Por que que quando estamos procurando o silêncio mais puro, qualquer barulho, até os que já estamos acostumados, irritam? O tique do relógio, torneiras pingando, o barulho da geladeira na cozinha... Por que eu estou perguntando isso?? Porque o relógio tava me incomodando. Joguei ele com força na parede do quarto e ouvi ele quebrar. Deitei minha cabeça no peito do Gabriel de novo e só quis escutar o som do coração dele. Ele teve que tirar a camisa, porque ela já tava encharcada de tanto eu chorar.
As palavras ainda estavam frescas na minha mente:
- Daniel, é melhor você sentar. - Disse meu pai. - Você também, Gabriel.
- Sim... Senhor. - Ele disse, me acompanhando até o outro sofá.
- Pai, o que aconteceu? O que tem o Chico??
- O veterinário ligou hoje... O Chico tem uma doença na corrente sanguínea, que ele pode sofrer hemorragias a qualquer minuto... E também, o veterinário disse que ele vem sofrendo muita dor no corpo recentemente...
- Pai, aonde você quer chegar?
Ele fez um sinal pro Gabriel, e o Gabriel entendeu e me aconchegou com seus braços.
- Daniel... Ele... Ele precisa partir...
Gabriel me apertou forte, e eu comecei a chorar. Na verdade, já estava chorando, mas agora, meus olhos jorravam água. Eu chorava silenciosamente, talvez porque o choque dessa notícia havia tirado minha voz.
- Preciso te dizer outra coisa... - Começou meu pai.
- Não. Sem mais... Notícias ruins...
Gabriel começou a me fazer carinho na cabeça e me deu um beijo na testa.
- Não, me conta... É melhor tudo de uma vez...
- Daniel... Eu te amo...
- Eu também te amo, pai.
- Sua mãe também estaria te amando agora, se ela tivesse aqui... Mas, eu acho que a mãe do Victor não.
Não entendi. Minha mãe e a mãe do Victor não eram a mesma pessoa?
- Como assim?
- Há 24 anos, eu me casei com uma mulher linda, jovem, atraente e maravilhosa. - Começou meu pai. - Alguns anos mais tarde, tivemos um filho. Nós nos amávamos muito. Quando ele fez 7 anos, ela começou a perder o amor que tinha. Não era mais a mulher com quem eu tinha casado. Um dia, enquanto eu estava em campo, fazendo patrulha em outra cidade, eu conheci uma mulher perfeita. Começamos a conversar, e depois bebemos. Levei ela a um motel naquela noite.
- ARGH! PAI, VOCÊ TRAIU A MAMÃE! QUE NOJO!
Saí do abraço de Gabriel e fui levantar do sofá, mas ele segurou minha mão.
- Fica aqui mais um pouco. Espera seu pai terminar de contar a históriaTá.
Meu pai respirou fundo. - 4 meses depois, e essa mulher e eu ainda continuamos a nos comunicar. Eu precisava falar com minha mulher, mas não sabia como... Alguns meses depois, e ela descobriu tudo, e nos abandonou, deixou a vida dela pra trás e desistiu do único filho dela. No dia seguinte, eu e Victor fomos pro hospital. Dentro de poucas horas, eu vi a mulher que eu amei por alguns minutos morrendo... Mas ela deixou algo pra trás. Eu peguei esse algo e coloquei nos meus braços... Era um bolinhoDe carne humana com olhos azuis da cor do céu... - Completei. - Oh, meu Deus...
- No dia 14 de outubro de 1993, eu olhei para aquele bebê pela primeira vez, beijei seu nariz e o chamei pelo primeiro nome. Ele parou de chorar quando me escutou, e foi dormir. Eu comecei a chorar. Estava sozinho com apenas as duas crianças que eu mais amo nesse mundo, mas eu tive que tocar a vida. No ano seguinte, eu fui na casa da sua mãe. Sua avó estava cuidando da casa, e eu avistei uma gata deitada numa caixa de papelão. Ela tinha acabado de parir seis filhotes, mas só um havia sobrevivido. Eu o peguei e te dei.
- Chico. - Falei. Lembrei do meu gato e comecei a chorar de novo, mas aí me bateu uma coisa. - 93? Não, pai, eu nasci em 91. Eu tenhoNaquela época, te colocar na escolinha era difícil. Você tinha que ter 4 anos, mas você já tinha a maturidade aos 2, então eu troquei sua data de nascimento nos papéis.
