Este é mais um jantar típico na minha família.
- Como estão os estudos Isaac? – Meu pai pergunta.
- Normais. Tudo certo. – Respondo. Estou mais interessado na macarronada com maionese que minha mãe fez e estamos prestes a degustar que na conversa chata de sempre.
- Focado para o Enem este ano? – Ele pergunta, agora muito mais sério.
Sei que para ele os meus estudos são muito importantes. Para mim também, e quanto a isso ele não precisa se preocupar, não vou decepcioná-lo. Nunca decepcionei meus pais em relação a escola.
Respondo então:
- Focado pai. Muito focado. Não vou decepcioná-lo. – Digo com firmeza, mesmo que aquele bigode gigantesco me encare com tão pouca credibilidade (injusta).
Meu pai sempre foi assim, mesmo que jamais eu tenha tido uma nota ruim em meus boletins durante toda minha vida escolar. Acho que ele faz isso comigo por que com meu irmão, Bruno, as coisas foram muito diferentes. Bruno repetiu duas vezes o 1º ano do ensino médio, e quase abandonou a escola por causa de uma namorada, e meu pai quase teve um infarto por causa disto.
Para minha sorte, minha mãe diz em minha defesa:
- Isaac sempre foi muito responsável com seus estudos, Valdir. Não precisa ficar pressionando ele quanto a isso. – Ela sorri para mim, e eu entendo esse sorriso como “não se preocupe, filho, do seu pai cuido eu, e faça seu melhor, como sempre tem feito”. – Vamos dar graças agora por nosso jantar. – Ela termina.
- Claro que vamos. – Diz meu pai com desdém.
Minha mãe é a maior religiosa do mundo todo. Ela coleciona (não sei se pode ser chamado de “coleção”) imagens de todos os santinhos que a igreja já santificou. Meu irmão Bruno e eu, até uma certa idade, éramos obrigados a ir duas vezes por semana a missa. Quando Bruno completou dezesseis anos, ele passou a enfrenta-la e sua cota de missa caiu para apenas uma visita semanal. Com dezoito essa visita foi excomungada completamente de suas atividades, mas eu não tive a mesma sorte. Até hoje (eu estou com dezessete anos) sou obrigado a fazer as duas visitas, e eu não me sinto nem um pouco confortável nas missas, mas eu também não quero decepcioná-la. Apesar de seu “carolismo”, minha mãe sempre foi muito boa e justa comigo, então acho que vale o esforço – e bota esforço nisso – de visitar duas vezes por semana a igreja que ela tanto ama.
Meu pai também tem sua visita quinzenal a cumprir. Ao menos uma vez a cada quinze dias, minha mãe o arrasta – literalmente – até a igreja, e ele é quase tão cara de pau quanto o Homer Simpson, só falta dormir durante a missa. É engraçado isso.
Bem, depois das graças, finalmente estamos autorizados a aproveitar a deliciosa macarronada com maionese. E como sempre, durante todo o jantar, meu pai reclama de seu trabalho, de seu chefe, da vida que Bruno anda levando (morando com uma mulher mais velha e divorciada), da falta de dinheiro e tudo o mais de ruim que você possa imaginar.
Eu passo a maior parte do tempo calado. Só abro a boca para comer ou quando alguém me faz uma pergunta diretamente (que normalmente é sobre a escola e minha preparação para o Enem deste ano).
Durante o jantar, é completamente proibido – e essa é uma proibição da minha mãe, que acredita que as famílias precisam estar unidas e em paz na hora da refeição – que eu use meu celular, então prefiro mantê-lo no modo silencioso e lá no meu quarto, pois provavelmente vou receber muitas mensagens da Michelle.
E de fato recebi várias mensagens de Michelle esta noite.
“Me liga urgente!”
“Caralho, por que cê ainda não me ligou imbecil???”
“Porra, vou deflagrar a III Guerra Mundial se cê não me ligar em quinze minutos, seu otário!”
Bem, eu não quero a III Guerra Mundial, por que com a aparato bio-nuclear da Rússia e dos Estados Unidos, sei que vamos todos morrer contaminados por radiação em dois segundos, e nossas casas vão continuar firmes, fortes e de pé. (E Micha tem força de vontade suficiente para começar uma guerra).
- O que foi sua vadia? – Pergunto assim que ela atende.
- Caralho, qual seu problema, você é retardado? Hoje é o grande dia, e preciso de você aqui do meu lado, seu verme de óculos. – Michelle está um pouco irritada.
- Ah, eu não me esqueci Micha, eu só não quero ir. Eu preciso mesmo ir até ai? Você não é uma mulher forte, independente e determinada? O que eu vou poder fazer estando ai? Acho que só vou atrapalhar seu “grande momento”, se é que você acredita mesmo que vai rolar.
Ouço uma bufada do outro lado da linha. Ok, Michelle está muito irritada, e quando essa menina fica irritada, é como se ela estivesse de TPM por ela e por mais cem meninas.
- Cacete, seu bostão, eu pensava que cê fosse meu amigo, caralho! Mas pelo visto cê nem acredita no meu charme natural, né? Então pode ficar ai, batendo punheta pro seu Tommy Anders e o pauzão dele, que aliás, nunca vai te foder, cê sabe disto, né? – Agora a voz de Micha é de puro ódio.
Agora quem bufa sou eu.
- Ok, ok! Estou indo pra ai. Mas não crie expectativas, Micha. Você sabe que provavelmente ele vai pra ai acompanhado da Roberta e eles vão desentupir a boca um do outro na sua frente, e isso vai quebrar o seu revoltado coraçãozinho. – Digo com pesar.
