Gehardt tinha nascido loiro como meu avô e minhas tias, já que todas elas, assim como minha mãe, tinham se casado com homens morenos, pardos ou negros, como meu pai. Já repararam que as loiras são chegadas num negão, e vice-versa? Uma vez fiz até uma brincadeira com Otávio dizendo ser esse o nosso caso, que ele tinha se apaixonado pela minha metade negra.
- Não, vó. Esse é o Otávio- eu falei muito sem graça. Não queria ofender minha vó- ele é a pessoa que me acolheu e que cuida de mim hoje.
- Ah... Sei- ela tinha entendido- que bom que você está aqui para dar apoio, Otávio.
Puxa, pelo menos as mulheres da família estavam sendo compreensivas, porque os homens... Vou te contar!
Pra resumir, minha vó e meus tios ficaram lá um tempo. Tia Marly logo ficou encantada com Otávio e o abraçou, beijou, chamou de sobrinho. Minha vó manteve a distância, mas não estava agressiva. Meu tio nem nos olhava, sentado do outro lado do corredor. Depois foram embora. Nós três ficamos a noite toda no corredor do hospital e eu insisti várias vezes que Otávio fosse dormir, mas ele não arredou o pé. Ele ia ter que ir trabalhar sonado, coitado. Mas ficou lá. De manhã meu irmão chegou e cumprimentou Otávio e eu normalmente, e depois deu um sorrisinho dizendo "eu já desconfiava há muito tempo, mano". Graças aos céus, ele foi super tranquilo com tudo, pois eu sempre vi ele como sendo muito preconceituoso.
Ele ficou e nós fomos descansar um pouco, quer dizer, minha mãe e eu, pois Otávio tinha que ir pra escola trabalharCuidei da casa e de Tavinho e fiz um almoço razoável. Otávio tinha conseguido ser despensado a tarde, e iria almoçar e ficar em casa. Assim que ele chegou, eu cuidei dele como já estava virando um hábito meu, tirar sua roupa, dar-lhe um banho, massagear seus pés cansados e doídos. Enxugar seu corpo perfeito (pra mim, né), almoçar e colocar ele na cama. Mas dessa vez não rolou sexo, estávamos os dois exaustos e apenas dormimos de conchinha.
Acordamos por volta das 18h, ainda cansados. Nos vestimos e voltamos ao hospital.
Chegando lá, encontrei minha mãe e tia Yeda de novo. Ela, sem a presença do marido, foi mais receptiva comigo e meu magrelo. E veio uma boa notícia, finalmente: meu pai seria transferido para o quarto e poderia receber visitas normalmente. Ele estava fora de perigo e sua pressão estava estabilizada. Esperamos a noite toda, ele precisava descansar, de qualquer forma. Tia Yeda foi embora ainda na noite anterior, mas eu falei que não sairia dali enquanto não o visse de perto. E assim que a enfermeira disse que o médico tinha autorizado visitas, minha mãe entrou e ficou meia hora com ele, orando, falando. Mas ele estava desacordado. E depois foi minha vez. Entrei sozinho, Otávio achou que era um momento só nosso e não quis ir.
- Oi, pai- eu disse, apesar de ele estar dormindo- senti muito, muito sua falta, sabia? Eu sei que talvez eu nem devesse estar aqui, não sei se o senhor me quer aqui, mas eu vim do mesmo jeito.
Ele estava lá, imóvel. Parecia tão sereno, nem parecia que estava hospitalizado e sim dormindo em casa.
- Eu sei que não sou um filho modelo, um filho ideal- eu continuei- mas quero que saiba que em nem um momento eu fiz algo para lhe magoar de propósito. Ser quem e o que eu sou não foi escolha minha, mas eu decidir seguir meu coração e viver a minha vida plenamente. E eu me inspiro no senhor pra fazer isso. O senhor sempre foi o meu herói. De verdade. Sempre enfrentou os problemas de frente, sempre lutou muito por tudo aquilo que quis... Eu admiro isso, demais. Quantas vezes não se sacrificou em plantões extras, em trabalhos de bico, só pra garantir nosso conforto? E ainda assim, sempre foi um pai presente e amoroso. Eu ainda lembro de quando o senhor me levava de manhã cedinho pra ver os passarinhos, enquanto a névoa do amanhecer ainda nem tinha sumido. Eu ia nos seus ombros e me sentia grande e forte e forte e protegido, pois eu estava com o homem mais forte e sábio do mundo, meu pai.
Eu já estava chorando. Eu segurava a mão dele entre as minhas e as lágrimas que caiam do meu rosto às vezes caiam sobre ela.
- Eu realmente sinto muito, pai. Me desculpe de verdade por não ser o filho que você sonhou. Se eu pudesse, se tivesse escolha, eu nunca lhe causaria tanto desgosto. Se o senhor se fosse, seria culpa minha, eu sei. Não queria admitir, mas é verdade. Eu lhe amo muito e isso me destruiria por dentro. Se um dia eu reconquistar o seu amor e seu respeito, serei de fato a pessoa mais feliz do mundo. Eu te amo.
Nessa hora, senti a mão dele apertar de leve a minha. Eu tomei um susto e olhei pro rosto dele, que aos poucos foi abrindo os olhos e me fitando. Uma lágrima desceu pelo rosto dele.
- Eu também... Te amo...- ele falou com dificuldade- eu... Também te amo... Meu filho...