- Então... Eu tenho 15 anos? 15 ANOS?! Você mentiu pra mim sobre TUDO esse tempo todo?
Meu pai colocou o rosto nas mãos, e eu tentei desembaralhar algumas coisas na cabeça. Quando eu terminei, eu saí do abraço de Gabriel e fui abraçar meu pai.
- Pai... Por que você não me contou? O Victor sabia disso?
Ele afirmou com a cabeça.
- Me desculpa, Daniel.
- Tudo bem, pai. Eu só quero deitar agora...
Eu fui pras escadas do corredor do meu quarto e chamei o Gabriel. Ele veio e eu precisava tomar banho.
- Toma banho comigo? - Pedi. - Eu não consigo fazer mais nada. Tô exausto.
- Tomo.
Peguei duas toalhas e fomos ao banheiro do meu quarto. Ele tirou a roupa dele e entrou no boxe, para verificar a temperatura da água.
- Pronto, pode vim. - Ele falou.
Eu hesitei um pouco antes de tirar a roupa, e ele desligou o chuveiro e veio até mim e tirou minha camisa. Depois, tirou meu tênis e minhas meias, e tirou meu cinto e abaixou minha calça. Agora eu estava só de cueca. Quando ele foi tirar, ele olhou pra mim e levantou seus braços, como se cometesse alguma infração. Eu acenei com a cabeça e ele tirou minha cueca. Ele puxou minha mão até o boxe e ligou o chuveiro.
Gabriel começou a me ensaboar, e ele me dava banho com carinho. Levantava meus braços e ensaboava as laterais do meu corpo. Ele lavou minhas costas e desceu pra minha bunda. Quando eu pensei que ele ia fazer alguma sacanagem, ele apenas ensaboou normalmente e desceu para as pernas. Quando ele terminou, ele começou a se ensaboar, e eu assistia. Ele era lindo. O corpo dele era lindo. Ele era perfeito. Se eu não estivesse em choque, eu estaria mordendo meu lábio inferior, como sempre fazia. Quando ele terminou de se ensaboar, ele olhou pros meus olhos e sorriu. Aquele sorriso me acalmou.
Ele ligou o chuveiro de novo, e passou a mão pelo meu corpo pra me enxaguar. Eu não resisti e abracei ele. Coloquei a cabeça no ombro dele, e ele me apertou. Ficamos assim, levando água do chuveiro enquanto nossos corpos se tocavam, e minhas lágrimas caíam.
- Dani... Se você não quiser me perdoar agora, ou conversar sobre o que tem entre a gente hoje, não tem problema.
- Tá...
- Mas eu vou estar aqui pra você, pra qualquer coisa.
Eu apertei ele mais forte, e ele me retribuiu e beijou meu pescoço. Ele me soltou, me sentou no chão do banheiro e começou a passar shampoo na minha cabeça, ajoelhado. Era gostoso, ter as mãos dele massageando minha cabeça. Quando terminou, ele enxaguou minha cabeça e desligou o chuveiro.
- Eu queria ficar mais... - Falei, enquanto ele enrolava a toalha na minha cintura.
- Não, be... Daniel. Tá na hora de dormir já.
- Ok... Deixa eu escovar os dentes.
Ele saiu e foi pegar a escova dele também. Quando voltou, passei pasta de dente na escova dele e comecei a escovar meus dentes. Ele escovava com uma mão e espetava o cabelo dele com a outra, e eu ficava lá, olhando pra ele.
- Voxê bai xair com alguém? - Perguntei, com pasta de dente na boca.
- Não posso ficar bonito pra certas pessoas não?
- Achei que voxê já fosse...
Ele fez carinho no meu ombro direito (ele tava à minha esquerda) e voltou a escovar os dentes. Terminamos e fomos pro quarto. Ele pegou uma camisa pra mim, e meu shorts do pijama, e me ajudou a vestir.
- Como você sabia que eu ia pegar isso? - Perguntei.
Ele apenas sorriu e me entregou um par de meias da minha gaveta. Me virei e peguei minha blusa verde que meu pai me deu quando criança, e usou pra me cobrir quando eu saí do hospital quando eu nasci. Desde então é parte do meu pijama usual, quando está frio. Gabriel tinha vestido uma camisa e uma bermuda, e me pediu pra deitar.
- Espera. - Saí do quarto, desci as escadas e fui pro quarto do meu pai. - Pai?
- Sim? - Ele respondeu, virado para a parede.
Eu subi na cama dele e o abracei pelas costas.