- Own, eu te amo Isaac. Tô te esperando. Beijo no pau! – Ela diz, agora toda animada e feliz.
- Ok. Beijo na xana. – Respondo e desligo.
Michelle Ribeiro é minha melhor amiga desde a 4ª Série do Ensino Fundamental. E ela sempre foi bipolar (e claro que naquela época eu nem mesmo imaginava que existia essa palavra).
Eu estava lá, no refeitório do Colégio Pio XII (Prédio do Fundamental, que é separado do Médio), e aquela menina com uma trancinha única nos cabelos ruivos, sentou-se a minha mesa e disse:
- Eu quero seu iogurte agora. Se não me der, vou te dar um chute nas bolas, e cê vai cair e ser o cara mais zoado do colégio por que apanhou de uma menina ruiva delicada de trancinha no cabelo. – Disse a então pequena Micha.
- Ok. – Respondi. Totalmente intimidado.
- Obrigada, eu te amo sabia? Qual seu nome? – Agora ela dizia aos sorrisos, totalmente encantadora, um anjinho.
Dei de ombros. Encarei descrente aquela menina ruiva de trancinha.
- Isaac. – Respondi.
- Oi Isaac. Eu sou a Michelle. Mas pode me chamar de Micha. Meus amigos me chamam de Micha. Bem, meus amigos eu digo meus ursos de pelúcia, por que amigos de verdade, de carne e osso, eu não tenho. Bom, eu não tinha, agora tenho você. Somos os melhores amigos! Cara, como eu te amo, Isaac, obrigada por seu meu amigo e me dar seu iogurte assim de tão boa vontade, cê é um anjo Isaac!
E de repente, aquela estranha menina empolgada me deu um beijo no rosto. “Ai que nojento!” foi o que pensei naquele momento (e até hoje sinto um calafrio daquele beijo molhado no rosto, eca). Ouvi algumas risadas no refeitório. Mas eu nunca liguei para os outros, para gozações ou zoeiras.
Na verdade, eu sempre fui meio invisível no campo de guerra que é a escola. Eu não era (sou) tão estranho a ponto de ser o centro da atenção dos gozadores. E também não era bonito (e continuo não sendo) e nem descolado o bastante (isso também continuo não sendo) para ser um popular. E Micha era tão louquinha que as pessoas tinham (muitas ainda tem) medo dela, e quando se aproximavam dela, a respeitavam. E desde aquele dia, Isaac e Michelle (Micha) se tornaram os melhores amigos.
Procurei uma camisa passada no meu armário e a vesti. Calcei meu tênis preto da Olympikus e passei um gel no cabelo, para que ele ficasse arrepiado, meu cabelo é meio revoltado. Aproveitei e espirrei um perfume básico, o Kaiak que ganhei de minha avó no natal passado (eu mal o usava). Se Micha precisava de mim, então raios e trovões, eu ia até seu encontro.
Micha mantém uma web rádio na internet chamada “Garganta Profunda” (e sim, é por causa daquele famoso filme pornô que gerou o codinome do delator do esquema “Watergate”, que derrubou o presidente dos Estados Unidos, Richard Nixon).
Nesta noite, ela convidou João Paulo Gomes da Silva (o nome dele deve ser uma homenagem ao falecido Papa João Paulo II, sua mãe deve ser tão carola quanto a minha, que me batizou de Isaac por causa de um cara da Bíblia) para participar do programa dela. E quem é esse cidadão? É o cara mais popular do Colégio Pio XII (agora estamos no último ano do Médio, no outro prédio do colégio).
Não posso negar que o cara, fisicamente falando, é atraente. É bonitão. Tem olhos claros e cabelos loiros e lisos. Tem um sorriso perfeito, sem um único dente torto, preto ou esquisito. Tem um corpo atraente, não é musculoso, mas é forte. Está sempre rodeado de amigos e meninas (e dizem que ele fica com uma porção delas, das mais novas do primeiro ano até as da idade dele). Mas isso para mim é tão... Superficial?
Claro que muitos pensam que eu faço parte do grupo “Eu odeio o João Paulo”, por que enquanto ele já passou “o rodo” na maioria das meninas, os outros caras ficam só na punheta via “X-Vídeos”. (A propósito, ele é realmente é bem dotado, circula um vídeo dele por ai bêbado e batendo punheta na webcam via Twitter, e cara, o pênis dele mole é maior do que o meu duro no estágio máximo.)
Mas eu não faço parte deste grupo (ok, eu bato punheta também, principalmente pro Tommy Anders) por que não vejo a menor graça em João Paulo e também não gosto de meninas (como você já deve ter percebido). Mas a Micha, ah coitada, ela espera que um dia vá ter uma chance com ele – e ela colocou na cabeça que chegou o dia desta chance – e eu acho que ela está se iludindo, por que ele nunca vai ficar com a doidinha ruiva do Pio XII, e mesmo se ficar, seria só por uma noite, e Micha acredita que tem “o poder” de “consertar” um galinha como João Paulo Gomes da Silva (eu acho mais provável que os líderes da Al-Qaeda reúnam-se com o Obama e a Rainha da Inglaterra e tomem juntos o chá das cinco no Palácio de Buckingham).
E tem mais um problema nessa salada toda: Roberta Upranova é uma menina que está sempre correndo atrás do João Paulo. Ela é brasileira, mas é meio russa também, e a maioria dos caras babam por ela, por que ela tem um belo par de peitões e olhos azuis (que entediante).
Ninguém sabe se eles são um casal de verdade, mas todos sabemos que João Paulo já pegou a Upranova também, e que ela colada nele igual carrapato, talvez querendo ser comida de novo.
Eu queria que a Micha esquecesse esse cara e se voltasse mais para os estudos. Ela também vai prestar o Enem este ano e ela quer ser jornalista (eu pretendo ser professor, então pretendo cursar Letras).
Mas a minha doidinha bipolar é mesmo muito apaixonada por esse galinha do João Paulo, que pode ser realmente muito belo (e gostoso, eu admito que quando vi o vídeo dele, descasquei uma em homenagem), mas ele é um imbecil. O tipo de cara que acha que a vida é a popularidade (e atualmente, todos invejam sua vida). Provavelmente no futuro ele vai trabalhar num emprego comum que paga mal, seus cabelos lisos loiros vão começar a cair (ele vai ter aquelas entradas enormes na cabeça) e já não vai ter mais tanto sucesso com as mulheres, não as sóbrias pelo menos.
- Mãe, eu tô saindo. Vou na casa da Micha, volto até as onze, tá? – Grito, já na porta de entrada, quase saindo.
- Você deveria estar estudando. – Meu pai grita de volta. Minha mãe e ele estão sentados no sofá assistindo a novela da Globo.
- Valdir, hoje é sábado. – Minha mãe o repreende. – Ok, filho, mas volte mesmo até as onze, não quero ter que ouvir as rabugices do seu pai caso você se atrase.
- Não vou me atrasar. Volto até as onze, prometo. – Grito de volta. #Partiu para casa da Micha. (Postei isso no Facebook através do meu celular. Micha curtiu dois segundos após a postagem. E foi a única curtida também.)
No caminho, a pé, por que a casa da Micha não fica tão longe assim da minha, acabei me lembrando do dia em que contei para Micha que eu não me interessava por meninas e sim... Bem... Vejamos...
Costumávamos passar o recreio, isso na 7ª Série do Ensino Fundamental, no estacionamento dos professores. Procurávamos nos sentar no meio fio, escondidos atrás de um dos carros. Corria boatos que Micha e eu ficávamos lá. Que a “doidinha ruiva” ficava com um tal de “Isaías”. E então alguém perguntava: “Quem é Isaías?”, e a outra pessoa respondia: “Também não sei ao certo quem é. Mas acho que é um cara de óculos, magro e alto que está sempre com ela. Nunca viu?”, e a outra respondia de novo, “Não, nunca vi. Acho que não o conheço, nem sabia que existia um Isaías na escola” (e de fato Isaías não existia, a maioria das pessoas não me enxergam mesmo, então acham que meu nome é “Isaías” ao invés de Isaac, isso até hoje).
Enfim, continuando, Micha e eu estávamos escondidos atrás do carro de algum professor e eu então comecei a gaguejar:
- Micha, eu queria... Sabe, te contar que... – E não conseguia contar.
- Cê se engasgou com a salsicha do cachorro quente do lanche? Eu bem que digo que essa salsicha é perigosa! Meu tio Omar uma vez quase morreu engasgado com essas salsichas de lata. Por sorte, o meu outro tio, Valdinei, estava lá também e como ele é forte, deu um tapão daqueles nas costas do tio Omar e ele conseguiu se desentalar. – Micha começou a falar em salsichas, e eu a encarei incrédulo e nervoso.
- Não estou entalado sua piranha arroto de Fanta. – Digo.
- Ok, seu viado fresco, então o que aconteceu? Por que está gaguejando comigo? Não me diga que cê está apaixonado por mim e que quer namorar comigo? Own, que fofo, mas cê não faz meu tipo. Cê é muito alto, suas calças sempre estão pescando siri e seu cabelo é muito crespo. Parece que ele tem vida própria, me dá até um arrepio na espinha só de pensar em fazer um cafuné nele. Por que cê não tenta fazer um alisamento? – Oh meu Deus, agora era o meu cabelo o assunto principal. Com a Micha era sempre assim.
- Micha, dá pra você calar a matraca e me ouvir pelo amor??? – Dei uma sacodida nos ombros dela e ela esbugalhou os olhos e sorriu.
- Ok. Ok. Cê não está apaixonado por mim, ao que parece.
- Não, Micha, não estou. – Suspirei. – O que... Hã... O que você acha do Eduardo? Do Dudu, aquele que senta ao meu lado na sala?
- O que parece um viadinho? Aquele que tem uma voz de taquara rachada e o cabelo repartido tipo do Hitler? Ele é horrível. O que tem ele?
- O cabelo dele não parece com o do Hitler. – Disse em defesa de Eduardo.
- É, cê tem razão. O do Hitler era menos feio. O do Eduardo, ao contrário do seu, parece que está morto. O cabelo dele não tem vida. – Micha começou a rir. – Acho que não existe tratamento capilar para salvá-lo.
- Ai Micha, ai Micha... – Suspirei outra vez, lamentando. – Eu gosto do Eduardo, tá ok? Gosto dele, acho que ele é bonito e atraente, sabe?
Então Micha esbugalhou os olhos novamente, mas agora surpresa com o que eu estava contando. A ficha finalmente tinha caído para Micha:
- Cê gosta dele... Tipo gay? – Ela perguntou, ainda de queixo caído.
Sorri e então confirmei, balançando a cabeça:
- É, acho que eu sou... “Tipo Gay”. – Revelei então naquele dia.
- Nossa! – Micha disse e balançou a cabeça, como se estivesse atordoada.
- O que você acha? Você gosta menos de mim agora? Por que eu não escolhi, eu sei lá, eu só sinto uma coisa legal quando vejo o Dudu. Me dá vontade de ficar com ele. E eu acho que ele corresponde. De vez em quando vejo ele me dando umas olhadas durante as aulas. – Fiz uma pausa por que Micha continuou boquiaberta me encarando como se eu fosse um ser humano com penas de galinha ao invés de pele. – O que foi? Diga alguma coisa, por favor Micha, não me odeie, eu não escolhi ser assim.