- Eu não tô com raiva de você, se é o que você pensa. - Falei.
- Não? - Ele se virou e me abraçou.
- Eu só não entendo por que você me contou isso só agora... Poxa, eu tenho 15 anos... Eu achava que já ia poder dirigir ano que vem... Que eu ia ser um adulto, sabe?
- E você nem suspeitou por que eu não te alistei no exército brasileiro esse ano?
Eu fui muito burro agora. Meu pai me pegou nessa.
- Boa noite, pai.
- Boa noite, Daniel.
Voltei para o quarto, onde Gabriel estava arrumando minha cama e ele me viu. Eu deitei e ele foi arrumar a outra cama. Antes eu cutuquei ele e eu arredei pro canto. Ele riu e deitou do meu lado. Eu deitei a cabeça no peito dele e funguei até não poder mais.
- Por que você tá me cheirando assim?
- Fiquei com saudades do seu cheiro. Você não sabe o quanto.
Eu comecei a chorar, e Gabriel me apertou. Ficamos assim por várias horas, e a cada 20 minutos eu chamava ele, e ele respondia: "Hm?", ou "Que foi?", com uma voz doce. Eu precisava saber se ele tava ali mesmo. E aqui estamos, com um despertador quebrado no chão e dois adolescentes deitados numa cama. Eu estava quase dormindo, mas Gabriel não quis dormir nem à pau. Ele queria ter certeza que eu dormisse bem. Eu desmaiei.
Quando acordei no outro dia, já eram umas 11 horas da manhã. Gabriel não estava do meu lado. Nem a mochila dele. Ele foi embora... Assim como meu gato faria...
Eu levantei da cama com meu corpo todo doendo. Desci as escadas e vi meu pai calçando sapatos no sofá. Dei bom dia pra ele e fui pra cozinha.
- Daniel... Hoje a gente vai pro veterinário praSó toma café e se arruma.
- O Gabriel foi pra casa?
- Não, ele vai encontrar com a gente lá no veterinário. E diz que vai levar alguém, também.
Eu fiquei um pouco feliz, mas meu melhor amigo ia partir... Enfim, quem será que ele ia levar? Terminei de comer um sanduíche e subi pro meu quarto. Apenas troquei o short do pijama e coloquei uma calça com meu tênis. Fui pro carro do meu pai e esperei ele dar a partida. Ele começou a andar e eu fiquei cada hora mais tentando adiar o inevitável de alguma forma que eu não conseguiria.
Depois de uns 30 minutos, chegamos ao veterinário. Meu pai falou com a secretária e em minutos o veterinário apareceu da porta. A clínica tava vazia, só tinha um cara musculoso com um buldogue com o Cone da Vergonha (colar elisabetano, mas quem assistiu UP - Altas Aventuras sabe). Ele nos pediu pra entrar, e eu ouvi alguém mais entrando na clínica. Era Gabriel com uma menina.
- Dani... - A menina falou e correu pra me abraçar.
- Karina, o que você tá fazendo aqui??
- Ele me chamou... Eu fiquei sabendo... E trouxe a Jade pra despedir também.
Entramos todos no corredor, e tinha várias salas. O veterinário abriu uma das portas, e eu vi Chico deitado com um respirador no nariz. Ele estava acabado. Lágrimas corriam pelas minha bochechas, e eu sentei num banquinho do lado da mesa.
- Chico? Sou eu... Daniel... - Ele começou a balançar o rabo quando eu disse isso. Eu fiz carinho em sua cabeça. - Fiquei com saudades de você, menino. E vou morrer de saudades de você mais ainda... Ei, sabe quem tá aqui?? Sua namorada! Karina, me entrega a Jade.
Ela tirou a gata com cuidado da caixa de transporte rosa e colocou em cima da mesa.
- Você não tá feliz de ela estar aqui? - A gata deitou a cabeça na barriga dele, talvez porque ela estava exausta. - Ah, e eu esqueci de te contar, mas ela tá grávida! Você seria um ótimo pai... Você poderia ensinar seus filhos a caçar ratos e pássaros e calangos, e levá-los lá pra casa! Eu sei, eu sei, mas eu não ia ficar com raiva... Você só tava cuidando de nós, né?
- Daniel... - Meu pai soou preocupado. - Você tá bem?
- Chico, meu pai também veio. Olha ele. E o Gabriel e a Karina também estão aqui, viu?