Micha então jogou seus braços nas minhas costas e me apertou com as mãos, me envolveu num abraço tão forte e tão caloroso que eu senti que ela era mesmo a melhor amiga que uma pessoa podia ter.
- Eu te amo Isaac. Cê é meu melhor amigo. E se você é gay, eu não me importo com isso. Que você seja gay! – Ela falou toda empolgada.
Me desfiz do abraço de Micha e levei meu dedo indicador aos lábios e falei então:
- Ok, mas não precisa gritar. Ninguém precisa saber. Só você sabe. – Abaixei a cabeça, em sinal de tristeza.
- O que foi? Cê ficou triste por que? – Micha perguntou, já com lágrimas nos olhos, minha pobre amiga doidinha ruiva.
- Minha mãe é muito religiosa. Se ela souber que eu gosto de um outro menino, ela vai ficar decepcionada comigo. O meu irmão Bruno tem uma namorada. Uma namorada. Com “a” no final da palavra. Como eu posso chegar e dizer a ela um dia que tenho um namorado? Com “o” no final da palavra? Ela vai morrer de desgosto. E meu pai vai matar por ficar viúvo.
- Não. Ela não vai. E se ela ficar, cê tem a mim. Fugimos os dois juntos. Vamos para algum país onde todos sejam gays. Eu viro lésbica se for necessário. Mas eu não vou abandonar você nunca Isaac. – Micha me falou sorrindo, e então fui eu quem a envolveu num abraço caloroso.
- Obrigado. Eu te amo sua piranha cabeça de palito de fósforo. – Disse então. O que era (e é, e sempre será) muita verdade. Micha é a pessoa mais importante da minha vida (eu amo muito meus pais, amo até mesmo Bruno, meu irmão, mas Micha está sempre ao meu lado, desde que nos conhecemos na 4ª Série, e isso me fez lembrar que eu realmente tinha que estar lá com ela. Até por que algo me dizia que João Paulo ia entristecer o coração insano de Micha).
Quando cheguei na casa de Micha, a mãe dela abriu a porta assim que toquei a campainha. Ela sorriu e apontou para dentro da casa, e eu já entendia há muitos anos o que aquilo significava: “Entre, vá pro quarto da Micha e sinta-se em casa”. A mãe dela – que era solteira, Micha não tinha pai – raramente dizia alguma coisa para mim. Já tínhamos esse sinal silencioso, e eu respondia com um aceno de cabeça e um joia com o polegar da mão direita.
O quarto de Micha fica localizado em cima da casa. É tipo um terraço que a mãe dela usou para construir um quarto grande e independente da casa principal, com banheiro e tudo. Quando entrei, Micha estava com seus fones de ouvido e seu microfone. Além disto, uma linha de telefone estava conectada aos aparelhos dela (bem, disso eu não entendo porra nenhuma, então não me pergunte detalhes...).
Micha sorriu para mim e acenou para que eu puxasse uma cadeira e me sentasse ao seu lado. Ela estava falando ao telefone com uma menina, que estava ao vivo na web rádio de Micha, a “Garganta Profunda”.
- Então vamos ver se eu entendi direito, ah... Vera. Cê pagou uma gulosa pro seu namorado, claro, dentro das dependências do Colégio Pio XII, que cê se nega a revelar o local exato, mas eu acredito que tenha sido no banheiro do zelador, já que fica muito afastado das salas e sei que mal é frequentado. Acredite, eu já estive lá... Ah, mas não com as mesmas intenções, não mesmo. O meu problema foi um repolho passado que comi no almoço. – Eu comecei a rir, não consegui segurar. Micha então continuou:
“Mas esqueçamos minha dor de barriga. Cê pagou um boquete pro seu namorado e engoliu o leitinho azedo. E agora, que sua menstruação está atrasada, cê acha que está grávida por que engoliu a porra toda?”
- É, eu sabia que não devia ter engolido aquilo. O gosto é nojento, e agora meus pais vão me matar por que eu ainda estou no 2º ano e meu namorado é do 3º ano! – A tal “Vera” falou quase chorando.
Micha começou a rir desenfreadamente. E eu a acompanhei. Não tinha como não rir daquela bobagem. A tal “Vera” do 2º ano realmente parecia estar convicta de estar grávida por que tinha engolido porra do namorado durante um boquete.
Ainda rindo, Micha completou:
- Ok, ok, acalme-se Vera. Tem solução pra tudo! Eu acho que você deve interromper as gulosas, pode prejudicar seu feto de alguma forma. – Mais risadas.
Micha então ativou um aplicativo no computador que tocava aquelas risadinhas, tipo as que tem em séries de comédia, como “Friends” e “Two and a Half Men”.
- Estou tão constrangida. – Revelou Vera.
- Não, não, não fique Verinha. Estou aqui com um convidado, o meu melhor amigo desde que nos conhecemos. Isaac Monteiro. – Eu fiz que não com a cabeça, mas Micha me encorajou a participar. Então peguei um fone de ouvido, e me aproximei dela no microfone. – Dê um olá para meus ouvintes, Isaac.
- Olá ouvintes da Micha. – Disse, meio sem graça até.
- E a propósito, meus ouvintes são 29 pessoas neste momento. É o que diz o meu contador de acessos na página da web rádio. Obrigada seus malucos, e aqui estamos com a Vera. Vera, cê ainda tá ai queridinha?
- Estou. – Respondeu a Vera. Agora parecia chorar mesmo. – O que vou fazer, Micha? Me ajude por favor, eu não quero ficar grávida. – E a pobre Vera caiu no chororô total. Parecia uma criança que tinha tido o pirulito roubado, completamente escandalosa.
- Own tadinha, não chores Verinha. Isaac, cê que é ótimo com conselhos, o que cê poderia dizer para nossa ouvinte Vera, do 2º ano do Médio do Colégio Pio XII? Cê acha que ela realmente engravidou só por ter engolido um pouquinho do esperma do namorado mais velho? – Micha me perguntou, já voltando a rir.
Entrei no clima da gozação e falei:
- Olha, eu acho que a Vera pode estar grávida sim. Eu li uma vez que na República Dominicana, uma mulher pagou um boquete para aqueles negões bem dotados em uma praia paradisíaca e engoliu os dejetos que saíram da pica dele. Nove meses depois ela deu a luz a um bebê, mas a criança saiu pela boca, por que quando o esperma entra pela boca, o bebê também tem que sair pela boca. Foi terrível. Parece que até hoje ela não consegue falar direito e ainda precisa se alimentar através de sonda, por que a boca não funciona mais pra nada.
- Ai meu Deus! – Vera gritou aos prantos. E depois, ouvimos um sinal de ocupado. A menina havia encerrado a ligação.
Micha e eu gargalhamos ao vivo, não conseguíamos parar de rir. E o aplicativo de risadas nos acompanhava. O contador de visitantes agora marcava 44 ouvintes. Micha tentou controlar as gargalhadas e continuou:
- 44 pessoas estão conectadas a “Garganta Profunda”. E eu espero que a nossa ouvinte Vera tenha uma garganta profunda, porque seu bebê vai passar por ai daqui a nove meses. Um beijinho pra ela e pro futuro papai que a engravidou pela boca. Ah, e continue comigo, e com o Isaac também, por que daqui a pouco vamos receber o cara mais popular do colégio Pio XII! – Ela fez uma pausa e quase gritou depois:
“Isso mesmo! João Paulo, o garoto mais lindo, mais tesudo, mais bem dotado, quem é que nunca viu o vídeo da piroca dele? 24 centímetros é muita pica! Daqui a pouco ele vai estar aqui conosco, e vamos perguntar a ele o segredo para ter uma pica tão linda e tããooo grande! Agora vamos ouvir uma musiquinha para relaxar os ouvidos, até já seus lindos!”
Micha coloca uma lista de duas músicas para tocar. Bruno Mars começa a falar com a lua imediatamente, e depois, é a vez de Alicia Keys se transformar na garota que pega fogo.
- Cadê o cara? – Pergunto desconfiado a Micha.
- Ele me mandou uma mensagem no WhatsApp e disse que vai chegar um pouquinho atrasado, mas que ele está vindo pra cá! Não é o máximo? Quando terminar o programa, vou chama-lo para sair lá fora comigo, no terraço e vou beijá-lo. Se a gente for transar, vou dar pra ele lá no banheiro e cê coloca alguma música bem alta, pra minha mãe não ouvir minhas gemidas lá de baixo, hein? Preciso que cê esteja atento! – Micha diz toda empolgada, toda excitada.
- Micha... Você, tipo... Vai ter mesmo coragem de trepar com esse cara dentro do banheiro? Você não gostaria de algo mais... Romântico? Você não é apaixonada por ele? – Pergunto receoso.
- Claro que sou. Eu amo João Paulo Gomes da Silva há exatos dois anos e quatro meses! Eu sei que ele é um galinha, sei que ele já comeu todas as meninas da escola. Talvez seja ele o “pai” do “bebê” da Vera. – Micha ri, e eu também. – Mas sei também que não vamos namorar e logo vamos seguir outros caminhos e tudo o mais...
“Mas eu quero um dia olhar para o passado e me lembrar que no meu último ano, eu transei com o pirocudo mais popular da escola, e que aproveitei meus momentos de loucuras, que todos os jovens precisam ter! Não se preocupe comigo, tá? Eu vou obriga-lo a usar camisinha e não tô pretendo beber o leitinho dele não. Mas claro que eu vou engolir aquele pauzão”.
Micha sorri e coloca a mão no meu rosto:
- Obrigada por se preocupar comigo, Isaac.
Eu faço uma cara de tristeza. A Micha diz isso por que sabe que no fundo realmente João Paulo é um galinha. E que mesmo que ele venha e coma ela, ele nunca vai se relacionar seriamente com ela. Mas ela também acredita, nem que seja um pouquinho, que se ele comer ela, ele pode se apaixonar por ela e que talvez até namorem (só que ela não admite isso, mas eu a conheço o suficiente para entende-la).
20:30.
20:50.
21:15.
21:40.
22:10.
22:29.
22:44.
João Paulo não apareceu. Não respondeu nenhuma das mensagens que Micha enviou durante essas horas. E então, as 22:55, Micha terminou o programa dela (normalmente ela terminava as 22:30) e pediu desculpas a seus últimos ouvintes (14, era o que o contador de visitas dizia) por que houvera um “imprevisto” (que nós desconhecíamos) e João Paulo não pode comparecer para a entrevista.
Eu sabia que chegaria atrasado em casa. Tinha prometido estar em casa até as 23 horas, e o relógio marcava 22:57 quando Micha me abraçou e começou a chorar.
Não dissemos nada um para o outro. Apenas ficamos lá, abraçados por quase dez minutos seguidos. Eu sabia que aquilo ia acontecer. Aquele João Paulo era mesmo um filho da puta, um galinha desgraçado, que usava e abusava dos sentimentos alheios.
De alguma forma ele devia saber que Micha estava apaixonada por ele e fez isso de propósito. Com certeza ele estava com o pauzão dele de 24 centímetros entalado dentro da buceta de alguma piranha do colégio, enquanto Micha derramava lágrimas por causa daquele otário.