Geralmente, Chico dormia enquanto eu estivesse conversando com ele, mas hoje era diferente. Ele manteve-se acordado por mim... Por nós.
- Ei, Chico... - Começou Karina, se juntando à minha loucura. - Nos conhecemos por pouco tempo, você ficou no meu quarto, lembra? Você e a Jade, seu malandro. Hehehe.
Jade havia dormido.
- Espera Daniel, eu quero me despedir também. - Gabriel me tirou do banquinho e se sentou. Ele colocou a cabeça perto do rosto do Chico. - Nem eu de você. Aham. Tá. Eu prometo. Até. Ele disse: "Eu não gostava de você antes... Mas você faz meu humano feliz... Não esqueça de amá-lo, assim como ele me amou e cuidou de mim... Prometa que vai protegê-lo de qualquer coisa que acontecer... Até mais, humano."
- Ele disse isso? - Perguntei.
- Disse. E também disse que nunca deixou de te amar, principalmente quanto vocês dividiram um peixe juntos.
Espera um minuto. Eu nunca contei essas coisas pro Gabriel.
- Ah, e "me desculpe por ter bebido seu leite no natal". - Disse Gabriel.
Ele estava errado sobre que foi no natal, mas ele estava certo que Chico roubou mais da metade do meu copo de leite. O veterinário apareceu com uma seringa.
- Chico... Me desculpa por tudo que eu fiz de ruim pra você... Eu vou sentir saudades, cara, mas isso é pro seu próprio bem. Encontra a mamãe lá no céu...
Eu dei um beijinho na testa dele, me levantei e saí da sala. Gabriel se levantou do banquinho e foi pro corredor. Ele me viu chorando no chão do lado da porta e me abraçou.
- Dani, vai ficar tudo bem... Eu tô aqui...
- Me chama de bebê como antes...
- Eu vou te proteger, bebê. Fica calmo. Ei, vamos enterrar o Chico no quintal da sua casa. Ele gostava de ficar sentado lá olhando os ninhos dos pássaros quando eles iam lá, não gostava?
Eu segurei a mão dele, e queria muito beijá-lo na boca aquela hora, mas eu ainda estava castigando-o. Era uma grande ideia. Assim, eu saberia que ele estaria perto de nós. Meu pai, a Karina e a Jade saíram da sala, enquanto o veterinário fazia o que ele tinha que fazer.
- Pai... A gente pode enterrar o Chico lá em casa?
- Claro, meu filhote... Eu vou falar com o veterinário.
- Dani, se você quiser, o Rafael pode nos levar pra sua casa... Você não ia querer voltar com...
- Obrigado, Karina. - Interrompi, de forma educada.
Rafael chegou na clínica rápido, e nós entramos no carro. Gabriel ficou abraçado comigo o caminho todo, dando ciúmes no Rafael, mas ele precisava entender que eu não estava apaixonado por ele. Eu estava apaixonado pelo Gabriel. Se não fosse por ele, eu já teria me matado, provavelmente.
Chegamos à minha casa, e meu pai já tinha chegado antes. A cova estava cavada no quintal, a caixa de papelão do Chico estava protegida com um plástico, pra não molhar... E todos nós, menos Gabriel e Rafael estavam lá. Meu pai cavou tão fundo, que precisava de um cinto pra descer a caixa. Quando ela foi colocada, meu pai colocou uma tábua de madeira por cima e jogou a terra.
- Tchau, cara... Eu nunca vou te esquecer...
- Dani... Se você quiser, eu posso te dar um filhote quando eles nascerem. - Disse Karina.
- O que? Não precisa se preocupar!
- Tem certeza?
- Não, me dáHaha! Ok, quando eles desmamarem, eu vou te entregar.
Karina me deu um abraço e Gabriel apareceu, por fim. Karina foi embora com Rafael e nós entramos pra dentro de casa. Gabriel estava com o comportamento um pouco diferente, mas isso não o impediu de usar todo seu tempo e energia pra me distrair e me fazer rir. Funcionou, e eu tentei não chorar mais. Não chorei. Fiquei até feliz que eu ia ganhar um gato novo, que ainda por cima era filho do meu filho... Eu ia ter um pedacinho de Chico por um loooongo tempoEu disse que vocês teriam um misto de emoções... Aiai, eu racho de rir com alguns e-mails, e fico feliz que estejam entrando em contato. Ah, e para o Gatinho02, sim, este conto é real, e aconteceu em 2008.
E pra vocês que me acompanham desde o primeiro conto, vocês são lindos! *---*