- Eu preciso ir Micha. – Eu falei então.
Já eram 23:07.
- Ok, eu sei. Desculpa. Sei que cê tinha que estar em casa até as 23 horas. Cê quer que eu te acompanhe? Posso explicar a seus pais que a culpa foi minha e...
A interrompi antes que completasse:
- Não, não se preocupa Micha. Meus pais vão entender. Mas se você quiser... Eu posso ficar mais um pouco.
- Não, tá tudo bem. Eu tô legal. O show não pode parar. Acho que vou assistir algum filme na Netflix e depois dormir. Foi um dia cansativo. Mas o programa foi ótimo, né? Cheguei a ter 44 ouvintes, foi o recorde! Imagina se o Jo... – Pausa e cara de tristeza. – Ah, esquece. Ele é um babaca, não é? Sempre foi e sempre será. – Micha voltou a ter lágrimas nos olhos e tentou evitar derrama-las.
Dei um beijo nos cabelos ruivos dela e falei:
- Ele é mesmo um babaca. E você a menina mais incrível do mundo! Se eu fosse heterossexual eu ia querer te comer todo dia! – E Micha deu uma gostosa gargalhada ao ouvir minhas palavras.
- Obrigada. Eu espero um dia engolir esperma e ficar grávida de um cara legal assim como você. Vai logo seu putão, sua mãe deve estar preocupada já. Seu castigo vai ser ir a missa todos os dias da semana. Beijo no pau.
- Beijo na xana. – Respondo.
E vou embora. Com certeza eu ia ouvir do meu pai. Já estava me preparando emocionalmente para isso. Na volta para casa, passo perto de um bar, bastante conhecido no bairro, mas também uma verdadeira pocilga.
Dizem que alguns caras do 3º ano vão lá nas noites de sábado, e fiquei imaginando se por um acaso João Paulo não estaria por ali. E parece coisa de novela, mas a mais pura verdade é que o desgraçado pirocudo acaba de sair pela porta do bar, trocando as pernas. Bêbado. Chapado. Mamado.
E estranhamente, sozinho. Nenhum de seus amigos idiotas (especialmente Gabriel Vianna, um de seus melhores amigos, outro galinha, mas com menos “encanto” que João Paulo, uma espécie de “consolo” para as meninas).
Aperto meu passo. Não quero que ele me veja. Mas isso parece impossível. Ele me vê e vem até mim como um cachorro, me cercando, pronto pra me atacar ao meu menor movimento.
- Ei, voucê ai! – Ele diz, se aproximando mais de mim, e caralho, sinto seu bafo de cachaça. Quase tapo o nariz.
- O que você quer? Me deixa passar cara. – Digo, tento avançar e me afastar dele. A rua em si está deserta, mas há muitos bêbados nas mesas do lado de fora do bar. Obviamente todos concentrados em suas cachaças.
- Non vou ti faze nauda. Voucê é amigo daquela menina do rádium. – Um arroto sai de sua boca antes que ele continue falando. – Isauías. Seu nome num é Isauías?
- Isaac. E se você está se referindo a Micha, sim, eu sou amigo dela. E você tinha que ter ido a casa dela, Barney Gumble. Ela ficou te esperando, para você participar do programa dela. Você não era obrigado, mas você se comprometeu e disse que estava a caminho! – Quando percebo eu já estou gritando com o cara.
Os olhos claros dele estão vermelhos, inchados até. Ele deve ter bebido muito com toda certeza. Me encarou como se eu fosse aquela caveira de “Os Contos da Cripta”. E perto dele eu até pareço mesmo. João Paulo é bem mais forte que eu, tem corpo, mesmo não sendo esses caras de academia. Eu, ao contrário, sou puro osso.
- Eu sei tá legaul? Eu sou um desgraçaudo! Minha viuda é uma pourra do caraulho! – Fico pensando “porque ele diz tudo com “u” no meio?” que bêbado estranho. – Me perdoua Isauías.
- Isaac. Eu... Não é a mim que você tem que pedir perdão. E... – O rosto, normalmente branco e de bebê de João Paulo, agora está quase verde, ele não se parece nenhum um pouco com aquele cara que todas as meninas são loucas e apaixonadas. E por que ele está bêbado, enquanto deveria estar transando com alguma menina do colégio? Ou se exibindo pelado na net? (talvez ele ainda vá fazer isso hoje, de novo.)
E de repente, lá se foi tudo que estava no estômago de João Paulo. Ele vomita e cai de joelhos na própria poça de vômito. Que coisa nojenta! Estou quase vomitando junto, eca.
Me abaixo perto dele e digo:
- Cara, você tá horrível.
- Ou Isauías, voucê pode me leuvar até em causa? Não sei onde eu mouro mais veulho. – João Paulo diz, se levantando e limpando a calça na altura dos joelhos com as mãos. Que nojo, Santinha da minha mãe!
23:33.
Então tento ajuda-lo a ir até a sua casa. Apenas encosto uma de minhas mãos em um de seus ombros. Como se estivesse guiando uma pessoa parcialmente cega. Ele não diz muita coisa no caminho, nada que faça muito sentido. Por sorte, sei onde ele mora (alias, que não sabe?).
A casa está escura. Não há nenhum carro estacionado na garagem.
- Parece que não tem ninguém. Seus pais não estão? – Pergunto.
- Eu só teunho pai. Minha mãue mourreu tem muito teumpo. – João Paulo diz, cambaleando.
- Sinto muito. Eu não sabia. Cuidado pra não cair. – Respiro fundo e pergunto: - Então, você tem a chave da casa?
- Tá auberta, nãum feuchei.
E realmente a porta estava destrancada. Encaminho-o através da porta e acendo a luz. A sala está uma bagunça completa. “Casa de homem”, penso. “Só falta ter uma merda no meio do chão”, continuei pensando. E do jeito que João Paulo está, ele pode mesmo a qualquer momento abaixar as calças e cagar no meio da sala.
- Eu... Hã... Acho que você precisa de um banho frio. – Digo meio sem jeito. Amanhã ele terá uma ressaca daquelas!
- É, me leuva até lá. No baunheiro.
23:59.
E o levo. Meu Deus, o que estou fazendo na casa de João Paulo Gomes da Silva? Ajudando-o a se despir e tomar um banho após uma noite de bebedeira? Quem deveria estar aqui era o Gabriel Vianna ou a Roberta Upranova, não eu.
João Paulo consegue ele mesmo tirar a maior parte da roupa, e caralho, agora eu vejo pessoalmente sua famosa piroca. Mole, molinha e molenga, mas balança com seus movimentos cambaleantes. Mas ainda é muito maior que a minha dura! As bolas dele também são grandes e descoladas do seu pau. “Que cavalo”, penso.
Paro de olhar. Eu não gosto deste cara e eu nem sei porque estou aqui ajudando ele. Talvez seja por misericórdia. Os ensinamentos das missas que minha mãe me obriga a assistir, talvez seja isso. Ligo o chuveiro e modifico a chave para o “desligar”. João Paulo precisa de um bom banho frio e cama, afinal.
Quando ele entra no box, e fica debaixo d’água, fica de costas para mim, e eu como um bom gay, não deixo de dar uma olhada na bunda dele. E caralho, a bunda do João Paulo é mesmo bonita. É carnuda e parece durinha. Senti a ereção dentro das calças, fiquei com vontade e então falei:
- Cara, eu vou ficar aqui do lado de fora, tá? Deixa a água rolar em cima de você um pouco. Onde tem uma toalha? Pra você se secar depois que terminar? – Pergunto.
- No meu quaurto. No aurmário. – Ele responde.
- Ok, ok. Fica firme ai, não vá desmaiar. – Eu digo.
Não faço a menor ideia de onde seja o quarto de João Paulo. Então entro no primeiro que vejo. É maior, parece de casal, então suponho que não seja o dele. Deve ser do pai.
Em todos esses anos, nunca soube que João Paulo não tinha mãe. Era uma novidade para mim (provavelmente ninguém sabe também, as conversas voam rápido na escola, se as pessoas soubessem, já tinham comentado).
O quarto, que eu suponho que seja do pai, é horrível. Está mais bagunçado que a sala. Vejo no chão latinhas de cerveja vazias e tocos de cigarro (o fedor do cigarro também está impregnado no ar). “Caralho, que tipo de vida deve levar esse homem”, penso quando vejo também algumas embalagens de camisinha jogadas no chão. Eca, vejo também uma camisinha cheia de porra também! Eca! Eca! Eca!
Depois desta, corro desse quarto e entro no quarto ao lado. O quarto é menor e um pouco mais organizado. Ao menos não tem latas de cerveja, nem cigarros ou camisinhas usadas. Apenas uma cama desfeita. Um armário de roupas. Uma mesa com um notebook (agora reconheço o quarto do vídeo dele se punhetando). E... Bem, na mesma mesa vejo o que me parece ser um cigarro de maconha. Claro que João Paulo deve fumar um “beque” de vez em quando, sei lá.
Abro o armário de roupas e encontro uma toalha. Não parece muito limpa, mas é a única que encontro. Pego também uma calça de moletom e uma camisa, afinal, o cara precisa se vestir também.
Volto para o banheiro e dou uma leve batidinha na porta antes de entrar (não sei por que faço isso, afinal, eu já vi o cara pelado mesmo).
- Você está bem João Paulo? – Pergunto.
- Tou. – Ele diz. – Tou coum frio.
Me aproximo e desligo o chuveiro. Pego a toalha e o enrolo nela (não antes de perceber que até com frio e encolhido, o pau do cara é grande).
- Ok, é melhor você se trocar no seu quarto. – Digo.
- Tá baum.
00:14.
Vou ter problemas sérios com meu pai. Talvez uma semana de missa seja um castigo muito bom. Prevejo castigos piores, como corte de mesada, por exemplo. Noites inteiras enclausuradas no quarto só estudando e nada de internet por um mês inteiro, também são outros possíveis castigos terríveis.
No quarto de João Paulo, ajudo-o a se secar. Quando começo a lhe entregar a roupa, ele me diz:
- E a coueca?
- Merda, claro, cueca. Onde você as guarda? – Pergunto.
- Na gauveta. – Ele me responde.
- Ok. – E vou até a gaveta do armário e a abro. Uma coleção de cuecas e meias estão dentro dela. Pego a primeira cueca que vejo e fecho a gaveta.
Ele ainda cambaleia, mal consegue ficar de pé. Numa dificuldade do caralho, consigo ajuda-lo a se vestir. Depois, ele se joga na cama e fecha os olhos. Assim do nada.
- Está tudo bem? – Pergunto.
Ele não me responde. Ouço o ronco. O Chaves diria “parece uma descarga desarranjada”. E parece mesmo. Caralho, como foi rápido.
Por via das dúvidas, procuro por algum lençol ou cobertor fino e encontro algo parecido no mesmo armário de roupas. O cubro, sei lá, vai que ele ainda esteja sentindo frio. E se ficar com calor, ele terá forças para jogar o lençol no chão.
00:26.
Foi neste horário que abri a porta da frente e no mesmo horário um carro foi estacionado na garagem da casa. Um homem saiu de dentro do carro, do banco do motorista, e agressivamente me inqueriu:
- Quem é você? O que estava fazendo dentro da minha casa?
Gelei. O cara é muito agressivo mesmo. Parece que vai arrancar minhas bolas, fritá-las e come-las na ceia. E depois talvez faça o mesmo com todo o resto dos meus órgãos.
- Meu nome é... Isaac. O senhor é o pai do João Paulo? – Respondo e pergunto, tentando ser educado e cordial ao máximo, para que aqueles olhos raivosos parem de me encarar com tanta maldade.
- Sim, eu sou o pai dele sim. Não me respondeu o que diabos estava fazendo dentro da minha casa a essa maldita hora. – Agora eu estou quase me mijando de medo.
- Desculpe senhor, eu só... O João estava numa festa e não se sentiu muito bem, então eu o trouxe até aqui e já estava indo embora. Me desculpa o incomodo. Tenha uma boa noite. – Digo, e tento escapulir daquele homem assustador, mas não tenho sucesso.
- Como assim “festa”? Eu o coloquei de castigo, ele não tinha a porra de direito de sair da porra de casa! Ah moleque desgraçado, vai ser ver comigo, deixa ele comigo. E obrigado, “Salsicha”, pode voltar pro “Scooby-Doo” agora, ok? – Ele me diz com desdém.
E o homem volta para o seu carro, pega alguma coisa que nem sei o que é e depois entra para sua casa. E eu corro dali, vou embora o mais rápido que posso, já estou encrencado o bastante.
No caminho, olho meu celular para conferir as horas. Por estar no silencioso não tinha percebido, mas vejo agora que há 10 chamadas não atendidas do telefone de casa e mais 4 chamadas do telefone celular do Bruno, meu irmão que nem mora mais comigo (minha mãe deve ter ligado para ele, perguntando se eu não estaria por lá). Além disto, duas mensagens de Micha (e ela ligou pro Bruno, por que antes ligou pra Micha, e ela com certeza falou que eu já tinha saído de lá há quase duas horas).
“Onde cê tá viado? Sua mãe tá que nem uma louca atrás de você! Eu disse pra ela que cê saiu daqui eram onze e pouca!”
“Sério Isaac, agora tô preocupada também. Cê tá legal? Me responde por favor, por favor, por favor, beijo no pau.”
Eu estou encrencado. Eu já sei disto desde as 23:01. Mas agora estou mais preocupado com João Paulo. O pai dele é assustador. O quarto do pai dele é assustador. Aquela casa é assustadora (a sujeira toda, não parece um lar aquilo). Castigo? O que ia acontecer com ele agora então? Eu pensava que o garoto mais popular, mais bonito, mais pirocudo e essa porra toda tivesse uma vida de rei, uma vida invejável em todos os sentidos. Mas parece que estou errado.
Chego em casa a 01:16.
Meu pai está de pijama, e com o bigode retorcido, ou seja, está bravo, muito bravo. Talvez mais até do que isto. Acho que vou ficar de castigo pelo resto do ano, sem poder sair e sem poder comer comida gostosa. Só livros, cadernos, pão e água. E com muita sorte vou ser absolvido se passar com 100% no Enem (o que é impossível).
Minha mãe corre para me abraçar:
- Isaac! Ah meu Deus, onde você estava filho? – Ela me pergunta chorando, e eu encaro meu pai, logo atrás dela, com aquele bigode de militar se movimentando em sua cara. Lá vem bronca, e bronca das grandes.
Mas ele não diz nada além de:
- Conversaremos amanhã rapaz.
Então eu digo:
- Ok. Desculpem o atraso. Mas é que encontrei um amigo no caminho, e ele estava precisando de minha ajuda. Por isso que eu atrasei. – Tento explicar. João Paulo não é meu amigo, mas...
- Você está cheirando... A vômito. Você vomitou? – Minha mãe me pergunta, já limpando as lágrimas.
- Estou bem. Desculpa o susto e o atraso mãe. Se vocês forem me colocar de castigo, tem toda razão. – Digo isso já tentando aliviar minha pena. As vezes funciona, né?
Nem havia percebido, mas Bruno e sua companheira mais velha estavam lá também. Com certeza meu pai estava ainda mais nervoso por que tiveram que chama-lo aqui.
- Oi Magrelo. – Bruno me cumprimenta. Desde que éramos bem crianças ele me chama de “Magrelo” e eu o chamo de “Gordão”, por que ele sempre foi mais gordo que eu, mas também não é gordo (como nosso pai). – Você está bem? Nada demais aconteceu? Só ajudou um amigo mesmo?
- Oi Gordão. Sim, nada demais. Apenas um amigo que bebeu muito e não conseguiu chegar em casa sem minha ajuda. Desculpa pessoal. Eu deveria ter ligado, eu me esqueci. – Eu digo, e deveria mesmo ter ligado. Minha mãe sempre foi muito preocupada.
- Vá pro seu quarto. Já disse que conversaremos amanhã. – Meu pai torna a dizer. E mais uma vez vejo seu bigode tremular.
Vou para meu quarto e mando uma mensagem para Micha. Digo apenas que estou bem e que prefiro contar pessoalmente a ela o que aconteceu nesta estranha noite de sábado.
Mas a verdade é que fico pensando... O que será que aconteceu com João Paulo? Por que o pai dele foi tão agressivo comigo? Hoje a vida de João Paulo Gomes da Silva não me parece tão boa assim. Mas eu também passo a noite inteira, sem conseguir dormir direito, a pensar naquele garoto pirocudo, que agora me parece tão infeliz.